Para aqueles que não estão muito familiarizados com a literatura de ficção científica, o tema “fc e religião” pode parecer estranho. Histórias de ficção científica que lidam com o assunto religião podem até parecer totalmente despropositadas. Mas não é o caso. A religião tem sido abordada em inúmeras histórias do gênero, com maior ou menor profundidade, como ponto central das histórias ou como um dos ingredientes delas.
Conceito artístico de um blazar (NASA/JPL-Caltech/GSFC).
Brian Stableford comentou sobre essa possível estranheza que a união dos temas possa causar em algumas pessoas. Em The Science Fiction Encyclopedia, ele disse que se formos considerar as definições mais racionalistas da fc, pode parecer que não exista nada mais distante dos interesses do gênero do que a religião. No entanto, ele considera que se voltarmos no tempo e observarmos a chamada “proto ficção científica”, poderemos perceber que as histórias fazem parte da tradição da ficção especulativa associada à imaginação religiosa. E na fc contemporânea o interesse em temas religiosos e místicos voltou a surgir, em particular depois que as histórias deixaram o ambiente das revistas pulp, nas quais enfrentavam muitas restrições e tabus. Para Stableford, quando isso ocorreu, a fc se viu forçada a confrontar questões e especulações milenares associadas à metafísica e à teologia, “em busca de possíveis respostas que estivessem em harmonia com as descobertas da ciência moderna, devido ao fato de que a própria ciência decidiu que essas questões eram impossíveis de serem respondidas”.
Stableford diz que um dos principais impulsos imaginativos da fc tem sido a necessidade de seguir em direção a áreas especulativas nas quais não existem dados empíricos a serem procurados. “Nesse sentido”, ele explica, “ficção especulativa não é apenas ficção científica, mas também ficção metafísica”.
Em The Visual Encyclopedia of Science Fiction, editado por Brian Ash, o verbete dedicado ao tema “Religião e Mitos”, inicia com o mesmo tipo de pensamento, ou seja, de que aparentemente existiria pouca ligação entre ficção científica e religião. No entanto, o texto pondera que a fc é o meio ideal para o escritor que deseja expressar seus próprios pensamentos e pontos de vista a respeito das crenças religiosas ou doutrinárias. “Uma forma de considerar a religião”, explica o texto, “é traçar paralelos com outros mundos, ou seguir suas tendências no futuro”.
Esse verbete citado tem um texto de abertura do conhecido escritor norte-americano Philip José Farmer (1918-2009), no qual ele afirma que “a religião é a forma mais antiga de ficção científica”. A afirmação segue seu pensamento ateu de que “a religião é apenas a expressão consciente do Homo sapiens de um impulso instinto pela sobrevivência das células inconscientes no corpo humano. O cérebro”, diz Farmer, “sabendo que uma pessoa não pode viver para sempre neste mundo, racionaliza um mundo futuro ou em outra dimensão, no qual a imortalidade é possível”.
Conceito artístico de um buraco negro (NASA/JPL-Caltech).
Farmer foi um dos muitos escritores do gênero que lidou com o tema da religião em alguns de seus livros, em alguns casos seguindo outro pensamento expresso na mesma enciclopédia: “Apesar disso”, ele conta, seguindo seu conceito, “eu tive, e tenho, uma crença contraditória de que a possibilidade da imortalidade não é uma ficção”. Ele desenvolveu e extrapolou essa crença em sua série “Mundo do Rio”, na qual imagina que a imortalidade não nos foi dada por meios sobrenaturais, e que nós temos de obtê-la por nós mesmos e por meios físicos, pela ciência.
(Capa: Richard Powers/ Berkley Medallion, 1971).
Nessa série de livros que começou com O Planeta do Rio (To Your Scattered Bodies Go), em 1971, e estende-se por mais quatro livro, até 1983, a ideia é que o Criador, um ser sem sexo definido, nos deu inteligência e autoconsciência para que pudéssemos produzir nossa própria ressurreição. Então, nós possibilitaríamos a imortalidade, o que nos daria tempo para desenvolvermos nossa evolução psíquica em direção ao ponto ideal. “Pode parecer tolo ou ingênuo expressar crença na obtenção da imortalidade de todas as pessoas que existiram ou irão existir”, escreveu Farmer. “Mas, sem imortalidade, não há sentido na vida”.
