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7 FILMES QUE EU ADORARIA TER ENTENDIDO

FILMES

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data18/07/2017
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7 FILMES BEM LEGAIS PARA CONVERSAR A RESPEITO.

Wild Bunch/ Arte Cinema/ Pierre Grise Productions
Denis Lavant e Eva Mendes, em Holy Motors.

Confesso que exagerei um pouco no título da matéria... Tá bom: eu menti. Mas ficaria estranho chamar a matéria de “3 filmes que eu não entendi muito bem, 3 que eu entendi mais ou menos e 1 absolutamente impenetrável, que eu adoraria ter entendido”. Além disso, precisava chamar a atenção já no título.
Por falar nisso, o título também pode parecer estranho, inapropriado, e até contraditório. Afinal, se eu não entendi o filme, por que iria gostar dele, ou adorar? Mas existem diferentes caminhos e possibilidades por aqui.
Por exemplo, existem filmes que têm um visual legal, até mesmo estupendo, com cenas bem elaboradas, atuações marcantes e uma história que permite inúmeras interpretações. Para mim, esse foi o caso de Eraserhead, que também está nesta listagem (Observação lúdica. Quem tem acesso à Claro vídeo, na Net, pode encontrar Eraserhead com o título No Céu Tudo é Perfeito, que foi o título escolhido para o filme em Portugal. Esse certamente entra na lista dos “títulos que eu adoraria ter entendido”, e que certamente nada tem a ver com o filme de David Lynch).
Existem outros filmes que seguem pelo mesmo caminho, mas que me deixam sempre um ou dois passos atrás (às vezes, bem mais do que isso); estou sempre prestes a entender alguma mensagem, mas nunca chego lá. É o caso de Sanatorium pod Klepsydra, que vi recentemente. Em outras palavras, eu sei que tem algo além do que eu estou percebendo, mas não consigo entender o que é. Assim, eu adoraria ter entendido.
Mesmo nos filmes que permitem várias interpretações – o que sempre é muito legal e mostra como a obra pode atingir diferentes níveis – sempre fica a sensação de que, talvez, o que eu estou pensando que é, pode não ser. Assim, de novo, eu adoraria ter entendido.
Em resumo, como diriam os antigos, macacos me mordam se eu sei do que estou falando (aliás, “macacos me mordam” poderia constar de uma lista dos termos que eu adoraria ter entendido; por que os macacos iriam me morder?; e por que eu iria querer ou permitir que isso acontecesse?; que tipo de macacos?; como esses macacos chegaram à minha casa e por que estavam ali?; ou eu é que estava na casa dos macacos, e a troco do quê?; quais seriam as consequências de macacos me morderem?; e por aí vai).
Claro que também podemos e devemos considerar a possibilidade de um filme ser, simplesmente, ruim, mal elaborado e, apesar de ter uma apresentação visual interessante, não ter qualquer mensagem, ou que a mensagem tenha sido tão mal elaborada que se torna impossível para alguém entender. Vamos concordar: existem filmes que são tão difíceis de entender quanto aqueles comerciais de perfumes na televisão; e alguns são até piores do que esses comerciais. Não acho que seja o caso dos filmes que apresento aqui, é óbvio, senão o título da matéria seria “Filmes horrorosos e incompreensíveis que eu não faço a menor questão de entender”.
Por outro lado, também não posso deixar de lado a possibilidade de eu ser um imbecil e não conseguir desenvolver uma interpretação adequada. Isso acontece, às vezes. Não com muita frequência. Mas a imbecilidade está lá, latente, esperando o momento de se manifestar, doidona para sair para o mundo e assombrar as pessoas.
Seja como for, vejam os filmes a seguir e, talvez, me chamem de imbecil e forneçam suas próprias interpretações – caso conheçam as obras; e ainda, talvez acrescentem seus próprios títulos à lista. Não sejam convencidos ou arrogantes; eu sei que todo mundo tem esses momentos de incompreensão absoluta do que está acontecendo à sua volta ou, no caso, na tela do cinema ou da televisão. Momentos do tipo, quando o filme termina, e vocês perguntam a si mesmos: “Como?”. E seus cérebros se recusam a responder, ficam com medo, acuados, como cérebros de primitivos diante de fenômenos celestiais.
Os filmes são apresentados em ordem cronológica.

