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Philip K. Dick - Um Autor em Busca da Realidade

Livros/Matérias

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data01/01/1998
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Um dos maiores autores da história da FC, Philip K. Dick viveu uma busca constante pela realidade por trás da realidade.

Philip K. Dick
Um Autor em Busca da Realidade

Gilberto Schoereder

Quando Philip K. Dick morreu, em 2 de março de 1982, o filme Blade Runner ainda não estava em cartaz. Além de não ter visto a montagem final, o escritor não chegou a conhecer o sucesso e reconhecimento internacional que Blade Runner lhe daria.
Na verdade, Philip K. Dick já era considerado entre os melhores escritores de FC do mundo, mas o que veio a seguir foi a construção de uma espécie de mito, um culto de seguidores por todo o mundo, assim como um culto de pessoas que abominam sua obra sob vários aspectos, às vezes considerando-a mal escrita, ou alucinada e delirante demais, chegando às raias da paranoia.
Seus livros têm, realmente, tudo isso. Nem sempre são bem escritos e a alucinação, delírio e paranoia ocupam, muitas vezes, posições de destaque no desenvolvimento dos temas. Mas o que para uns representa o que há de pior em seus livros e na FC, para outros é justamente seu maior mérito. Quando se diz que Philip K. Dick possui o melhor conjunto de obras da FC, não se está querendo afirmar que seus livros são os melhores, mas sim que o conjunto se encontra entre os mais coerentes da FC, perseguindo um tema central e esgotando-o por meio de abordagens sucessivas e, às vezes, sutilmente diferentes.
O inglês J.G. Ballard, ao analisar a função da FC no mundo atual, a partir das transformações ocorridas na sociedade mundial nos anos 1960 e 70, encarava-a como uma das únicas manifestações possíveis do real. Para ele – e para tantos outros que não mais suportam a futilidade das relações sociais, econômicas, políticas, etc. – a única realidade possível é a que está em nosso interior, a que imaginamos, uma vez que o mundo ao nosso redor transformou-se numa sucessão de mentiras, inverdades e inversões de valores, o tipo de inversão que permite que presidentes de grandes nações afirmem que o meio de se obter a paz é através da guerra. E sem serem contestados seriamente.
Philip K. Dick explorou essa situação ao máximo, levando os mundos que criou aos limites da loucura, delírio e paranoia, e esse é o ponto central de sua obra. Nas principais histórias de Philip K. Dick, nada é o que aparenta ser. Blade Runner, o filme, segue o mesmo processo descrito por ele tantas vezes em seus livros, pois nada mais é do que uma pálida cópia do original, no qual o autor chega a propor a existência de dois Centros de Justiça e a possibilidade de Deckard ser, ele próprio, um androide. Segundo Dick, se o roteiro do filme fosse seguir o livro, daria umas 16 horas de projeção, o que seria inviável.

Os mundos imaginados por Philip K. Dick têm muito a ver com os anos 1990, a época em que as mentiras atingiram uma perfeição que, até então, só existia na ficção. A era do cover e da "nova ordem mundial", da miséria que se alastra pelo mundo, agora em novos sabores – norte e sul – e da "guerra limpa" transmitida ao vivo para todos os lares do planeta, cristãos ou não.
Como dizia Ballard, o mundo que nos cerca é absolutamente falso. Torna-se, então, quase impossível definir valores, cercar a verdade ou mesmo estabelecer uma forma de se chegar até uma verdade, tamanha é a confusão que nos é transmitida dia a dia, o massacre através da televisão, publicidade e o que Ballard chamou de "a política conduzida como um ramo da propaganda".
Não sei se Philip K. Dick previu isso durante os anos 1960. Os que são ligados à FC de alguma forma gostam de procurar previsões nas histórias, mas nesse caso a criação de seus mundos e sociedades paranóicas e doentes parece ter sido resultado de um exercício de observação da sociedade mundial em geral, e norte-americana em particular. Uma observação de uma lucidez capaz de deixar qualquer um louco. A lucidez e loucura que não são antagônicas em seu universo; pelo contrário, encontram-se perigosamente próximas.
Algumas pessoas estranham o fato de suas histórias não apresentarem tantas características dos anos 1960 quanto se imaginava que deveriam. Existe pouco ou nada do pensamento paz e amor hippie da época, ou da feroz postura anticonsumista dos jovens dos anos 60. Mas é justamente aí que residem suas observações mais agudas, rejeitando o otimismo exagerado e, de certa forma, até mesmo injustificado da época – porque tratava-se de um sonho e não de uma conquista real e efetiva – e propondo o pesadelo de um mundo indefinido, um terreno onde ninguém pode pisar com certeza de não cair, porque está constantemente mudando.
A paranoia é plenamente justificada. Targ e Puthoff, dois físicos do Stanford Research Institute, abrem um capítulo do seu livro sobre pesquisas no campo parapsicológico com uma citação anônima: "Só pelo fato de você ser um paranoico, isto não significa que eles não estejam atrás de você a fim de pegá-lo".

