A trajetória dos pactos com o diabo na literatura – e, consequentemente, no cinema também – parece ter começado com a história do doutor Fausto. E, apesar da versão de Goethe ter se tornado a mais conhecida, ela não foi a primeira.
Fausto (Jean-Paul Laurens, s/d).
As fontes históricas apontam para uma origem real da lenda, um dr. Johann Georg Faust (c. 1480 ou 1466 – c. 1541). O editor, acadêmico e estudioso de ficção científica e fantasia, E.F. Bleiler, em The Encyclopedia of Fantasy (1999), cita a mesma pessoa como sendo Georgius Faustus, ou Georgius Sabellicus Faustus Junior, e que seus feitos e vida estão registrados em documentos oficiais, em memórias e cartas datadas do século 16. Segundo Bleiler, ele se autodenominava um Mestre das Artes, astrólogo e especialista em vários tipos de magia da época medieval e renascentista, além de ser alquimista, e viajou por toda a Alemanha.
No texto da Wikipedia, diz-se que, devido a toda a literatura sobre o dr. Fausto que surgiu nos anos posteriores, tornou-se muito difícil definir com exatidão e certeza os feitos históricos do personagem. E.F. Bleiler diz que uma das alegações de Faustus era que, se os livros de Platão e Aristóteles se perdessem, ele poderia recriá-los de memória.
Ele chegou a ser identificado como Johannes Faust, que começou a cursar a universidade de Heidelberg em 1505, mas a cronologia não bate. Também foi identificado como Georgius Helmstetter, que também cursou Heidelberg um pouco mais tarde.
Mefistófeles tornou-se figura central da lenda (Mefistófeles Voando Sobre Wittenberg. Litografia de Eugène Delacroix).
Entende-se que a lenda começou a crescer após sua morte, e em particular com a Reforma protestante – período que começou com a publicação das teses de Lutero, em 1517, e terminou em 1648. Segundo E.F. Bleiler, os luteranos elegeram Fausto como o principal vilão e exemplo de alguém que fez um pacto com o diabo.
No entanto, como lembra Bleiler, devido a esse desenvolvimento da lenda, o Fausto que acabou por se tornar uma força poderosa na literatura e no pensamento social tem pouco a ver com o Fausto histórico. E o primeiro desenvolvimento do Fausto literário veio com Historia von D. Johann Fausten (1587), publicado por Johann Spies, em Frankfurt-am-Maine, e que veio a ser a base de quase todas as histórias sobre Fausto. Ele relata o pacto realizado entre um professor universitário e Mefistófeles, um demônio a serviço de Lúcifer; segundo o acordo, Fausto ganharia 24 anos de serviços do demônio em troca de sua alma. Assim, com a ajuda de Mefistófeles, Fausto conseguia deslocar-se a grandes distâncias instantaneamente; invadiu o harém de um sultão e teve relações com suas esposas; conjurou a presença de Helena de Troia, com quem conviveu; e realizou diversas magias. Ao final do contrato, claro, foi cortado em pedaços por Mefistófeles.
O livro foi um sucesso devido à sua combinação de temas; não apenas o interesse na reputação lendária do doutor Fausto e o interesse em magia e no ocultismo, mas também o interesse que as histórias de viagens despertavam nos leitores e, claro, os elementos eróticos presentes nas aventuras do doutor.
Mas a história de Fausto ganhou ainda mais popularidade com o livro de Christopher Marlowe, A História Trágica do Doutor Fausto (Ed. Hedra. E com o título a Trágica História do Doutor Fausto, pela Ed. Difel. The Tragical History of Dr Faustus, 1592). Às vezes é apresentado com o título mais longo de The Tragical History of the Life and Death of Doctor Faustus, uma peça que se diz ter sido encenada pela primeira em algum momento entre 1588 e 1593, ano da morte de Marlowe.
Em Horror: 100 Best Books (1988), escrevendo sobre o livro de Marlowe, o sensacional escritor Clive Barker começa seu texto dizendo: “Não é que as histórias antigas são necessariamente as melhores histórias; é mais que as histórias antigas são as únicas histórias. Não existem novos contos, apenas novas maneiras de contá-los. Essa é, pelo menos, a convicção de muitos que estudaram narrativa. Eu faria parte desse clã”.
Para Barker, uma parte da história é a história de um homem ambicioso, machucado pelo excesso de orgulho, ou curiosidade, ou por outra meia dúzia de qualidades humanas. A outra parte, ele explica, diz respeito ao relacionamento com divindades infernais; fala de alguém que toca uma escuridão interior, um local proibido que promete conhecimento perigoso, mas que é arrebatado pelas forças que pretendia controlar.
Ao comparar com o Fausto de Goethe, Clive Barker diz que, enquanto Goethe salva seu aventureiro com amor e metafísica, Marlowe tem seu doutor implorando por perdão, mas sem ser atendido.
A história de Christopher Marlowe foi adaptada para a TV pelo menos três vezes, todas pela BBC, e para o cinema uma vez.
Richard Burton, em Doutor Faustus (Nassau Films).
A primeira versão televisiva surgiu em 1947, The Tragical History of Doctor Faustus, em adaptação de Stephen Harrison, com David King-Wood como Fausto, e Hugh Griffith como Mefistófeles, e com 1h20 de duração.