Sanatorium pod Klepsydra (1973)

Jan Nowicki, no salão dilapidado do sanatório (Zespól Filmowy "Silesia").

A tradução seria algo como “O Sanatório Sob a Clepsidra”.
O filme foi dirigido por Wojciech Has e baseado na coletânea de histórias de Bruno Schulz, publicada no Brasil como Sanatório. E para quem ainda não sabe – e eu confesso que não sabia e fui pesquisar – clepsidra é um sistema de medição do tempo anterior à ampulheta e que, em vez de areia, utilizava água. Como o filme gira em torno do conceito do tempo, entende-se o título.
E é um daqueles filmes cuja interpretação pode ser qualquer coisa. Os cenários são fantásticos, a começar pelas primeiras cenas, nas quais o personagem central Józef (Jan Nowicki) está viajando num dos trens mais estranhos do cinema, com pessoas dormindo no chão, algumas nuas, outras babando em cadeiras antigas, todas absolutamente silenciosas. Józef está indo para o sanatório do título visitar o pai.
O filme tem vários cortes repentinos de cena, de modo que sequer vemos o personagem chegar à estação e, em seguida, ele já está chegando ao sanatório, uma construção imensa e antiga, em ruínas, parcialmente tomado pela vegetação. Ele tenta entrar por uma porta imensa, mas não consegue, e em seguida vemos ele entrando por uma janela.
O interior também é decrépito, empoeirado e com teias de aranha. Começamos a ter alguma ideia do que está acontecendo quando ele fala com o médico responsável, que explica que ali é uma espécie de local fora do tempo. Eles conseguem fazer com que o tempo pare ou ande para trás, não apenas revivendo o passado, mas criando as “possibilidades” de passado; ou seja, algo que poderia ter acontecido, mas não aconteceu, ali pode passar a existir. O médico refere-se ao local de onde Józef veio como “o seu país”: o sanatório está, definitivamente, fora do nosso mundo, ou do nosso tempo normal.
As coisas começam a ficar bem mais complicadas quando Józef, observando o exterior do sanatório por uma janela, vê a si mesmo novamente chegando ao local, mas dessa vez conseguindo entrar pela porta imensa que não conseguiu abrir da primeira vez. Daí para a frente, é uma sucessão de encontros com personagens do passado e com personagens irreais, pessoas que Józef conheceu em sua infância – o que parece ser realçado pelo fato de quase todos tratarem Józef como se ele fosse criança –, ou personagens imaginários, de histórias que ele leu, ouviu ou criou em sua infância.
O filme não foi bem recebido pelas autoridades polonesas, que entendiam que ele continha críticas ao governo, além do fato de que a história lida com vários elementos da cultura judaica, e isso poucos anos após uma campanha antissemitismo liderada pelo governo, em 1968. Assim, as autoridades proibiram que o filme fosse apresentado no Festival de Cannes de 1973, mas o diretor Has conseguiu contrabandear uma cópia para a França, e o filme acabou recebendo o Prêmio do Júri.

 

The Holy Mountain (1973)

Alejandro Jodorowski, como O Alquimista, e Horacio Salinas (de costas), como O Ladrão (Producciones Zohar/ ABKCO).

