Imagem: Pixabay.
Existem grupos de histórias na ficção científica que alguns críticos e estudiosos apresentam com as denominações “Adão e Eva”, “Ficção Científica Pré-Histórica”, “Origem da Humanidade” e ainda outras.
Essas histórias, não muito numerosas e, muitas vezes, tidas como de qualidade inferior, apresentam versões alternativas para narrativas bíblicas, notadamente a narrativa de Adão e Eva e do Jardim do Éden, ou apenas retornam ao passado longínquo da humanidade para apresentar versões dos primórdios dos seres humanos no planeta, mais ou menos relacionadas com o conhecimento científico da época em que foram escritas.
Elas não compõem um grupo coeso e, muitas vezes, com pouca ou nenhuma relação entre os temas, mas de alguma forma remetem-se ao passado da humanidade, seja em termos antropológicos, seja na tentativa de criar um verniz ficcional, ou ainda científico, para narrativas de natureza religiosa ou espiritual.
O escritor inglês Brian W. Aldiss, que tinha uma coluna anônima na revista New Worlds, comentou, em outubro de 1965, que costumava chamar as histórias que apresentam Adão e Eva como resultado de alguma manipulação genética, de “the shaggy god story”, um trocadilho intraduzível com a expressão inglesa “shaggy dog story”, que é uma piada longa e sem graça. Entre as variações possíveis as histórias podem apresentar Adão e Eva como seres que escaparam de um laboratório de uma nave alienígena visitando nosso planeta em tempos distantes. Outras tentam apresentar Deus, Jesus Cristo, os anjos ou Satã como entidades alienígenas.
Segundo Aldiss, para os leitores de ficção científica existiria espaço para apenas uma história desse tipo e, depois disso, as pessoas estariam saturadas. Segundo ele, os editores das revistas do gênero recebiam pelo menos uma história do gênero por semana, mas poucas foram publicadas. Aldiss disse ainda que sua preferida é False Dawn, de A. Bertram Chandler, publicada na revista Astounding Science Fiction (outubro de 1946). Eram comuns as histórias que apresentavam uma espaçonave tendo problemas e caindo em um planeta desconhecido e inabitado, e nas linhas finais os sobreviventes revelavam que seus nomes eram Adão e Eva, ou alguma variação aproximada dos nomes.
Capa de Alex Schomburg (Ziff-Davis Publishing Company, 1961).
Os escritores e pesquisadores Brian Stableford e David Langford disseram que, compreensivelmente, essas histórias raramente foram publicadas, ainda que o conto Ship of Darkness, de A.E. Van Vogt, originalmente publicado em Fantasy Book, em 1948, tenha sido republicado em 1961, na revista Fantastic Stories of Imagination, apresentado como um “clássico da fantasia”; e ainda em 1982, na revista Amazing Science Fiction Stories, como uma clássica “fantasia espiritual”. O próprio Van Vogt entendeu que a história era uma espécie de visão espiritual de um possível Nirvana, mas ela apresenta um cientista que usa sua máquina do tempo-espaçonave para retornar bilhões de anos no passado, quando encontra uma raça alienígena no espaço e, eventualmente, vai para a Terra ainda sem vida humana em companhia de uma mulher a quem chama de Eva.
De certa forma, essas histórias são uma espécie de continuação superficial de histórias mais antigas e que apresentavam considerações teológicas, e que pertencem ao que o historiador Adam Roberts classificou como pertencentes aos primórdios do gênero, ou o que alguns chamam de a pré-história da ficção científica. Assim, Roberts cita, por exemplo, Cyrano de Bergerac, em seu livro O Outro Mundo, ou Os Estados e Impérios da Lua (L’Autre Monde ou les États et Empires de la Lune, 1657), obra na qual o autor apresenta a Lua como sendo o Paraíso Terrestre. “Descobrimos”, diz Roberts, “que o Jardim do Éden foi removido por Deus da Terra para a Lua após a expulsão de Adão e Eva”.
Brian Stableford lembra que, muitas vezes, os nomes Adão e Eva, especialmente Eva, foram frequentemente utilizados de forma metafórica, o que ocorre na famosa peça de Karel Capek, R.U.R.: Os Robôs Universais de Rossum (Rossumovi Univerzální Roboti, 1920. Ed. Madrepérola, 2021. Ed Aleph, 2024), tida como a obra que introduziu o termo “robô” para definir criaturas construídas artificialmente. Ao final da história, dois robôs que sofreram modificações deverão se tornar os novos Adão e Eva. Segundo Adam Roberts, “A peça termina com uma enjoativa nota religiosa, quando dois robôs modificados, um macho e uma fêmea, são rebatizados de 'Adão e Eva’ (...) e introduzidos no mundo para procriar sem o estigma do pecado original. Como alegoria socialista, a peça é demasiado óbvia, mas como FC mexe de modo interessante com as inquietações teológicas na essência do gênero”.
Uma versão um tanto diferente de Adão e Eva foi apresentada em Perelandra (Perelandra, 1943), o segundo livro da trilogia chamada “trilogia espacial” de C.S Lewis, com ação situada em Vênus, planeta no qual existe uma espécie de Eva e um Adão vivendo em um paraíso ainda intocado pelo Mal, mas correndo perigo.
Coletânea de Nelson S. Bond, com a história The Cunning of the Beast. Capa de Richard Powers (Avon, 1954).