A segunda, com o mesmo titulo, foi produzida em 1958, com direção de Ronald Eyre. William Squire interpretou Fausto, e James Maxwell foi Mefistófeles, com 30 minutos de duração.
A terceira surgiu em 1961, com o título encurtado para Doctor Faustus, com Alan Dobie como Fausto, e James Maxwell repetindo seu papel como Mefistófeles.
Uma adaptação para o cinema foi dirigida por Richard Burton e Nevill Coghill em 1967, Doutor Faustus (Doctor Faustus. Lançado no Brasil em DVD da Ocean Pictures). O próprio Burton interpreta Fausto, enquanto Elizabeth Taylor surge como Helena de Troia, e Andreas Teuber como Mefistófeles. O filme teve uma recepção péssima da crítica.
Outra obra consagrada ao pacto com o diabo é Melmoth the Wanderer, escrita por Charles Maturin em 1820 (livro publicado em Portugal pela Editorial Estampa com o título Melmoth, O Viandante). O escritor H.P. Lovecraft – em O Horror Sobrenatural na Literatura (1927) – considera o livro de Maturin uma obra-prima do horror, um livro em que “(...) o conto gótico elevou-se a alturas até então desconhecidas de consumado terror místico”.
Ao chegar a Dublin para visitar seu tio moribundo, o jovem John Melmoth fica sabendo da história de outro membro da família, também chamado John Melmoth, que está vivo desde o século 16, graças a um acordo que fez com o Diabo em troca de sua alma; pelo acordo, ele ganha imortalidade. Mas Melmoth vaga pelo planeta, à procura de alguém que queira assumir o pacto, de modo que ele possa retornar à sua existência normal e salvar sua alma. Só que, por mais que tente, não consegue encontrar alguém disposto a assumir o compromisso.
O historiador e escritor Peter Berresford Ellis, mais conhecido pelo pseudônimo Peter Tremayne, não ficou atrás de Lovecraft aos elogios ao livro (em Horror: 100 Best Books), que ele considera um dos grandes trabalhos do gênero horror em todos os tempos, uma obra-prima do horror gótico. Ele diz que o livro reúne todos os elementos clássicos do terror gótico; é repleto de calabouços, castelos, fantasmas, canibalismo e monstros – reais e imaginários. Tremayne lembra que o livro foi saudado por grandes escritores como Walter Scott, Thackeray, Baudelaire, Rossetti e Honoré de Balzac como um marco da literatura, não apenas de terror, mas de qualquer gênero. Balzac gostou tanto que escreveu uma sequência, Melmoth Reconciliado (Melmoth Réconcilié, 1835), na qual Melmoth consegue transferir o seu pacto a um estelionatário de Paris, que o repassa a inúmeras outras pessoas, ou vítimas, como diz Lovecraft ao falar sobre o livro.
O crítico literário irlandês Aódh De Blacam colocou Maturin na mesma tradição de Jonathan Swift, dublinense como Maturin. O crítico também entendeu que Maturin foi o fundador de uma escola irlandesa de histórias de terror, que inclui Fitzjames O’Brien, Sheridan Le Fanu e Bram Stoker, e que sem ele talvez não existissem clássicos como Carmilla (de Le Fanu) ou Drácula (de Bram Stoker). O próprio Tremayne dá sua contribuição a essa lista de escritores que a obra de Maturin influenciou, afirmando que “se não fosse por Melmoth the Wanderer talvez não existisse o clássico O Retrato de Dorian Gray (1891)”, de Oscar Wilde, outro dublinense que era grande admirador do trabalho de Maturin. No livro de Maturin existe a referência a um retrato de J. Melmoth pendurado em um quarto obscuro na antiga mansão de Melmoth, como uma lembrança escondida de que ele havia vivido por quase dois séculos. Tremayne diz que Oscar Wilde fez um tributo a Maturin; durante seus últimos e tristes dias no exílio em Paris, ele assumiu o pseudônimo Sebastian Melmoth.
Tremayne lamenta que o livro não seja relançado com mais frequência e que, ainda que sempre muito citado por críticos, ele raramente é lido, a não ser por fãs ardentes do gênero. “Isso é muito triste. Mesmo nas minhas releituras dele, existem passagens que nunca falham em fazer meu couro cabeludo coçar, fazem um formigamento gelado enviar calafrios pelas costas, me fazem espreitar nervosamente as janelas e portas do meu quarto batendo e me fazem ficar mais próximo da luz de minha lâmpada de cabeceira. Mesmo com a passagem do tempo, Melmoth permanece como uma obra-prima resistente. É um livro que deve ser lido por todo escritor aspirante no gênero, particularmente hoje em dia, quando qualidades mais literárias estão sendo substituídas pelo sangue Technicolor, como a lenta construção da tensão e do medo psicológico, que parece tão em falta no gênero hoje”.
Lovecraft, apesar de considerar a obra entre as maiores do gênero, não tem problemas em também criticar alguns de seus aspectos. “O arcabouço da história é bisonho:”, ele escreveu, “peca por extensão tediosa, episódios divagantes, narrações dentro de narrações e artificialismo de situações e coincidências”. No entanto, ele também vê que “(...) em vários pontos da interminável digressão sente-se o pulsar de uma força que não se encontra em nenhuma obra anterior do gênero – uma afinidade com a verdade essencial da natureza humana, uma compreensão das fontes mais profundas do autêntico pavor cósmico”. Assim, “O medo é retirado da esfera do convencional e exaltado de modo a transformar-se numa nuvem negra pairando sobre o destino dos homens”.