Vamos fazer um pequeno exercício de imaginação aqui. Tentem visualizar as seguintes cenas: na tela são apresentadas várias imagens simbólicas e/ou esotéricas, símbolos ou talismãs que podem ter origem asteca, egípcia, mas que aparentemente foram criados pelo próprio diretor, Alejandro Jodorowski. Um homem não identificado, com um chapéu magistral, realiza um ritual que envolve colocar a água de um jarro num receptáculo, com um gestual controlado, programado. Ele raspa a cabeça de duas mulheres nuas e as envolve num abraço.
E isso apenas na apresentação dos créditos, tendo ao fundo o som de mantras cantados.
Só para continuar e termos a ideia exata (na medida do possível) do que está acontecendo, vejamos as cenas seguintes: um homem, aparentemente bêbado, está caído num terreno baldio com o rosto coberto de moscas. Cortes rápidos mostram, próximo a ele, cartas do tarô, um puma que ruge ao seu lado, um sapo, seguidos pela aparição de um anão sem as mãos e pernas com uma carta do tarô amarrada às costas, que se arrasta até o corpo do homem e espanta as moscas, enquanto várias crianças nuas chegam correndo e rindo, retiram uma flor que estava encravada na palma da mão do homem, e o carregam nas costas, uma das crianças usando uma pele de jacaré cobrindo as costas e a cabeça; o anão usa a perna arrancada de um animal para cavar algo no chão; as crianças já penduraram o homem numa cruz improvisada e todos atiram pedras nele, tudo isso ao som de uma batucada tipo vodu.
E vou parar por aqui. Isso tudo em cinco minutos de filme. Daí para a frente não fica mais fácil de compreender.
Não consigo resistir: um minuto depois, o homem já desceu da cruz, espantou as crianças e fumou um baseado com o sujeito mutilado, que lambe (sim, lambe) sua testa; no corte seguinte, estamos numa rua movimentada de uma cidade, por onde passa um caminhão carregado de corpos humanos nus, mortos, ensanguentados, enquanto policiais com máscaras de gás marcham levando como estandartes os corpos estripados de seres semelhantes a cachorros, e turistas sorridentes num ônibus filmam execuções públicas massivas no meio da rua.
E chegamos a sete minutos de filme. Estão entendendo?
A maior parte da ação ocorre depois que o homem – posteriormente identificado como O Ladrão – sobe a uma torre altíssima na cidade e entra em contato com O Alquimista, interpretado pelo próprio Jodorowski, um guru/ mago que inicia a transformação do ladrão, juntamente com outras sete pessoas; juntos, deverão realizar a jornada para a montanha sagrada, em busca da imortalidade.
ATENÇÃO! VOU CONTAR O FINAL.
Quando chegam à tal da montanha, percebem que tudo não passou de uma brincadeira do alquimista, que lhes pergunta: “Esta vida é realidade? Não! É um filme”. E ele pede que a câmera se afaste, o que ela faz, mostrando toda a equipe de filmagem em torno deles. O alquimista pede que todos deixem a montanha sagrada, pois a vida real os espera.

Para quem não conhece o diretor, de origem chilena, mas radicado na França e no México – onde The Holy Mountain foi filmado – ele é o diretor/produtor/tudo do mais longo e conturbado filme de ficção científica que nunca foi realizado. Sua intenção de filmar Duna, o clássico de Frank Herbert, não foi adiante porque nenhum estúdio quis se arriscar a produzir um filme nos termos de Jodorowski: o roteiro previa um filme com 14 horas de duração. Teria trilha sonora do Pink Floyd e do sensacional grupo francês Magma, e as participações, entre outros, de Orson Welles, Salvador Dali, David Carradine e Mick Jagger, além de contar, para o desenho de produção, com os artistas H.R. Giger, Chris Foss e Jean Giraud, mais conhecido como Moebius.
Não deu certo, mas a tentativa causou um impacto tão grande na indústria cinematográfica que só pode ser explicada assistindo ao documentário Duna de Jodorowski, que a HBO chegou a apresentar no Brasil, em 2016. Para não falar dos trabalhos que se originaram dessa aproximação que ele teve com os artistas, como a série de quadrinhos Incal, com Moebius.


Eraserhead (1977)

Jack Nance e seu topete (American Film Institute/ Libra Films).

