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CRIANDO ZUMBIS

ESPECIAIS/VE ZUMBIS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data01/09/2023
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A partir de interpretações errôneas da religião vodu nasceu um dos subgêneros do terror e ficção científica que, atualmente, está entre os mais populares do cinema e da TV.

Daniel Dan/ Pixabay
(Foto: Daniel Dan/ Pixabay).

Os zumbis das histórias de ficção passaram por transformações profundas. Nas primeiras narrativas, eram basicamente escravos criados por artes mágicas nefastas e, ao longo dos anos, foram sendo acrescentadas características que culminaram nas histórias atuais ligadas ao que se convencionou chamar de “apocalipse zumbi”.
Na maioria das vezes as histórias estiveram mais relacionadas com o gênero terror, mas muitas vezes foram introduzidos elementos que as aproximaram da ficção científica. Os zumbis que, antes, como dissemos, surgiam devido à ação da magia ou de algum outro elemento sobrenatural, passaram a ser criados devido a erros científicos, experimentos falhos, ou mesmo intencionalmente. Ou então devido a algum tipo de vírus ou epidemia de outra natureza que se espalha pelo planeta, nem sempre com explicações mais detalhadas; o vírus surge sabe-se lá de onde, causa uma doença que mata as pessoas, e elas renascem com fome de carne humana. E pronto!
Apesar de alguns antecedentes literários, esse subgênero firmou-se mesmo no cinema e, eventualmente, na televisão. Em alguns momentos chegou a rivalizar em preferência com vampiros, lobisomens e fantasmas, talvez os temas mais utilizados no cinema e na literatura de terror. A maioria dos livros com histórias de zumbis são recentes, do século 21, quando o gênero teve uma nova onda de interesse público, geralmente envolvendo o apocalipse zumbi.


Os temas do terror considerados mais antigos – como os das casas assombradas, fantasmas, vampiros, lobisomens e alguns monstros – geralmente têm suas origens em mitos e lendas da Europa e Ásia, às vezes com milhares de anos de existência. O conceito dos zumbis desenvolveu-se de religiões africanas trazidas para a América Central com os escravos, em particular no Haiti, e lá modificou-se e adaptou-se à nova cultura. Até onde se sabe, na África não existia o conceito de reviver os mortos, pelo menos na forma como foi desenvolvido no Haiti, na religião vodu.
Como ocorreu com praticamente todas as religiões não cristãs, tidas como pagãs, o vodu e outras práticas religiosas originárias da África foram desconsideradas pelos cristãos brancos e, no caso do vodu, muitas de suas práticas foram associadas à magia negra. Então, nada mais normal do que os primeiros relatos a respeito da criação de zumbis atribuíssem a esses seres uma relação com a magia negra, em atividades capazes de dar vida aos mortos.
Aparentemente, não existe uma tradição africana nesse sentido, e os zumbis parecem ter nascido mesmo no Haiti. O nome em si tem interpretações diferentes. O nome zumbi já era conhecido no Brasil desde o século 17, como o nome próprio do líder do Quilombo dos Palmares, Zumbi dos Palmares (1655-1695). Algumas fontes – incluindo os dicionários Kimbundu-Português de José Pereira do Nascimento (1903) e de A. de Assis Junior – dizem que o nome vem do termo nzumbi, significando respectivamente alma e fantasma. Segundo se diz, a palavra foi registrada em inglês pela primeira vez em 1819, como “zombi”, no livro History of Brazil, de Robert Southey, referindo-se exatamente a Zumbi dos Palmares. No Oxford English Dictionary, a origem do nome está na África Central e a palavra é comparada às palavras da língua congo “nzambi” e “nzumbi”, significando respectivamente “deus” e “fetiche”. Também existem comparações com as palavras “vumbi” ou “nvumbi”, que podem significar fantasma, um cadáver que ainda mantém sua alma ou mesmo um corpo sem alma.

Seja como for, a suposta prática de criar um zumbi, que quase sempre esteve associada à religião vodu, não faz parte das práticas dessa religião, sendo efetuada, segundo as tradições populares, por um bokor (masculino) ou caplata (feminino), feiticeiros que servem tanto ao bem quanto ao mal, e não seguem necessariamente as práticas usuais do vodu. Mas quando o zumbi é criado – seja lá por quais meios – ele passa a ser dominado pelo bokor, sem qualquer vontade própria.
Wade Davis – o antropólogo e biólogo formado em Harvard, atualmente professor na University of British Columbia, no Canadá – é o autor do famoso estudo A Serpente e o Arco-Íris (The Serpent and the Rainbow, 1985), que originou o filme de Wes Craven, A Maldição dos Mortos Vivos (The Serpent and the Rainbow, 1988). No livro, ele diz que, para os haitianos, um zumbi é “(...) um ser sem vontade, na própria fronteira do mundo natural, uma entidade que podia manifestar-se como espírito ou como ser humano. Os zumbis não falam, não podem cuidar de si mesmos, nem sequer sabem seus nomes. Seu destino é a escravidão”, e o maior medo dos camponeses haitianos não é que os zumbis lhes façam mal, mas sim que eles próprios se tornem um zumbi.
Davis levantou a tese de que a suposta morte das pessoas que seriam “zumbificadas” era provocada pela neurotoxina tetrodoxina, contando também com a utilização posterior de doses constantes de datura, planta capaz de provocar alucinações e responsável por manter a pessoa dócil, uma vez que, além das alucinações, produz amnésia e sugestibilidade.

                                                                                                                                           (Paragon House Publishers, 1989).