Nos mundos de Philip K. Dick as realidades estão em constante mutação, independente da vontade dos pobres personagens. A realidade deles é escorregadia, difícil de se definir, como é hoje, quando o cidadão comum ou, em outras palavras, 99,99% dos habitantes do planeta, não tem condições de determinar coisa alguma, a começar por seu destino. A verdade é transformada, como a moda, de acordo com interesses aos quais ele não tem acesso e, frequentemente, sequer conhecimento.
Não era previsão, mas apenas uma profunda consciência das formas e meios dos quais se utiliza o poder, o establishment, para opor-se a qualquer tentativa de mudança que implique em desestruturá-lo e fazê-lo perder força. A busca de interiorização e o anticonsumismo hippie seriam, primeiramente, assimilados, e depois completamente transformados. O bom não é mais o profundo, mas o superficial, consumido em grandes doses de shopping centers pelo mundo. Philip K. Dick sabia, ou pelo menos desconfiava, que o mundo estava sendo lindamente empacotado, assim como sabia que dentro desse pacote não haveria coisa alguma, e que essa falta de valores nos quais basear uma existência causaria uma desestruturação na sociedade e nos indivíduos. O que é real e o que não é? Qual a verdadeira guerra do golfo? Qual é a penúltima verdade? Vamos engolindo essas coisas e muito mais.
A influência dos anos 1960 é visível em seus livros pelas referências às drogas – como em O Homem Duplo ou Os Três Estigmas de Palmer Eldritch – e à mística religiosa, budista, hindu ou cristã – como em O Homem do Castelo Alto, O Deus da Fúria, A Invasão Divina, Valis e outros. Os dois elementos funcionam não apenas como citações, mas como formas de se atingir realidades alternativas. São instrumentos para se trafegar através das realidades, do visível e do invisível.

A visão mística do mundo é muito forte em suas obras. O ponto central de seu pensamento à respeito do mundo parece estar ligado à noção predominantemente hindu de que o mundo está coberto pelo "véu de Maya", a deusa da ilusão. O que vemos é uma parte da verdade, e precisamos descobrir as formas de alcançar outros níveis de realidade, levantar o véu da ilusão.
Mas em A Invasão Divina, por exemplo, ele estende essa noção à religião cristã, pretendendo que o planeta Terra está cercado por uma zona de Mal que mantém Deus afastado. O enredo propõe que Deus foi separado do mundo após a derrota dos judeus em Massada, e enviado ao planeta CY30, e então as esperanças dos homens se desfizeram. A proposta de O Deus da Fúria é semelhante: a Terra está sob o domínio do Mal, ao contrário do que pensam os cristãos. O Mal é representado pelo "não-conhecimento", a confusão de informações contraditórias, algo que os habitantes desse final de século conhecem ou deveriam conhecer muito bem. Dick chega a utilizar-se da frase de Cristo na cruz – "Pai, perdoai-os, porque não sabem o que fazem" – como um exemplo de que o mundo estava, a partir daquele instante, dominado pelo "não-conhecimento", o Mal, e que a própria ideia cristã de que Cristo nos teria salvo demonstra a ignorância em que nos encontramos. Esse pensamento está diretamente relacionado ao gnosticismo, doutrina que se desenvolveu a partir do século 3 e que defendia exatamente esse conceito.
São poucos os escritores que conseguiram, como Philip K. Dick, atacar as nossas realidades, mostrando como são frágeis os conceitos que elaboramos e a vida que construímos em torno deles. Doris Lessing construiu uma ficção de grande força e impacto trafegando por caminhos semelhantes na série Canopus em Argos. E pouco mais do que isso.
Dizem hoje que Dick influenciou o surgimento da literatura de FC conhecida como cyberpunk. Não sei se foi realmente assim, mas não é de estranhar. Ainda que os métodos e as formas sejam diferentes, discutem realidades alternativas.
Seja como for, me parece que sua maior e definitiva obra foi a de ter descoberto a grande e penosa enrascada em que todos nós estamos metidos, e que ele não mais terá de enfrentar. Paranoico ou não, o mundo está aí para confirmar muitas de suas posições.