Quando assisto a um filme de David Lynch, a sensação que eu tenho, às vezes, é a de ter entrado numa sala com mobília antiga, em um lugar que eu não conheço, cheia de pessoas desconhecidas que, repentinamente, param de conversar, como se o assunto que estivessem discutindo fosse proibido para mim, ou um mistério que eu não ainda não tenho o direito de conhecer.
E Eraserhead talvez seja o mais impenetrável dos filmes de David Lynch. O diretor disse que foi inspirado por Franz Kafka e Gogol para escrever o roteiro, mas a maior parte veio de sua própria vida e concepção de mundo, de modo que a chave para os símbolos apresentados no filme está dentro da cabeça de Lynch. E, para falar a verdade, eu não quero entrar lá.
Assim, qualquer interpretação pode ser válida, e elas foram muitas ao longo dos anos. Suspense, terror, ficção científica, humor negro, surrealismo, non-sense, filme de arte, cult movie, bom, ruim, excelente, péssimo, excepcional, doentio. Praticamente todas as definições já foram escritas e ditas sobre Eraserhead, principalmente nos veículos de comunicação no exterior. No Brasil, o filme teve exibição restrita a pouquíssimas salas exibidoras do circuito alternativo, lá pelos anos 1980, e a algumas cópias em vídeo pirata; depois, é claro, foi lançado em DVD. Ninguém jamais ousou traduzir o título. Se tentassem, provavelmente surgiria uma daquelas “pérolas” do cinema e vídeo nacionais, como se fosse uma tentativa deliberada de estragar a obra de David Lynch; como já disse, conseguiram isso em Portugal.
O ambiente do filme parece um sonho, ou pesadelo, dependendo do ponto de vista. Do futuro, do passado ou da imaginação. Ruas escuras, pessoas caladas, olhares nervosos e paranoicos. A fotografia em preto e branco ressalta o clima de estranheza. E o silêncio, que se torna ainda mais opressivo com a insinuação de ruídos: uma máquina funciona em algum lugar desse mundo, o tempo inteiro; o coçar de um olho se transforma num som que não dá lugar a qualquer outro som.
Um jovem com um topete magistral (Jack Nance) anda de um lado para outro pisando em poças de água, por becos sujos e escuros, em lugares onde se percebe a existência de máquinas. Encontra-se com aquela que se supõe que seja sua noiva (Charlotte Stewart), num jantar ridículo na casa dos pais dela. Sensacionais cenas de humor negro ocorrem nesse jantar; e também um dos poucos diálogos do filme, num ambiente onde ainda existe alguma luz, se bem que não muito confiável. Pelo que conversam, sabe-se que ela está grávida do topetudo, numa época em que, por alguma razão, não é boa ideia ter um filho.
Claro que resolvem ter a criança e vão morar juntos num apartamento minúsculo, uma verdadeira tortura. Quando a criança nasce, é um monstro, um mutante, uma coisa horrenda embrulhada num lençol. E com seu choro ele atormenta e leva os dois à loucura. A mulher, que não é trouxa, cai fora e deixa o aloprado sozinho com o monstro-bebê.  A criança cresce até ocupar completamente o quarto onde ele mora.
Quando perguntado sobre o que pretendia dizer com as imagens de Eraserhead, David Lynch afirmou que se tratava de sonhos de infância, ou imagens do inconsciente, carregados de metáforas e significados ocultos. Para se penetrar num mundo destes, é preciso apenas percepção e se deixar levar, mas para desvendá-lo é preciso ter a chave da linguagem utilizada. E nem Lynch a tem. A parte final é uma sucessão de imagens semelhantes a colagens, cabeças soltas caindo em ambientes fictícios, e um pesadelo que parece não acabar nunca. Uma máquina transforma a cabeça do herói em vários lápis, daquele modelo que tem uma borracha na ponta; cabeça de apagador.


Dente Canino (Kynodontas, 2009)

O filho (Hristos Passalis), a filha mais velha (Angeliki Papoulia) e a mais nova (Mary Tsoni), prestes a iniciar uma dança patética (Boo Productions).