Quando Tremayne diz que O Retrato de Dorian Gray talvez não tivesse sido escrito se não fosse pela influência da obra de Maturin, ele não apresenta o livro de Oscar Wilde necessariamente como fazendo parte das histórias de pactos com o Diabo. No entanto, John Grant lembra que o livro, apesar de dificilmente ser instintivamente classificado como um conto faustiano, certamente é inspirado por Fausto. Não existe um contrato entre Dorian Gray e uma figura diabólica, não há nada explícito. Dorian Gray é uma espécie de musa do pintor Basil Hallward, que está retratando o jovem. Junto deles está Lord Henry Wotton, que está expondo seu ponto de vista hedonista, acreditando que a beleza é o único aspecto da vida que vale a pena ser perseguido. Dorian se deixa levar pelas ideias de Lord Henry e expressa o desejo de que o quadro com a sua imagem pudesse envelhecer enquanto ele permanecesse sempre jovem.
Para quem ainda não conhece a história, o pedido torna-se realidade. Mais do que isso, a imagem do quadro não apenas envelhece, mas transforma-se de acordo com as atitudes cada vez mais horrendas de Dorian Gray, chegando ao ponto de cometer assassinato.
A história teve inúmeras adaptações para o cinema, a começar pelo curta de 1910, produção dinamarquesa dirigida por Axel Strom, até a versão de 2009, O Retrato de Dorian Gray (Dorian Gray), dirigida por Oliver Parker.
A versão mais famosa, e certamente a melhor, é O Retrato de Dorian Gray (The Picture of Dorian Gray), dirigida por Albert Lewin em 1945, com George Sanders como Lord Henry Wotton, e Hurd Hatfield como Dorian Gray. O crítico Phil Hardy destaca as atuações dos dois, e também a fotografia de Harry Stradling, que ganhou o Oscar por seu trabalho neste filme. As filmagens são em preto e branco, com exceção do final, quando o retrato é mostrado em cores, com toda a sordidez acumulada por Dorian ao longo dos anos.
O Retrato de Dorian Gray (1945. MGM).
A versão de 2009 também é bem interessante, com Ben Barnes como Dorian Gray, um jovem inocente que chega a Londres no final do século 19 para receber uma herança, e depois de ter seu retrato pintado passa pelas transformações morais e éticas. Esse aspecto é bem tratado no filme, com a transformação do inocente Dorian num ser hediondo.
A versão de 2009 de O Retrato de Dorian Gray (Ealing Studios/ Alliance Films/ Fragile Films).
E, é claro, temos a versão mais famosa do pacto com o Diabo, na peça Fausto, de Goethe, para alguns críticos a principal obra literária da Alemanha em todos os tempos. Segundo consta, Goethe começou a desenvolver a história em 1772 e trabalhou nela até a sua morte, em 1832. A primeira parte foi publicada em 1808 e a segunda em 1832, após sua morte.
Ao comparar a obra de Goethe com a de Christopher Marlowe, Clive Barker disse que o tratamento que Goethe deu ao tema é filosoficamente mais complexo e possivelmente contém personagens construídos de forma mais sensível, e é “certamente” a mais humana das duas interpretações.
Ilustração de Harry Clarke para Fausto, de Goethe, 1925.
E.F. Bleiler lembra que a parte final do Fausto de Goethe foi interpretada de diversas maneiras, mas que geralmente considera-se que se trata de um relato consciente e metafórico sobre aspectos do que era, então, o homem moderno. Ele diz que Fausto não é apenas um homem que esgotou seus recursos eruditos, como o Fausto de Marlowe, mas um homem que reconhece o vazio de seu conhecimento, deseja experimentar todas as experiências humanas e passa por momentos trágicos, mas cresce com suas falhas. Seu associado, Mefistófeles, não é o Diabo cristão, mas, de certa forma, uma espécie de fluxo, equivalente ao Shiva, destruindo para que novas e melhores coisas possam surgir.
Para Bleiler, o Fausto de Goethe criou uma nova “persona” para o Diabo. Ele não é mais uma monstruosidade rude e teratológica, um cavalheiro encantador, insinuante, sarcástico e fascinante que pode se sentir à vontade nas salas da sociedade educada. “O adjetivo ‘mefistofélico” tem um significado bem diferente de ‘satânico’”, diz Bleiler.
No cinema, provavelmente a mais famosa adaptação seja Fausto (Faust, 1926), do famoso diretor alemão Friedrich Wilhelm Murnau, com Gösta Ekman como Fausto, e Emil Jannings como Mefistófeles, ator que foi o primeiro a receber o Oscar de Melhor Ator, em 1929. O filme também foi o último que Murnau fez na Alemanha, antes de se mudar para Hollywood. Foi baseado na obra de Goethe, mas também aproveitou elementos da lenda mais antiga (No Brasil, lançado em DVD da Continental). Inicia com uma aposta entre um arcanjo e o Diabo, com a Terra como prêmio, de que o alquimista Fausto não pode subverter-se ao Mal. Assim, o Diabo lança uma praga sobre a cidade de Fausto e, depois, envia Mefisto para tenta-lo com a possibilidade de que poderá curar a praga se assinar um pacto. Fausto concorda em fazer uma tentativa por 24 horas e, nesse período, consegue curar as pessoas, mas elas também percebem que ele não consegue tocar num crucifixo; notando que ele é aliado de Satã, a população o apedreja. Ele foge para sua casa e faz nova barganha com Mefisto, conseguindo juventude e a mulher mais linda da Itália. No entanto, quando está para desfrutar de sua companhia, as 24 horas vencem. Então, Fausto concorda em fazer um pacto permanente.