As referências aos zumbis nos dicionários eram mais com relação ao léxico, mas um livro influenciou o que viria a ser o subgênero zumbi, em particular no cinema. Em 1929, William Buehler Seabrook publicou The Magic Island, que trazia uma série de supostas experiências do autor com o vodu do Haiti. Geralmente, o livro é visto como a primeira publicação em inglês a apresentar o conceito de zumbi como um cadáver sem alma, tirado do túmulo e, por meio de feitiçaria, mantido com uma aparência de vida, movimentando-se e agindo como se ainda estivesse vivo. Seabrook era uma figura controversa, um jornalista interessado no ocultismo, amigo de Aleister Crowley e, assim, é bem possível que a narrativa sobre os zumbis no Haiti tenha sido influenciada por esses interesses.
De qualquer forma, o livro teve seu impacto na cultura popular. Já em 1932, duas obras foram baseadas ou inspiradas por seu livro: a peça Zombie, escrita por Kenneth Webb, e o filme Zombie, a Legião dos Mortos (White Zombie), dirigido por Victor Halperin.
Apesar dessa influência reconhecida, diz-se que a primeira vez em que o termo foi divulgado ao Ocidente foi no artigo The Country of the Comers-Back, do escritor Lafcadio Hearn, publicado na Harper’s Magazine em 1889, no qual ele apresentava detalhes sobre fenômenos sobrenaturais em Moçambique.
Escrevendo sobre o tema em The Encyclopedia of Science Fiction, David Langford disse que das três classes principais de criaturas sobrenaturais mais populares da ficção fantástica – as outras sendo vampiros e lobisomens – os zumbis parecem os menos sobrenaturais e os mais facilmente racionalizados em termos de ficção científica, “(...) ainda que em suas origens o termo descreva claramente uma entidade inteiramente sobrenatural”, como foi entendida e utilizada por alguns autores.
Langford ainda ressalta que, como outros autores que escreveram sobre zumbis no final do século 19 e início do século 20, Seabrook também não foi sensível à pesadamente carregada associação entre zumbis e escravidão. Para o crítico, de uma forma simplificada, nos usos recentes do termo, as tradicionais hordas cambaleantes e geralmente canibais podem, de forma plausível, ter sido reduzidas a esse estado por lesões cerebrais causadas por toxinas ou doenças, sendo que essa última possibilidade “explicaria” porque a mordida ou a contaminação com o sangue de zumbis poderiam transformar a vítima também em um zumbi.

(Fantasy and Horror Classics, 2011).

Peter Dendle, professor de inglês na Universidade Penn State Mont Alto, especialista em folclore e estudioso do “monstruoso” nos filmes, folclore e sociedade, publicou um ensaio, The Zombie as Barometer of Cultural Anxiety, no qual ele diz que, apesar dos esforços de alguns folcloristas, como a antropóloga e socióloga Elsie Parsons (1875-1941), “(...) para realizar pesquisas legítimas sobre as crenças nativas haitianas, o zumbi primeiro tornou-se conhecido do grande público americano por meio de uma série de relatos sensacionalistas sobre superstições nativas, usadas para encher a literatura popular de viagens”, sendo o livro já citado de William Seabrook o mais notório.
Dendle lembra que os Estados Unidos estavam engajados em uma longa ocupação do Haiti, de 1915 a 1934, “(...) uma ocupação marcada por uma resistência cada vez mais ruidosa e às vezes violenta por parte da população nativa. Muitos dos fuzileiros navais estacionados no Haiti, ao retornarem aos EUA, apontavam livremente acusações de canibalismo e reportavam superstições nativas como a dos ‘zumbis’.”
O folclorista também ressalta a relação entre os zumbis e a escravidão. “Fantasmas e aparições são conhecidos mundialmente, mas poucos são consistentemente associados com a economia e o trabalho como os cadáveres bamboleantes do vodoun haitiano, trazidos de volta dos mortos para trabalhar nos campos e fábricas por proprietários mesquinhos ou por malévolos feiticeiros houngan ou bokor”.
Segundo Peter Dendle, “A zumbificação é a conclusão lógica do reducionismo humano: é reduzir uma pessoa ao corpo, reduzir o comportamento às funções motoras básicas, e reduzir a utilidade social ao trabalho cru. Sejam os zumbis criados por um mestre vodu ou por um cientista louco, o processo representa um imperialismo psíquico: a substituição do direito de uma pessoa de experimentar a vida, o espírito, a paixão, a autonomia e a criatividade, pelo ganho explorador de outra pessoa. Nesse sentido, o zumbi tem servido alternadamente como uma ferramenta de fortalecimento e mudança social assim como um reforço complacente do status quo, em seus 75 anos de história como ícone cinematográfico”.

Na obra Tropical Gothic in Literature and Culture – The Americas (2016) – editada por Justin D. Edwards e Sandra Guardini Vasconcelos – a estudiosa Kelly Gardner assina o texto “They Are Not Men, Monsieur... They Are Zombies; The Construction of Haitian Identity and the Work of the Left Hand”, no qual ela também ressalta o aspecto sensacionalista na ligação entre os zumbis e o Haiti, relação que coincidiu com o início da Grande Depressão nos EUA, em 1930. Essa situação, segundo Gardner, tornou-se relevante nos dias de hoje como uma crítica moral à exploração capitalista, “(...) uma vez que a população desapropriada dos EUA identificou-se com a impotência da mão de obra zumbi”.
Gardner segue dizendo que “Nessa época, Hollywood utilizou atores negros para retratar personagens marginalizados e, assim, a possibilidade de uma ilha inteiramente marginalizada apresentava uma oportunidade promissora para a indústria do entretenimento”.
E, nas matérias seguintes, vamos dar uma olhada no que a indústria do entretenimento realizou com o tema, em particular no cinema e na televisão.