O diretor grego Yorgos Lanthimos é o mesmo do sensacional O Lagosta (The Lobster, 2015), tão alucinado quanto este Dente Canino, ainda que de interpretação mais acessível.
Bem... O que dizer? Posso começar contando que a família apresentada no filme não é como qualquer outra família. Pai, esposa, duas filhas e um filho. Só o pai sai de casa para trabalhar; segundo ele, um filho só está pronto para deixar a casa quando cair seu dente canino. E mais: só se pode sair da casa de carro; e só pode aprender a dirigir quando o dente canino voltar a crescer.
Os filhos, sem contato com o mundo exterior, nem por televisão ou qualquer outra fonte de informação, são criados num universo à parte e agem como crianças, apesar de já serem adultos. Os pais passam a eles informações totalmente desconectadas com a realidade, e eles vivem no imenso terreno da casa inventando brincadeiras e passatempos, além de participarem de competições estimuladas pelos pais. Utilizam palavras com sentidos totalmente diferentes dos originais.
Às vezes, um deles vai até o muro que separa a casa da estrada que passa em frente e joga coisas para o outro lado; às vezes, comida. Tudo indica que o pai falou que eles têm um irmão que está do outro lado, mas é um local proibido e perigoso, porque os gatos podem matá-los. Eles treinam latidos, de quatro no chão, como forma de afastar o perigo.
As coisas começam a fugir ao controle dos pais quando a mulher que o pai leva para casa para fazer sexo com o filho introduz umas fitas de vídeo para a filha mais velha em troca de sexo oral. Apenas o mais ligeiro contato com o mundo fora do universo familiar vira a cabeça da filha, que faz uma das danças mais patéticas da história das danças no cinema, antes de resolver arrebentar seu dente canino com halteres, para poder deixar a casa.
Li várias tentativas de interpretação para a história, mas parece que nenhum crítico se atreveu a ir muito fundo ou se posicionar com muita convicção. Acho que eles também “adorariam ter entendido”.
Seja como for, ou qual for a interpretação de cada espectador, o efeito é devastador, com os diálogos truncados, com frases feitas, como se os filhos tivessem decorado tudo o que deveriam falar a partir de lições dos pais. As filmagens às vezes trazem enquadramentos estranhos; cortes nas cabeças das pessoas, ou elas não aparecem inteiramente nas cenas, como se tudo fosse filmado por amadores em filmes caseiros – como o filme que, aliás, é uma das diversões da família, com cenas de quando eles eram mais jovens, e que assistem com imenso prazer, repetindo as falas enquanto reveem as imagens.


Holy Motors (2012)

Denis Lavant em sua limusine/camarim (Wild Bunch/ Arte Cinema/ Pierre Grise Productions).

Drama, romance, comédia, terror, ficção científica, surreal, com interlúdios musicais. O filme reúne uma série de situações fantásticas, unidas por um personagem. E, na impossibilidade de fornecer uma interpretação minimamente convincente sobre a obra, vamos, novamente, fazer um pequeno exercício e tentar visualizar as cenas iniciais. Só um pouquinho; não dói.
Uma plateia de um cinema, absolutamente silenciosa e imóvel, mais parecendo um quadro em preto e branco, observada do ponto de vista da tela, com o som de um apito de navio ao fundo.
Corta para um sujeito acordando num quarto que tem uma janela aberta, mostrando uma cidade à noite, e uma parede com desenhos de árvores secas. Utilizando um dedo que parece ter uma extensão metálica, o homem insere num buraco na parede e força a abertura de uma porta, que leva a um corredor curto, ao fim do qual ele abre outra porta e chega ao balcão do cinema visto anteriormente; ele observa a plateia, ainda imóvel, e, primeiro, uma criança andando pelo corredor entre as fileiras de cadeiras; depois, é um cão imenso. O som do navio continua, acompanhado pelo som de gaivotas.
Outro corte mostra uma menina numa janela redonda imensa, observando o lado de fora de uma casa muito grande. Um homem com pinta de executivo – que logo saberemos ser o senhor Oscar (Denis Lavant) – sai da casa e é saudado por uma menina. Ele entra numa limusine branca com uma chofer, Céline (Edith Scob). A casa é repleta de seguranças e a limusine também é seguida por um carro com mais seguranças. A chofer diz que ele tem nove casos para aquele dia e ele estuda o arquivo referente ao primeiro deles.
O carro é como um camarim, e ali ele se transforma em diferentes personagens, um para cada “caso”. E cada um mais estranho do que o outro.
Não se sabe exatamente do que se trata, mas em alguns momentos é dado a entender que ele é um ator, contratado para as cenas, ainda que não se veja quaisquer câmeras.
Existem momentos densos, dramáticos, e outros engraçadíssimos, como a do personagem monstruoso que invade um cemitério após vagar pelos subterrâneos de Paris, comendo todas as flores dos jazigos – os quais têm, diga-se de passagem, os dizeres “Visite meu site”, seguido do endereço do falecido. Nessa passagem, o homem horroroso chega a um local onde uma modelo (Eva Mendes) está sendo fotografada; depois de arrancar os dedos de uma assistente com uma mordida, ele rouba a modelo e a leva para o subterrâneo.
Ao final – ATENÇÃO: VOU CONTAR! – depois de Céline deixá-lo para seu último ato – aparentemente como pai de uma família de comum de classe média; mas é claro que nada nesse filme é comum – ela leva a limusine para a garagem da Holy Motors, a única referência ao título do filme, enquanto dezenas de outras limusines chegam ao local. Depois de colocar uma máscara, Céline deixa o local e as luzes se apagam. E as limusines começam a conversar sobre seu medo de serem consideradas dispensáveis e ultrapassadas.
Confesso que o único significado que eu consegui obter para os eventos do filme é que as pessoas estão sempre interpretando papéis em suas vidas, o tempo inteiro, para si mesmas e para os outros. Não é uma grande interpretação, eu sei, mas pelo menos eu tentei, seus preguiçosos.
Seja como for, o filme é uma delícia, uma loucura sã, se é possível dizer assim.


