Philip K. Dick
Um Autor em Busca da Realidade
Gilberto Schoereder
Quando Philip K. Dick morreu, em 2 de março de 1982, o filme Blade Runner ainda não estava em cartaz. Além de não ter visto a montagem final, o escritor não chegou a conhecer o sucesso e reconhecimento internacional que Blade Runner lhe daria.
Na verdade, Philip K. Dick já era considerado entre os melhores escritores de FC do mundo, mas o que veio a seguir foi a construção de uma espécie de mito, um culto de seguidores por todo o mundo, assim como um culto de pessoas que abominam sua obra sob vários aspectos, às vezes considerando-a mal escrita, ou alucinada e delirante demais, chegando às raias da paranoia.
Seus livros têm, realmente, tudo isso. Nem sempre são bem escritos e a alucinação, delírio e paranoia ocupam, muitas vezes, posições de destaque no desenvolvimento dos temas. Mas o que para uns representa o que há de pior em seus livros e na FC, para outros é justamente seu maior mérito. Quando se diz que Philip K. Dick possui o melhor conjunto de obras da FC, não se está querendo afirmar que seus livros são os melhores, mas sim que o conjunto se encontra entre os mais coerentes da FC, perseguindo um tema central e esgotando-o por meio de abordagens sucessivas e, às vezes, sutilmente diferentes.
O inglês J.G. Ballard, ao analisar a função da FC no mundo atual, a partir das transformações ocorridas na sociedade mundial nos anos 1960 e 70, encarava-a como uma das únicas manifestações possíveis do real. Para ele – e para tantos outros que não mais suportam a futilidade das relações sociais, econômicas, políticas, etc. – a única realidade possível é a que está em nosso interior, a que imaginamos, uma vez que o mundo ao nosso redor transformou-se numa sucessão de mentiras, inverdades e inversões de valores, o tipo de inversão que permite que presidentes de grandes nações afirmem que o meio de se obter a paz é através da guerra. E sem serem contestados seriamente.
Philip K. Dick explorou essa situação ao máximo, levando os mundos que criou aos limites da loucura, delírio e paranoia, e esse é o ponto central de sua obra. Nas principais histórias de Philip K. Dick, nada é o que aparenta ser. Blade Runner, o filme, segue o mesmo processo descrito por ele tantas vezes em seus livros, pois nada mais é do que uma pálida cópia do original, no qual o autor chega a propor a existência de dois Centros de Justiça e a possibilidade de Deckard ser, ele próprio, um androide. Segundo Dick, se o roteiro do filme fosse seguir o livro, daria umas 16 horas de projeção, o que seria inviável.
Os mundos imaginados por Philip K. Dick têm muito a ver com os anos 1990, a época em que as mentiras atingiram uma perfeição que, até então, só existia na ficção. A era do cover e da "nova ordem mundial", da miséria que se alastra pelo mundo, agora em novos sabores – norte e sul – e da "guerra limpa" transmitida ao vivo para todos os lares do planeta, cristãos ou não.
Como dizia Ballard, o mundo que nos cerca é absolutamente falso. Torna-se, então, quase impossível definir valores, cercar a verdade ou mesmo estabelecer uma forma de se chegar até uma verdade, tamanha é a confusão que nos é transmitida dia a dia, o massacre através da televisão, publicidade e o que Ballard chamou de "a política conduzida como um ramo da propaganda".
Não sei se Philip K. Dick previu isso durante os anos 1960. Os que são ligados à FC de alguma forma gostam de procurar previsões nas histórias, mas nesse caso a criação de seus mundos e sociedades paranóicas e doentes parece ter sido resultado de um exercício de observação da sociedade mundial em geral, e norte-americana em particular. Uma observação de uma lucidez capaz de deixar qualquer um louco. A lucidez e loucura que não são antagônicas em seu universo; pelo contrário, encontram-se perigosamente próximas.
Algumas pessoas estranham o fato de suas histórias não apresentarem tantas características dos anos 1960 quanto se imaginava que deveriam. Existe pouco ou nada do pensamento paz e amor hippie da época, ou da feroz postura anticonsumista dos jovens dos anos 60. Mas é justamente aí que residem suas observações mais agudas, rejeitando o otimismo exagerado e, de certa forma, até mesmo injustificado da época – porque tratava-se de um sonho e não de uma conquista real e efetiva – e propondo o pesadelo de um mundo indefinido, um terreno onde ninguém pode pisar com certeza de não cair, porque está constantemente mudando.