O clássico de Murnau (UFA).
Segundo John Grant (em The Encyclopedia of Fantasy), a história é contada com um tremendo sentido de melodrama e até com algum humor um tanto desajeitado. Para ele, o que o filme tem de genuíno e poderoso é a força da visão de Murnau. Cada cena é maravilhosamente concebida, como se ele estivesse criando pequenas obras de arte.
Em 1994, o tcheco Jan Svankmajer dirigiu uma adaptação, também chamada Faust, baseada nas obras de Goethe, Marlowe e das lendas tradicionais, com Petr Cepek como Fausto. No entanto, pelos relatos dos críticos e sinopses disponíveis, trata-se de uma adaptação extremamente livre da história, que se passa nos tempos atuais. A produção mistura filmagens e vários tipos de animação, de stop-motion a claymation. O trabalho do diretor pode ser encontrado no Brasil no DVD Delírios de Jan Svankmajer (Amazon Digital), ainda que não traga o seu Faust; e também no DVD Alice (Magnus Opus).
Faust (1994. BBC/ Athanor/ CNC/ Lumen Films/ Pandora Cinema).
Outra versão surgiu em 2011, Fausto (Faust), dirigido pelo russo Alexander Sokurov, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2011.
Em 1947, o consagrado escritor alemão Thomas Mann também publicou uma adaptação à historia de Fausto, com seu Doutor Fausto (Doktor Faustus. Companhia das Letras. Ou com o título mais longo: Doutor Fausto: a vida do compositor alemão Adrian Leverkühn, contada por um amigo). Ao recontar a história, Mann situou a história na primeira metade do século 20, com alusões ao crescimento do nazismo em seu país.
Narra a vida do compositor do título, narrada por seu amigo de infância, Serenus Zeitblom. Adrian é um homem extremamente inteligente, mas que deseja mais da vida; chega a contrair sífilis intencionalmente para ficar louco e, assim, poder ampliar sua capacidade criativa. E, em sua loucura, tem um contato com um ser que pode ser Mefistófeles, renunciando ao amor e trocando sua alma por 24 anos de intensa criatividade musical.
A obra de Thomas Mann foi adaptada para o cinema em 1982, com direção de Franz Seitz, com Jon Finch como Adrian Leverkühn, André Heller como o Diabo, e Hanns Zischler como Serenius. O filme foi muito bem recebido e foi premiado no 13º Festival Internacional de Cinema de Moscou, em 1983.
Em 1842 surge outro livro com um pacto com o demônio, Die Schwarze Spinne (A Aranha Negra), de Jeremias Gotthelf, pseudônimo do autor suíço Albert Bitzius. O escritor Thomas Tessier, comentando o livro em Horror: 100 Best Books, lembra que, até 1949, o livro tinha sido ignorado, quando Thomas Mann escreveu uma crítica extremamente elogiosa, iniciando um período em que o livro foi traduzido para vários idiomas e passou a ser visto como um dos principais da literatura do gênero.
A Aranha Negra (Pintura de Franz Karl Basler-Kopp. s/d).
O pacto com o demo é realizado por uma mulher de uma vila suíça. A região era aterrorizada por cavaleiros tirânicos que tiravam tudo o que os aldeões possuíam e usavam de extrema violência. O diabo surge na forma de um caçador e o pacto é selado com um beijo demoníaco na face da mulher, prometendo livrá-los dos problemas com os cavaleiros e exigindo em troca uma criança recém-nascida, não batizada. Só que a mulher tenta ludibriar o diabo e batiza a primeira criança nascida na vila. O diabo se vinga fazendo surgir uma marca na face da mulher, exatamente onde ela foi beijada; e a marca cresce, assumindo a forma de uma aranha e, posteriormente, inúmeras aranhas começam a surgir da marca em seu rosto, espalhando uma praga e mortes na região.
Tessier diz que a história de Gotthelf é um dos primeiros exemplos na literatura do corpo humano sendo invadido por forças alienígenas ou demoníacas. “O diabo é eventualmente pego numa armadilha, mas é mais um empate do que uma simples vitória. O mal permanece próximo, uma ameaça constante e uma tentação perigosa, como nos é mostrado quando ocorre uma reprise do terror duzentos anos depois”.
Muito se falou da mensagem religiosa que a história conteria, mas Tessier vai além dessa visão em sua análise: “Quando A Aranha Negra apareceu pela primeira vez, sua lição religiosa transparente sem dúvida foi tida como o propósito total da novela, e não há como negar que ela tem uma qualidade quase bíblica. No entanto, esse pode ser seu aspecto menos importante. A Aranha Negra é um trabalho ricamente sugestivo, com nítidas conotações políticas e até mesmo ambientais. (...) Mas talvez sua maior força possa ser encontrada em seus personagens muito reais e humanos, e na intensidade emocional de sua terrível situação”.