Upstream Color (2013)

Kris (Amy Seimetz) e Jeff (Shane Carruth), assombrados e tentando entender o que aconteceu em suas vidas(erbp).

O filme foi dirigido e produzido por Shane Carruth, também responsável pelo roteiro e pela música, além de ser um dos atores principais. Ele já havia feito de tudo no filme Primer (2004), uma ficção científica complexa que lida, entre outras coisas, com viagens no tempo. Pelo que pude ler das críticas, a maioria entendeu que Primer era mais acessível a interpretações do que este Upstream Color, filme bastante badalado no Festival de Cinema de Sundance de 2013. É difícil até arriscar uma tradução para o título, uma vez que o diretor deixou bem claro que ele não tinha intenção de passar uma ideia fechada para os espectadores, deixando o tema aberto para várias interpretações; mas, numa tradução muito literal, poderia ser algo como “a cor que vai contra a corrente”.
Basicamente, o enredo segue as adversidades de duas pessoas, Kris (Amy Seimetz) e Jeff (Shane Carruth), que têm suas vidas irreparavelmente afetadas por um parasita que é inserido neles por um personagem identificado apenas como O Ladrão (Thiago Martins). Não se sabe como ele ficou conhecendo a existência desse parasita, mas ele descobre que as larvas de suas plantas têm uma propriedade única. A partir de uma bebida que ele prepara com elas, consegue obter um controle mental absoluto sobre as pessoas.
É assim que ele domina Kris e consegue todo o dinheiro que ela tem no banco, mantendo-a sob seu domínio por vários dias. Ela não apenas perde seu dinheiro, mas o emprego e o sossego, especialmente depois que acorda e percebe as larvas movendo-se sob sua pele.
Quem consegue retirar as larvas é o personagem identificado como The Sampler (Andrew Sensenig), um sujeito que fica coletando sons diferentes, na natureza e sons que ele mesmo produz de objetos; ele também tem uma criação de porcos. Não se sabe como, Kris chega até ele dizendo que não consegue tirar as larvas do corpo, e ele consegue transferi-las para o corpo de um porco.
A partir de então, Kris passa a ter uma vida apática, conseguindo um emprego menor, até conhecer Jeff, que se sente irresistivelmente atraído por ela e, aos poucos, podemos perceber que ele também passou por uma experiência que pode ter sido exatamente a mesma. Eles estabelecem uma relação profunda, mas confusa, em que as experiências de vida de um e de outro começam a se confundir; eles não sabem mais de quem é o passado, o que aconteceu com um ou com o outro.
Eu sei que mais ou menos a partir da metade do filme fica bem mais difícil definir o que realmente está ocorrendo. O homem do som aparece em vários locais da cidade, observando pessoas que aparentam a mesma passividade de Kris e Jeff, e depois num salão onde Jeff está comendo, mas não parece que consegue perceber sua presença. Kris sim, e quando o homem do som se levanta, ela o segue, mas em seguida estão no local de criação dos porcos, com Kris segurando uma arma e matando o homem.
No local, Kris e Jeff encontram caixas com fichas sobre eles, com suas fotos e dos procedimentos de transferência de larvas que ele realizou, além de fichas de outras pessoas; e logo as pessoas também estão no local, cuidando dos porcos.
Na última cena, Kris está abraçada a um porquinho, como se fosse seu bebê.
Cada um que pense o que quiser. Eu desisti.


