As abordagens a respeito de sexo, da sexualidade e dos gêneros na ficção científica parecem demonstrar claramente, mais do que ocorre em qualquer outro tema desenvolvido pelo gênero, a moral predominante na sociedade e na época em que as histórias foram escritas. E, segundo boa parte dos estudiosos da ficção científica, essas abordagens geralmente são superficiais ou não chegam a explorar todas as possibilidades que o tema proporciona. Isso parece ser verdade, pelo menos no que diz respeito às histórias do primeiro período da ficção científica, passando por transformações a partir dos anos 1950/1960.
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O escritor e editor James Gunn considerou, em sua enciclopédia Alternate Worlds: The Illustrated History of Science Fiction (1975), que na maioria das histórias de ficção científica, o sexo e outras funções corporais não fazem sentido e não tem lugar, e que sua inclusão é pior do que “sem sentido”: é uma distração dentro da linha principal da história.
Claro que esse é um ponto de vista extremo e que não foi seguido por todos os escritores do gênero. Ainda assim, um texto em The Visual Encyclopedia of Science Fiction considera que esse pensamento de James Gunn pode ser visto como representativo das atitudes de muitos escritores e leitores de ficção científica, em particular nos primórdios do gênero no século 20. Como ocorreu durante um bom tempo com as histórias que lidavam com temas religiosos na ficção científica, a maioria dos editores se recusava a publicar histórias contendo sexo. E não estamos falando de cenas de sexo explícito, é claro.
A mesma enciclopédia lembra que no período em que grande parte da produção de ficção científica se concentrava nas revistas e os escritores tinham as restrições acima citadas, destacavam-se as obras consideradas como estando “fora da corrente principal” do gênero, como Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1949), de George Orwell, que continham aspectos sexuais. Mas foi no início dos anos 1950 que as revistas começaram a mudar um pouco sua abordagem, com as obras de Philip José Farmer e Theodore Sturgeon.
Em The Science Fiction Encyclopedia, Peter Nicholls diz que tradicionalmente, a ficção científica tem sido uma literatura puritana e orientada para um público masculino, e machista. “Antes dos anos 1960”, diz Nicholls, “existia pouca FC que investigasse conscientemente questões sexuais, mas como toda literatura popular, o que é implícito frequentemente é tão importante quanto o que é apresentado claramente. Observada sob esse ponto de vista, a FC tem sido um reflexo acurado dos preconceitos e sentimentos populares sobre o sexo, ao longo dos anos, especialmente nas histórias das revistas pulp”.
O livro The Sex Is Out There: Essays in the Carnal Side of Science Fiction, editado por Sherry Ginn e Michael G. Cornelius, traz o ensaio “The Future, in Bed With the Past: Miscigenation in Science Fiction Film and Television”, escrito por Cynthia J. Miller e A. Bowdoin Van Riper, no qual ressaltam o fato de que, quando os humanos se aventuram no espaço, eles carregam consigo a bagagem de culturas inteiras, preenchendo a “fronteira final” com ideologias terrestres abandonadas ou suprimidas há muito tempo em uma terra natal cada vez mais civilizada. Assim, em um universo no qual a variedade de formas de vida é aparentemente infinita, a sexualidade – considerando como tal a atração, o romance e o desejo sexual – desperta ansiedades a respeito da mistura de espécies e a perda de uma identidade claramente definida. “Esses medos de miscigenação”, dizem os autores, “socializados fora da existência na Terra, mais uma vez ganham forma no espaço, insuflados com ideais e tabus que ecoam o racismo, o colonialismo e a xenofobia da conturbada história social da Terra”. Não é muito diferente do que Peter Nicholls disse.
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E, na "Introdução" do livro de ensaios citado acima, Michael G. Cornelius lembra que a ficção científica não é sempre pudica e também não age de forma significantemente diferente da maioria dos outros gêneros de literatura e filmes. “Aliás”, ele escreve, “a ficção científica tem uma orgulhosa história de ser um gênero inclusivo no que diz respeito a raça, gênero e orientação”, ainda que inclusão não seja exatamente o mesmo que representação. “Apesar disso”, lembra Cornelius, “se algum gênero é capaz de especular abertamente sobre sexualidade, deveria ser a ficção científica”. Para ele, a ficção científica faz parte da “ficção especulativa”, que é própria para, como o nome diz, especular sobre futuros e medos, sobre nossos passados e nosso presente, sobre o espaço exterior e os desejos interiores.