Adam Roberts, cujo livro A Verdadeira História da Ficção Científica (The History of Science Fiction, 2016) foi publicado no Brasil em 2018, pela Seoman, é um dos pesquisadores que tece muitas considerações a respeito da participação de temas religiosos e místicos na ficção científica. Roberts é, provavelmente, o pesquisador da área que mais recua o início da FC na história, e na introdução do livro ele escreve:
“A tese da presente história crítica que apresento neste livro é que a FC pós-1600 foi intimamente moldada pela dialética entre magia e tecnologia. Na verdade, as subdivisões de campo populares entre os aficionados mapeiam posições em uma trajetória que vai de mágico a tecnológico, com uma FC hard se alinhando mais próximo do segundo termo e uma FC soft mais perto do primeiro”, entendendo a FC hard como a ficção científica “dura”, rigorosa; e a FC soft como a ficção científica leve, “light”.
“Os últimos capítulos deste livro”, ele continua, “defendem a tese de que a dialética entre ciência e magia (ou ‘fato e misticismo’, ‘racionalismo e religião’) integra todos os grandes clássicos da FC do século XX; que Metrópolis (Metropolis) ou Duna (Dune) ou Star Wars, a série de livros Mars (Marte) de Kim Stanley Robinson ou os filmes Matrix articulam precisamente essa dinâmica e o fazem por razões profundas relacionadas à história determinante do gênero”.
(Houghton Library, Harvard University).
Para Brian Stableford, a relação entre a literatura do gênero, ou seus precursores, e o pensamento religioso e metafísico é visível nas obras de Giordano Bruno – o primeiro que previu um universo infinito repleto de mundos habitáveis –, ou Emanuel Swedenborg, o primeiro a viajar, em imaginação, aos limites do sistema solar, e além. E ainda os bispos John Wilkins e Francis Godwin, o primeiro entendendo que a humanidade iria à Lua em uma máquina voadora; o segundo, autor do texto satírico The Man in the Moone (1638). Sobre este último, Adam Roberts diz que a obra “ilustra a interpenetração de discursos religiosos e científicos. A primeira ação do protagonista de Godwin, ao chegar à Lua e ver seus habitantes, é gritar ‘Jesus Maria’”. Sobre a obra de John Wilkins, Discovery of a World in the Moone (1638), Roberts diz que, depois de postular a existência de vida na Lua, ela se pergunta se os seres que ali estão são a semente de Adão, se estão em uma condição abençoada ou então que meios pode haver para sua salvação.
Em The Visual Encyclopedia of Science Fiction, é lembrado que foi no século 19 que o conflito entre ciência e religião atingiu seu ponto máximo. Antes disso, apesar da condenação de Galileu Galilei (1564-1642) pela Inquisição, um religioso como Godwin apresentava uma viagem espacial, de modo que o conceito em si não poderia ser considerado totalmente antirreligioso. Mas as coisas mudam bastante no século 19, com a literatura refletindo o conflito entre os pontos de vista; da mesma forma, não é de estranhar o imenso crescimento da ficção científica a partir dessa época. Talvez, começando com Frankenstein (Frankenstein), de Mary Shelley, em 1818, no qual um cientista exerce o papel de Deus, criando a vida, com todas suas consequências.
(Capa: Dan Beard/ University of Nebraska Press, 2003).
Também foi nesse período que surgiram obras com viés espiritualista, como A Journey in Other Worlds (1894), de John Jacob Astor, no qual viajantes espaciais encontram espíritos vivendo em Saturno. A obra, segundo Stableford, faz uso intenso da imaginação científica ao mesmo tempo em que dá sequência à tradição das “viagens cósmicas” cujo principal objetivo era investigar assuntos teológicos. Também são citados: Edgar Fawcett, com o livro The Ghost of Guy Thyrle (1895), no qual o personagem central viaja aos confins do universo para consultar um mensageiro de Deus; John Mastin, com o livro Through the Sun in an Airship (1909); e Jean Delaire, com Around a Distant Star (1904).
Para Stableford, a ficção especulativa mais arrojada do século 19 foi Lúmen (Lumen), texto incluído no livro Narrações do Infinito (Récits de l'infini, 1872), do astrônomo Camille Flammarion, que teve relação com o Espiritismo desenvolvido por Allan Kardec. Stableford diz que o livro “foi o resultado de uma necessidade desesperada sentida pelo astrônomo de reconciliar e fundir seu conhecimento científico com sua crença religiosa”. Já Adam Roberts situa a obra no que ele chama de “Ficção Científica Mística”, e concorda que Flammarion é a principal figura dessa vertente no século 19, assim como percebe a natureza das obras de Flammarion, nas quais o místico e o científico estão intimamente entrelaçados. “O ponto onde essas duas facetas do interesse de Flammarion coincide”, explica Roberts, “é uma afeição pelo sublime. Lumen é uma leitura que produz um vigoroso efeito, sugerindo a escala completa do universo com, nos últimos dois ‘récits’, um elenco de quadros brilhantemente inventivos relativos às formas que a vida alienígena poderia tomar. Isso gera, de modo primoroso, uma noção da enorme escala e variedade, sendo uma história que abre os horizontes da mente do leitor”.