A história teve uma adaptação para o cinema em 1921 (Die Schwarze Spinne), um filme mudo com produção alemã, dirigido por Siegfried Philippi.
Em 1983, outra versão foi realizada, com o mesmo título e direção de Mark M. Rissi, porém adaptando para um ambiente moderno.
O grande autor norte-americano Washington Irving (1783-1859) – mais conhecido por seus contos A Misteriosa Alucinação do Sr. Rip (Rip Van Winkle, 1819) e O Cavaleiro Sem Cabeça (The Legend Of Sleepy Hollow, 1820), no Brasil ambos publicados em O Cavaleiro Sem Cabeça – publicou, em 1824, o conto The Devil and Tom Walker, na coletânea Tales of a Traveller. É mais uma aproximação à lenda de Fausto, dessa vez com o personagem William Kidd, famoso pirata, que teria feito um pacto com o Diabo para proteger seu tesouro, enterrado numa floresta, e que morreu em 1701, sem ter tocado no dinheiro, ainda que o Diabo continue a protegê-lo. A história prossegue em 1727, quando Tom Walker, um homem ganancioso tem um encontro com o capeta, que lhe oferece o tesouro, mas é claro que o preço é bem alto.
O conto foi a inspiração para outro escritor norte-americano, Stephen Vincent Benét (1898-1943), compor o seu O Diabo e Daniel Webster (The Devil and Daniel Webster), história que apareceu em 1936 na revista The Saturday Evening Post. O personagem central é um fazendeiro de New Hampshire que vendeu sua alma ao Diabo em troca de sete anos de prosperidade. Quando o diabo vai cobrar a dívida, ele consegue negociar mais três anos, mas depois disso o Diabo quer cobrar a conta de qualquer maneira. Assim, o fazendeiro contrata Daniel Webster – uma versão fictícia de um famoso advogado, político e orador dos EUA, nascido em 1782 e falecido em 1852 – para defender sua causa. Os dois apresentam seus argumentos e Webster concorda em apresentar o caso a um júri e juiz de almas danadas, desde que sejam americanas. E consegue vencer o Diabo.
Edward Arnold como Daniel Webster, em O Homem Que Vendeu a Alma (William Dieterle Productions).
A história foi adaptada para o cinema em 1941, em O Homem Que Vendeu a Alma (The Devil and Daniel Webster), com direção de William Dieterle. Posteriormente, o título do filme foi alterado para All That Money Can Buy, para não ser confundido com um filme lançado pela própria RKO naquele ano (O Diabo é a Mulher/ The Devil and Miss Jones, uma comédia dirigida por Sam Wood, com Jean Arthur, e que nada tem a ver com o diabo). O próprio Stephen Vincent Benét adaptou a história, com Dan Totheroh.
Em 2003, outra adaptação, bem livre, foi apresentada na comédia O Julgamento do Diabo (Shortcut to Happiness), com direção de Alec Baldwin (com o pseudônimo Harry Kirkpatrick), ele mesmo interpretando Jabez Stone, não mais como um fazendeiro, mas um escritor tentando o sucesso. Jennifer Love Hewitt interpreta o Diabo, e Anthony Hopkins é Daniel Webster; Dan Aykroyd é Julius Jensen, amigo de Stone e também escritor, que atinge o sucesso que o outro desejava.
Outro pacto que se tornou bastante conhecido foi o apresentado por Adelbert von Chamisso em O Homem Que Vendeu a Sombra (Peter Schlemihls Wundersame Geschichte, 1814. Também com o título A História Maravilhosa de Peter Schlemihl). Como diz o título, o personagem Peter Schlemihl vende sua sombra para o Diabo, e o conto teve influência em várias culturas e autores, como E.T.A. Hoffmann, Nathaniel Hawthorne e Hans Christian Andersen.
John Clute (em The Encyclopedia of Fantasy) lembra que o crítico George Steiner identificou Fausto como um dos quatro grandes arquétipos literários – juntamente com Don Juan, Hamlet e Dom Quixote – de modo que Fausto parece ter um lugar permanente na imaginação dos escritores ocidentais.
No entanto, Clute comenta, ao longo do último século, duas mudanças fundamentais diminuíram sua importância. Uma foi o crescimento da ética científica, segundo a qual a busca pelo conhecimento é entendida como uma tarefa essencial. A outra é a perda de um universo moral cujos preceitos possam controlar aquele impulso imperativo pós-Faustiano; sem um universo moral, sem o perigo de uma verdadeira danação, Fausto passa a ser o “cientista louco”, sua história deixa de ser um mito e se torna horror, e Mefistófeles se torna um monstro envolvido com um contrato que pode ser rompido.
Mas as variações do tema continuaram acontecendo, uma delas nos primórdios do cinema, com O Estudante de Praga (Der Student von Prag, 1913), produção da Alemanha com direção de Stellan Rye e Paul Wegener. A história foi inspirada pelo conto William Wilson (1839), de Edgar Allan Poe, e pela lenda de Fausto. Segue a aventura do estudante Balduin que, enfrentando dificuldades financeiras, concorda em assinar um pacto com um homem chamado Scapinelli, que lhe garante fortuna e sucesso em troca de sua imagem no espelho. A imagem acaba assumindo vida própria, assombrando Balduin e, posteriormente, levando à sua morte.