Segundo Brian Stableford e David Langford, o mais prolífico escritor desse tipo de histórias foi Nelson Slade Bond, e uma de suas histórias mais ilustrativas nesse sentido é Another World Begins, também conhecida pelo título The Cunning of the Beast, publicada em 1942, em The Blue Book Magazine, e posteriormente em coletâneas como No Time Like Future. Na história, Deus é apresentado como uma entidade alienígena, e Adão e Eva como seres criados por ele de forma experimental, mas que acabam se mostrando mais inteligentes do que ele esperava.
O conceito surge também na trilogia Lemmus, de Julian Jay Savarin, composta pelas obras Lemmus One: Waiters on the Dance (1972), Lemmus Two: Beyond the Outer Mirr (1976) e Lemmus Three: Archives of Heaven (1977). Na obra, Deus, ou GOD, é a Galactic Organization and Dominions, dirigida por uma antiga civilização alienígena, que realiza uma experiência colocando na Terra pessoas que deverão desenvolver-se em uma situação de isolamento. Segundo Brian Stableford, a história traz algumas explicações para as tradições judaico-cristãs, assim como para a queda da Atlântida, o local no qual eles se estabeleceram, liderados por Jael Adaamm.
Capas de Joe Petagno (Corgi Books/ 1976/ 1976/ 1977).
A organização conhecida como GOD é benévola, mas é ameaçada pelos desejos de uma mulher de Sírio, conhecida como Alda, que deseja governar a galáxia, e uma linhagem malévola que governa a constelação de Cetus.
(Amber Ltd, 2024).
Roger Zelazny escreveu uma versão do tema no conto For a Breath I Tarry, publicado originalmente em 1966, na revista New Worlds, e chegou a ser nomeado para Melhor Novela (Novelette, no original) do Hugo Award, em 1967. A ação situa-se em uma Terra destruída, mas que ainda mantém máquinas conscientes que continuam tentando reconstruir o planeta. O computador com inteligência artificial chamado Frost controla o hemisfério norte, enquanto o computador chamado Beta controla o hemisfério sul e, apesar de ser uma máquina, tem uma personalidade feminina.
O grande desejo de Frost é tornar-se humano, o que eventualmente ele consegue, utilizando DNA conservado, e convence Beta a seguir seus passos, indicando que eles deverão se tornar os novos Adão e Eva e repovoar o planeta.
Charles Bronson e Elizabeth Montgomery em Os Sobreviventes (Cayuga Productions/ CBS Television Network).
Na televisão, pelo menos dois episódios da série clássica Além da Imaginação (The Twilight Zone, 1959-1964) lidaram com o tema. O episódio Os Sobreviventes (Two, 1961), o primeiro da terceira temporada, foi dirigido e escrito por Montgomery Pittman, e apresenta dois sobreviventes de uma guerra que destruiu a civilização, o Homem (Charles Bronson) e a Mulher (Elizabeth Montgomery), ele um soldado americano, ela uma soldada russa. Eles estão em alguma cidade destruída e vazia e, após um início em que mantêm suas diferenças, que certamente levaram à guerra total, acabam entendendo que precisam viver juntos.
Antoinette Bower e Richard Basehart em Sonda 7, Câmbio e Desliga (Cayuga Productions/ CBS Television Network).
Mais claro foi o episódio Sonda 7, Câmbio e Desliga (Probe 7 Over and Out, 1963), nono episódio da quinta temporada, dirigido por Ted Post, com roteiro de Rod Serling. O coronel Adam Cook (Richard Basehart, que faria o almirante Nelson, de Viagem ao Fundo do Mar) chega com sua nave a um planeta habitável, porém totalmente destruído por uma guerra nuclear. Eventualmente, ele encontra uma mulher, Eve Norda (Antoinette Bower), refugiada de outro planeta. Eles passam a chamar o planeta de Irth, e dividem uma fruta em um jardim. Mais claro do que isso impossível.
Esse tema, entre outros utilizados na série, já era antigo e pouco utilizado por outros escritores de ficção científica na época, mas de alguma maneira Rod Serling, o criador da série, conseguia fazer com que funcionasse a contento.
O Testamento de Arkadia (Group 3/ Incorporated Television Company).
A série inglesa Espaço 1999 (Space: 1999, 1975-1977) também flertou com o tema no episódio 23 da primeira temporada, O Testamento de Arkadia (The Testament of Arkadia, 1976), dirigido por David Tomblin e com roteiro de Johnny Byrne e dos criadores da série, Gerry e Sylvia Anderson. Na história, a Lua terrestre, que vaga pelo espaço, aproxima-se do planeta Arkadia, que é explorado pelo comandante Koenig (Martin Landau) e uma equipe de reconhecimento. Eles encontram um caverna com esqueletos humanos e escritos em sânscrito, os quais mostram que os antigos habitantes daquele planeta levaram a vida à Terra.
A ideia também foi desenvolvida na série Galáctica: Astronave de Combate (Battlestar Galactica, 1978-1979), criada por Glen A Larson, e na refilmagem superior, Battlestar Galactica (Battlestar Galactica, 2004-2009), também criada por Glen A. Larson e Ronald D. Moore. Em ambas as séries, os humanos que fogem do ataque dos cylons procuram uma colônia perdida, a 13ª colônia, a Terra, dando a entender que os que conseguem chegar ao planeta são os Adões e Evas que deram origem à humanidade por aqui. Certamente, não é por acaso que o comandante da frota humana que se desloca pelo espaço é chamado Adama; na versão mais recente, interpretado por Edward James Olmos; na mais antiga, por Lorne Greene.
O conceito continuou a gerar mais algumas histórias, com aproximações mais ou menos explícitas, mas nunca chegou a ser um tema central do gênero.