Escape From Tomorrow (2013)

Roy Abramsohn e Katelynn Rodriguez, pai e filha no mundo dos pesadelos (Mankurt Media).

O excepcional escritor argentino Jorge Luis Borges escreveu certa vez, não sei bem em que livro, que nos sonhos – e, por extensão, imagino que também nos pesadelos – as coisas podem assumir aspectos diferentes do que têm na vida real. Ele citava como exemplo o fato de, em um sonho, um tigre não parecer nada ameaçador, e um espelho transmitir um profundo sentimento de terror.
Alguns filmes conseguem se aproximar dessa percepção, fazendo com que objetos ou situações comuns transmitam uma sensação inesperada; não necessariamente de pavor, mas de tamanha estranheza que podem provocar a sensação de medo, ou levar o pensamento de quem assiste nessa direção.
Um desses filmes, para mim, é Escape From Tomorrow.
O filme esteve envolvido em uma polêmica e, pelas informações, um processo da Disney, uma vez que várias imagens foram obtidas, sem permissão, dentro do Walt Disney World, e a visão que o diretor Randy Moore apresenta não é das melhores.
Às vezes, dá para perceber que imagens genéricas do parque estão ao fundo, enquanto os atores representam as cenas. Outras, parece que os atores realmente estão no parque. Vai saber... Seja como for, as imagens genéricas de várias partes do Disney World abrem o filme, intercaladas com os créditos. E, numa delas, filmada de uma montanha russa, aparentemente ocorre um acidente. Não dá para saber muito bem, porque a imagem é cortada rapidamente e só ouvimos o barulho, que pode ser de uma cabeça sendo arrebentada ao passar por um túnel de rochas. Não que eu tenha ouvido barulhos de cabeças sendo arrebentadas na vida real, mas parece com o barulho de uma cabeça sendo arrebentada em filmes. Se for isso, posso até propor uma explicação: a cabeça era a do personagem central, e tudo o que ocorre depois é uma espécie de passeio pelo purgatório, ou pelo inferno.
Um homem está em seu último dia no parque, com a esposa, a filha e o filho pequenos, quando recebe um telefonema dizendo que ele perdeu seu emprego. Ainda assim, ele esconde a verdade da esposa e continuam o passeio, percorrendo as atrações.
Num dos passeios, ele começa a ter o que parece ser uma bad trip, com alucinações nas quais os bonecos assumem atitudes hostis, os olhos do filho ficam totalmente escuros e ele ouve a esposa dizer que o odeia.
A todo tempo ele encontra duas adolescentes francesas, e demonstra interesse por elas, seguindo-as enquanto leva o filho para cá e para lá.
As situações que encontra e os personagens que surgem em seu caminho tornam-se cada vez mais estranhos e deslocados, sem que seja possível definir se são parte de sua alucinação.
Várias cenas são recheadas de insinuações eróticas e de fantasias/alucinações sexuais, inclusive com uma mulher que o hipnotiza com a pedra de seu colar e o leva até um quarto de hotel e transa com ele, enquanto os filhos dos dois aguardam na sala.
Do nada, o sujeito é raptado por duas pessoas que usam uma arma de raios em seu pênis. Quando acorda, ele está no que é chamado de Base 21, e que um homem diz que fica embaixo do Spaceship Earth, no Epcot. O homem lê suas memórias e lhe diz que ele faz parte de uma experiência na qual até mesmo o fato de ter sido despedido faz parte.
O final é uma alucinação total, e não vou falar mais nada, para aqueles que realmente pretendem assistir ao filme.
É um delírio maravilhoso. E eu adoraria ter entendido.