O tema do “duplo” é totalmente retirado do conto de Poe, enquanto o pacto vem de Fausto. O filme é tido como um dos antecessores do expressionismo alemão.
Uma segunda versão alemã foi produzida em 1926, O Estudante de Praga (Der Student von Prag; conhecido em inglês também pelos título The Student of Prague; The Man Who Cheated Life; The Soul Eater), com direção de Henrik Galeen. A história é a mesma, mas segundo Phil Hardy (em The Aurum Film Encyclopedia: Horror, 1985), enquanto o primeiro filme enfrentou as dificuldades técnicas próprias da época, a nova versão se beneficiou dos 13 anos de intervalo, nos quais o cinema alemão foi extremamente rico e inventivo. “Juntamente com o diretor de arte Hermann Warm (do famoso O Gabinete do Dr. Caligari, 1919)”, escreveu Hardy, “e o fotógrafo Guenther Krampf, Galeen criou um festival de luz e sombra em paisagens expostas ao vento e quartos claustrofobicamente sufocantes, dando ao filme uma atmosfera de alucinação”.
O Estudante de Praga (1926. Sokal-Film).
Carpis, O Satânico (Cine-Allianz Tonfilmproduktions).
A terceira versão surgiu em 1935, também produzido na Alemanha, com direção de Arthur Robison. Segundo o site do IMDb, o filme teve como titulo em português Carpis, O Satânico. Segundo essa fonte, o Dr. Carpis (Theodor Loos) é quem faz o acordo com o estudante Balduin (Adolf Wohlbrück, posteriormente conhecido como Anton Walbrook). O diretor Robison morreu durante as filmagens e no ano seguinte o filme foi banido pelos nazistas, que realizavam campanha em favor de tudo que eles considerassem ariano; Robison tinha vindo dos Estados Unidos e era judeu.
Alguns críticos entendem que o filme é muito bom, opinião não compartilhada por Phil Hardy, que achou o roteiro muito lento; além disso, ele lembrou que mesmo na época de sua produção, o filme já era considerado ultrapassado, como um retorno aos anos 1920.
Em 1895, a escritora inglesa Marie Corelli (1855-1924) escreveu Réquiem para Satã (The Sorrows of Satan. Editora Juniper), tido como um dos primeiros best-sellers da Inglaterra. Apesar de às vezes ser mal recebida por críticos e escritores da época, Marie Corelli tornou-se uma autora de imenso sucesso e teve defensores como Oscar Wilde. O livro teve como subtítulo “Or the Strange Experience of One George Tempest, Millionaire”.
Tristezas de Satanás (Harbor Productions/ 20th Century Fox).
O George Tempest do título alternativo é um escritor sem sucesso e vivendo na miséria que vê sua vida mudar repentinamente devido à influência de um aristocrata chamado Príncipe Lucio de Rimanez. Claro que o príncipe é ninguém mais do que o Diabo. O escritor eventualmente consegue se redimir de sua associação com Satã.
A história foi filmada por D.W. Griffith, um dos mais importantes diretores de todos os tempos, com o título Tristezas de Satanás (The Sorrows of Satan, 1926). Griffith foi o diretor dos clássicos O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, 1915) e Intolerância (Intolerance, 1916), filmes que mudaram a história do cinema pelo uso de novas técnicas narrativas e pela longa duração.
John Clute provavelmente está correto ao perceber a transformação do Fausto do pacto demoníaco no cientista louco, personagem que invadiu o gênero fantástico, principalmente no cinema, a partir dos anos 1940, e sobre os quais não iremos comentar aqui.
No entanto, algumas versões mais recentes do pacto com o Diabo ainda podem ser encontradas. É verdade que, muitas vezes, em filmes de humor, com a relação sendo transformada em piada, mesmo porque o Diabo parece ter perdido muito de sua força no pensamento popular – talvez porque os humanos têm feito pactos ainda mais aterrorizantes entre eles, com resultados catastróficos, senão individualmente, certamente para a humanidade.
Uma dessas visões está no excelente filme O Fantasma do Paraíso (Phantom of Paradise, 1974), dirigido por Brian De Palma. O musical é uma mistura de O Fantasma da Ópera, de Gaston Leroux, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e Fausto, de Goethe.
William Finley, já transformado no Fantasma (Harbor Productions/ 20th Century Fox).
Musical, comédia e terror misturados num filme que inicialmente não foi muito bem recebido, mas que com o tempo se tornou um cult. William Finley interpreta um compositor de imenso talento, Winslow Leach, que tem suas músicas roubadas pelo diabólico Swan, interpretado por Paul Williams – também responsável pelas músicas. Swan tem uma gravadora que explora ao máximo seus artistas, e também é o dono de O Paraíso, um teatro para shows que deve ser inaugurado em breve. Ele não apenas assume a autoria das músicas que Leach lhe entrega como consegue que ele seja preso, falsamente acusado de tráfico de drogas. Leach passa pelo inferno; é condenado à prisão perpétua em Sing Sing, tem seus dentes extraídos e substituídos por dentes de metal, consegue fugir da prisão e vai à gravadora para destruir os originais das gravações de suas músicas, mas é confrontado por um segurança e tem seu rosto queimado e suas cordas vocais destruídas.