O que Michael G. Cornelius levanta, no entanto, é que a ficção científica tem demonstrado certa relutância a verdadeiramente formular hipóteses ou refletir sobre o aspecto físico do sexo. Para ele, com muita frequência o sexo na ficção científica simplesmente imita o que já é visto como sendo lascivo e possível em nossa cultura. Mas isso não ocorre quando se trata de sexualidade, gênero ou mesmo subjetividade sexual, itens que ocorrem até nas mais banais histórias de ficção científica, que apresentam representações de gêneros alternativos, ou terceiros gêneros, e a confusão sexual que naturalmente essas representações provocam. Mas quando se trata da manifestação corporal do sexo e sexualidade, essas histórias frequentemente se recusam a fazer aquilo que seu gênero sugere que elas são projetadas para fazer, ou seja, especular a respeito da natureza de formas de prazer ou expressão sexual diferenciadas, desenvolvidas ou efetivamente “alienígenas”.
Cornelius diz que o próprio nome “ficção científica” é um paradoxo, um oxímoro, ou seja, um termo composto por duas palavras de sentido oposto. “Ficção” denota fantasia, o que é diferente de “realidade”; enquanto “ciência” sugere uma disciplina fundamentada na realidade. Assim, o autor diz que o nome do gênero pode ser traduzido como “irrealidade real” (real unreality, nas palavras exatas dele); ao contrário da fantasia, que cria novos reinos de possibilidades, a ficção científica constrói suas possibilidades a partir do que é real, do que é de fato possível ou concebível. Para ele, o gênero está preocupado não com o que é irreal, mas com o que pode vir a ser real. “Os voos de imaginação que governam a ficção científica estão fundados no que é tangível, no reino do que é possível, real, no que é esperado e temido”.
“É claro que”, continua Cornelius, “na vida e na ficção, poucas coisas são mais ‘esperadas’ ou ‘temidas’ do que sexo, e as muitas manifestações do sexo em nosso mundo deleitam, confundem e enfurecem. O debate sobre sexo, seu papel e sua função, sua forma e seu significado, permeiam cada aspecto de nossa cultura – filosoficamente, ideologicamente, culturalmente, religiosamente, politicamente. Sexo é tanto ‘real’ quanto ‘irreal’ e, talvez, às vezes ‘surreal’. É parte de cada sociedade, algo continuamente reconhecido e ocultado, algo a respeito do que somos moralistas e simultaneamente envergonhados, como uma cultura, como indivíduos e como membros de relacionamentos baseados no sexo”.
Assim, segundo o autor, talvez seja essa “irrealidade real” que cria o espaço genérico no qual a ficção científica existe, tão ansiosa em explorar as possibilidades da representação sexual e, ao mesmo tempo, desejosa de obscurecer as manifestações dessas possibilidades.
(Foto: FreeImages.com/ Yann Andre).
Joseph Marchesani, professor da Pennsylvania State University, onde ensina literatura de ficção científica e fantasia, foi o responsável pelo item “Science Fiction and Fantasy”, na enciclopédia online glbtq.com (an encyclopedia of gay, lesbian, bissexual, transgender & queer culture). Segundo ele, na ficção científica, a extrapolação permite aos escritores focar não na forma como as coisas são, mas na forma pela qual as coisas podem mudar. Essa extrapolação, ele explica, abastece a ficção científica com o que Darko Suvin – um dos mais respeitados e importantes acadêmicos de literatura a tratar temas da ficção científica – chamou de “distanciamento cognitivo”, ou seja, o reconhecimento de que o que nós estamos lendo não é o mundo como o conhecemos, mas um mundo cujas mudanças nos forçam a reconsiderar nosso próprio mundo de uma perspectiva externa. “Quando a extrapolação envolve sexualidade ou gênero”, diz Marchesani, “ela pode nos forçar a reconsiderar as suposições machistas discriminatórias mais básicas de nossa cultura”.
Marchesani lembra que, antes dos anos 1960, qualquer tipo de sexualidade explícita não era característica da ficção científica e da fantasia. “Embora as capas de algumas revistas pulp dos anos 1930 mostrassem mulheres escassamente vestidas sendo ameaçadas por alienígenas com tentáculos, as capas eram mais chocantes do que o conteúdo das revistas. Por muitos anos, os editores que controlavam as publicações sentiram que tinham de proteger o leitor masculino adolescente que eles identificavam como seu principal mercado”. Marchesani diz que, quando o público leitor de ficção científica e fantasia começou a envelhecer, nos anos 1950, escritores como Philip José Farmer e Theodore Sturgeon puderam introduzir mais sexualidade explícita em seu trabalho.
Assim, como tantos outros historiadores do gênero, ele percebe claramente a transformação ocorrida a partir dos anos 1950/1960, mas a atribui a uma mudança no tipo de público que as histórias atingiam, enquanto Nicholls, por exemplo, vê as mudanças como reflexo de transformações ocorridas da sociedade. Claro que, após a Segunda Guerra Mundial, o mundo mudou radicalmente, não apenas no aspecto político e no desenvolvimento científico e tecnológico sem precedentes que se sucedeu, mas mudou nitidamente nos costumes, em particular nos Estados Unidos. E nada mais esperado do que a mudança geral nos costumes da sociedade eventualmente atingir a ficção científica, resultando em histórias mais abertas para questões abordando o sexo e a sexualidade.