A paranoia é plenamente justificada. Targ e Puthoff, dois físicos do Stanford Research Institute, abrem um capítulo do seu livro sobre pesquisas no campo parapsicológico com uma citação anônima: "Só pelo fato de você ser um paranoico, isto não significa que eles não estejam atrás de você a fim de pegá-lo".
Nos mundos de Philip K. Dick as realidades estão em constante mutação, independente da vontade dos pobres personagens. A realidade deles é escorregadia, difícil de se definir, como é hoje, quando o cidadão comum ou, em outras palavras, 99,99% dos habitantes do planeta, não tem condições de determinar coisa alguma, a começar por seu destino. A verdade é transformada, como a moda, de acordo com interesses aos quais ele não tem acesso e, frequentemente, sequer conhecimento.
Não era previsão, mas apenas uma profunda consciência das formas e meios dos quais se utiliza o poder, o establishment, para opor-se a qualquer tentativa de mudança que implique em desestruturá-lo e fazê-lo perder força. A busca de interiorização e o anticonsumismo hippie seriam, primeiramente, assimilados, e depois completamente transformados. O bom não é mais o profundo, mas o superficial, consumido em grandes doses de shopping centers pelo mundo. Philip K. Dick sabia, ou pelo menos desconfiava, que o mundo estava sendo lindamente empacotado, assim como sabia que dentro desse pacote não haveria coisa alguma, e que essa falta de valores nos quais basear uma existência causaria uma desestruturação na sociedade e nos indivíduos. O que é real e o que não é? Qual a verdadeira guerra do golfo? Qual é a penúltima verdade? Vamos engolindo essas coisas e muito mais.
A influência dos anos 1960 é visível em seus livros pelas referências às drogas – como em O Homem Duplo ou Os Três Estigmas de Palmer Eldritch – e à mística religiosa, budista, hindu ou cristã – como em O Homem do Castelo Alto, O Deus da Fúria, A Invasão Divina, Valis e outros. Os dois elementos funcionam não apenas como citações, mas como formas de se atingir realidades alternativas. São instrumentos para se trafegar através das realidades, do visível e do invisível.
A visão mística do mundo é muito forte em suas obras. O ponto central de seu pensamento à respeito do mundo parece estar ligado à noção predominantemente hindu de que o mundo está coberto pelo "véu de Maya", a deusa da ilusão. O que vemos é uma parte da verdade, e precisamos descobrir as formas de alcançar outros níveis de realidade, levantar o véu da ilusão.
Mas em A Invasão Divina, por exemplo, ele estende essa noção à religião cristã, pretendendo que o planeta Terra está cercado por uma zona de Mal que mantém Deus afastado. O enredo propõe que Deus foi separado do mundo após a derrota dos judeus em Massada, e enviado ao planeta CY30, e então as esperanças dos homens se desfizeram. A proposta de O Deus da Fúria é semelhante: a Terra está sob o domínio do Mal, ao contrário do que pensam os cristãos. O Mal é representado pelo "não-conhecimento", a confusão de informações contraditórias, algo que os habitantes desse final de século conhecem ou deveriam conhecer muito bem. Dick chega a utilizar-se da frase de Cristo na cruz – "Pai, perdoai-os, porque não sabem o que fazem" – como um exemplo de que o mundo estava, a partir daquele instante, dominado pelo "não-conhecimento", o Mal, e que a própria ideia cristã de que Cristo nos teria salvo demonstra a ignorância em que nos encontramos. Esse pensamento está diretamente relacionado ao gnosticismo, doutrina que se desenvolveu a partir do século 3 e que defendia exatamente esse conceito.
São poucos os escritores que conseguiram, como Philip K. Dick, atacar as nossas realidades, mostrando como são frágeis os conceitos que elaboramos e a vida que construímos em torno deles. Doris Lessing construiu uma ficção de grande força e impacto trafegando por caminhos semelhantes na série Canopus em Argos. E pouco mais do que isso.
Dizem hoje que Dick influenciou o surgimento da literatura de FC conhecida como cyberpunk. Não sei se foi realmente assim, mas não é de estranhar. Ainda que os métodos e as formas sejam diferentes, discutem realidades alternativas.
Seja como for, me parece que sua maior e definitiva obra foi a de ter descoberto a grande e penosa enrascada em que todos nós estamos metidos, e que ele não mais terá de enfrentar. Paranoico ou não, o mundo está aí para confirmar muitas de suas posições.