¨ Paul Williams, como Swan, negocia com o Fantasma.
Ele passa a assombrar o Paraíso, usando uma máscara e uma capa, mas Swan percebe que ele é o compositor e oferece um acordo para arranjar as músicas da forma como desejava e escrever a música para sua musa e grande amor, Phoenix (Jessica Harper). O contrato é assinado com sangue, o que já dá uma ideia do que está acontecendo.
Swan acaba substituindo Phoenix pelo cantor Beef (Gerrit Graham), uma figura impagável que é assassinado pelo Fantasma, eletrocutado em pleno palco, para delírio dos fãs.
Gerrit Graham, em sua atuação engraçada como Beef, em O Fantasma do Paraíso.
O contrato com o produtor é terrível. Quando se vê sem saída, com tudo o que lhe importava tendo sido roubado, Leach tenta se matar, mas nem isso é possível; pelo contrato, ele só pode morrer quando Swan morrer. Quando ele tenta matar Swan, nada acontece, porque o próprio Swan também assinou um contrato.
Uma excelente adaptação do tema pacto com o diabo surgiu em 1978, com o livro Coração Satânico (Falling Angel. Editora Best Seller/ Darkside Books), de William Hjortsberg. A história se passa em Nova York, em 1959, quando o detetive particular Harry Angel é contratado por um homem misterioso chamado Louis Cyphre para encontrar um cantor, Johnny Favorite, desaparecido desde a Segunda Guerra Mundial.
A procura de Angel não chega a lugar algum; parece que Favorite desapareceu completamente. E, para piorar a situação, todas as pessoas que ele visita e que poderiam ajudá-lo a encontrar alguma pista, são assassinadas de forma violenta logo após sua visita. Angel torna-se suspeito de ser um assassino.
Entre outras coisas, fica sabendo de um culto vodu que ocorre na cidade e inicia um caso com a alta sacerdotisa desse culto, Epiphany Proudfoot, que também é a filha de Johnny Favorite.
O que Angel descobre é que Louis Cyphre é o próprio Lúcifer, e Favorite está tentando fugir de um contrato que fez com o Diabo, envolvendo sua alma. Favorite alterou sua identidade por meio de um ritual mágico. O final da história, e imagino que a maioria já saiba disso, é que Angel descobre que ele próprio é Favorite.
O escritor William F. Nolan (em Horror: 100 Best Books) diz que o livro é um dos principais livros de terror do século 20, além de ser um dos melhores exemplos do século de ficção policial, com um personagem que merece ser colocado ao lado de Philip Marlowe (personagem criado por Raymond Chandler) e Sam Spade (criado por Dashiel Hammett).
O livro foi adaptado para o cinema como Coração Satânico (Angel Heart, 1987), com direção de Alan Parker. Mickey Rourke é Harry Angel, Robert De Niro é Louis Cyphre, e Lisa Bonet é Epiphany Proudfoot.
Robert De Niro, como Louis Cyphre, em Coração Satânico (Carolco).
No filme, a maior parte da ação se passa em Nova Orleans, e o diretor Alan Parker teve alguns problemas com a censura, que classificou o filme como “X”, o que geralmente só ocorre com filmes pornô. Poderíamos imaginar que isso se deu pela cena de sexo quentíssima e incestuosa entre Angel e Proudfoot, mas o incesto não foi o motivo e sim a movimentação “bundal” de Mickey Rourke. Parker teve de fazer cortes que somaram 10 segundos – sim, 10 segundos – para conseguir a classificação “R”, sem a qual o estúdio não apresentaria o filme.
Seja como for, apesar de não ter sido tão bem recebido pela crítica na época, o filme é muito forte, quase tão bom quanto o livro, e com o tempo recebeu a merecida atenção.
Outra boa variação do tema é O Jogo da Perdição (The Damnation Game, 1985. Na edição portuguesa, O Jogo da Maldição), de Clive Barker, um dos mais importantes e bem sucedidos escritores de terror da atualidade. O próprio autor lembrou que seu livro é uma variação de Fausto, e nele o autor diz que o Inferno é reimaginado a cada geração; e da mesma forma ocorre com os pactos e com os pactuantes; mas, para ele, a história original irá sobreviver a quaisquer obras que procurem retrabalhar o original, por mais radical que as mudanças sejam, porque suas raízes são muito fortes.
Marty Strauss é liberado da prisão sob a condição de trabalhar como guarda-costas do milionário Joseph Whitehead, que obteve sua fortuna devido a um pacto com um homem conhecido como Mamoulian, a atualização do Mefistófeles, que torna a vida de Whitehead um inferno, querendo que ele cumpra sua parte do pacto, enquanto o milionário deseja escapar do contrato.
O escritor Adrian Cole, comentando o livro em Horror: 100 Best Books, diz que em O Jogo da Perdição, Barker é inflexível e sem misericórdia em sua análise da condição humana, e o resultado é, ao mesmo tempo, eletrizante, horripilante e convincente. “Existem cinco personagens principais”, escreve Cole, “meticulosamente traçados, cada qual ligado ao cenário do ‘Jogo da Perdição’, que é o seu Apocalipse pessoal, o tormento que eles sofrem como resultado de seus próprios pecados”.
Capa da primeira edição do livro The Damnation Game (Weidenfeld & Nicolson).
Whitehead diz a Marty que não existe um Deus exterior, nem Inferno, mas apenas nossos próprios desejos, dos quais somos escravos, ainda que sempre exista um preço. No Jogo, é a alma que está sendo apostada.
Adrian Cole vê Mamoulian como várias coisas diferentes; a personificação de nossos maiores medos e nossos desejos mais secretos; é a culpa encarnada; é o próprio Diabo. Tem um poder quase vampírico, capaz de ressuscitar os mortos e fazer com que trabalhem para ele sem sentir a menor compaixão, torturando e manipulando para satisfazer sua ambição insaciável.
Além dessas visões mais profundas dos personagens, Barker também utiliza o terror mais explícito, visceral, que caracteriza grande parte de sua obra. “Os horrores físicos”, diz Cole, “às vezes são obscenos, e de qualquer forma o livro foi programado para chocar, para nos colocar diante dos excessos da psique, do lado negro da alma”.
Stephen King também trafegou pelo tema em Trocas Macabras (Needful Things, 1991), história situada em Castle Rock, uma das localidades preferidas do autor, criada para seus livros.
A criatura diabólica, que pode ser o próprio capeta, é Leland Gaunt, que chega à cidade e abre uma loja chamada Needful Things (coisas necessárias). Não se sabe muito bem de onde Gaunt veio; se de algum lugar que se supõe ser muito quente, ou se foi criado pelos próprios seres humanos, no fundo de suas mentes, de certa forma atendendo seus desejos mais secretos, porém sempre exigindo algo em troca. Gaunt vê as coisas mais profundamente do que os humanos, conseguindo penetrar em suas mentes e oferecendo a eles, em sua loja, o que eles mais desejam. E cobra um precinho razoável; tudo o que ele deseja é que elas façam uma troca com ele, prestando alguns favores, fazendo algumas “brincadeiras” com outras pessoas, ações aparentemente inocentes, mas que acabam criando um verdadeiro clima de guerra na cidade, com as pessoas entrando em confronto e os ódios surgindo por todos os lados. E então, o senhor Gaunt se alimenta, uma vez que o verdadeiro pagamento que sempre desejou eram essas emoções exaltadas de ódio e desejo de vingança. Ele dá as “coisas necessárias” às pessoas, que lhe devolvem o que é necessário a ele.
Capa da primeira edição (Viking).
O tema abordado em Trocas Macabras tem uma ligação com aquele de Tommyknockers/Os Estranhos. As duas histórias estão intimamente ligadas à necessidade dos seres humanos, ou pelo menos dos seres humanos norte-americanos modernos, de possuir “coisas”. Em Tommyknockers, King referiu-se aos objetos da vida cotidiana, os maiores símbolos do consumismo norte-americano, transformando-os em armas violentíssimas. Aqui, ao mesmo tempo em que foi mais sutil em sua abordagem, foi um pouco mais fundo na mente das pessoas que compõem essa estranha sociedade consumista, apresentando um personagem que consegue, por artes da magia ou qualquer outro artifício incompreensível para nós, penetrar no centro do desejo, que às vezes pode ser alguma coisa simples como uma figurinha rara de um jogador de beisebol, ou outro objeto que desperte sentimentos mantidos nos compartimentos mais fechados do inconsciente. Não é apenas a sociedade de consumo que está em cartaz dessa vez, mas a própria forma como os seres humanos se organizam e a forma como pensam a vida, em termos de uma série de aquisições, de necessidades que consideram imprescindíveis.
Pode parecer um tanto piegas ou um artifício simplista de Stephen King que a única pessoa a não ser afetada pela necessidade de possuir “coisas necessárias” seja justamente o xerife da cidade, que não precisa de nada para si mesmo; ele está intimamente ligado à necessidade de modificar sua vida por meio de uma ligação amorosa verdadeira, sem segundas intenções e sem exigir nada em retorno. No entanto, o xerife é o personagem que já conheceu a “cidade grande”, é aquele que esteve em contato mais direto com a “sociedade que deseja coisas” e desistiu de pertencer a ela, optando por retornar ao que se costuma chamar de vida no interior, onde se supõe que os valores sejam diferentes e, portanto, é o mais perfeito candidato a não querer essas “coisas”. É como se tivesse sido vacinado, ficando imune a Leland Gaunt.
Max von Sydow como Leland Gaunt, no filme Trocas Macabras (Castle Rock Entertainment/ New Line Cinema).
Ao final do livro, com um confronto catastrófico, permanece vivo o conceito de que sempre é possível penetrar-se na mente dos seres humanos e descobrir as “coisas necessárias” de cada um, e que essas necessidades jamais se esgotam entre as pessoas. Leland Gaunt não morre, porque não é humano, e continua percorrendo o mundo, abrindo suas lojinhas e descobrindo o que vai no fundo da alma das pessoas.
Ed Harris como o xerife que resiste à tentação.
A história foi filmada em 1993 com o mesmo título, com direção de Fraser C. Heston, com excelentes atores; Max von Sydow é Leland Gaunt, e Ed Harris o xerife Alan Pangborn. O resultado foi apenas razoável, com o maior problema sendo a elaboração do clima necessário e a abordagem dos problemas íntimos dos personagens, que é por onde o livro prende o leitor.