Outro escritor que Adams considera entre os “místicos” do período é Charles Howard Hinton, um matemático que teve alguma influência sobre a obra de H.G. Wells e que “[...] ansiava por codificar seus pontos de vista religiosos e espirituais apreendendo-os em termos matemáticos”. Stableford, notando que ele escreveu ensaios e ficção sobre a quarta dimensão, diz que Hinton foi “particularmente motivado pela noção de que um Deus quadridimensional poderia realmente ser onisciente de tudo de tudo o que já aconteceu ou poderá acontecer em nosso continuum tridimensional”.
Marie Corelli (1855-1924), uma das escritoras de maior sucesso de vendas de sua época, também tratou o tema em seu primeiro livro, Um Romance de Dois Mundos (A Romance of Two Worlds, 1886. Editora O Pensamento, 1933), no qual apresenta a noção de Deus como sendo uma força elétrica, e no qual a heroína encontra um anjo com o qual viaja a diversos planetas do sistema solar.
Como já foi dito antes, o conflito entre ciência e religião na ficção acentuou-se no século 19 e início do século 20. A esse respeito, Stableford disse que “Em virtualmente toda a ficção especulativa do final do século 19 e início do século 20 é evidente o antagonismo entre as imaginações científica e religiosa, quer o direcionamento da narrativa fosse voltado para a reconciliação ou para o conflito. Esse foi o período em que a imaginação religiosa encarou ataques simultâneos do Darwinismo, humanismo e socialismo”.
(Halcyon Press).
O próprio Stableford cita algumas obras com essas características, desse período, como em When It Was Dark (1904), de Guy Thorne, no qual um racionalista rico e inimigo do clero cristão desenvolve um plano maléfico para destruir o Cristianismo e falsifica evidências para provar que a ressurreição de Cristo jamais ocorreu, o que provoca um caos na civilização, antes que a fraude seja exposta.
No livro de Robert Hugh Benson, O Senhor do Mundo (Lord of the World, 1907. Ecclesiae), um humanista socialista se torna uma figura proeminente no planeta e se revela como o Anticristo (ver o texto O Anticristo, o fim dos tempos e outras batalhas contra o Mal).
Em outro livro de Benson, The Dawn of All (1911), o autor “oferece uma visão alternativa de um futuro utópico no qual as pessoas renunciaram a heresias horríveis como o materialismo, humanismo, socialismo e protestantismo”, segundo David Langford (The Science Fiction Encyclopedia).
(Abe Books).
Em The Visual Encyclopedia of Science Fiction é dito que, inicialmente, a religião foi utilizada na ficção científica como um artifício, citando como exemplo algumas obras de H.G. Wells, como o conto The Apple (1896), no qual um homem descobre um descendente da Árvore do Conhecimento, no Éden; o conto A Vision of Judgment (1895/ 1899), uma paródia do Julgamento Final; ou o conto Under the Knife (1896), em que o narrador é um sujeito sob o efeito de clorofórmio, viajando pelo universo e encontrando a gigantesca Mão Cósmica, o fundamento de toda a Matéria.
Stableford citou outras obras de Wells, como The Wonderful Visit (1895), na qual um anjo vem à Terra observar os pecados da humanidade; The Undying Fire (1919), uma revisão do Livro de Jó sob ótica moderna; além de tratados e ensaios como First and Last Things (1908) e God The Invisible King (1917).
(Capa: Richard Powers/ Berkley Medallion).
Para Stableford, esse interesse em “teologia alternativa” é um elemento central na obra de Olaf Stapledon, em particular em seu livro Star Maker (1937), “que explora um plano cósmico envolvendo todo o tempo e todo o espaço, culminando na visão do Criador de Estrelas, Deus o Cientista, experimentando com a criação”. Em The Visual Encyclopedia of Science Fiction, diz-se que o Criador de Estrelas é apresentado como a origem do universo, uma estrela muito brilhante cujo propósito é criar, uma Estrela-Deus que é a progenitora de todos os demais sóis, cada um deles igualmente consciente, e assim criaram os planetas e suas múltiplas formas de vida.
O livro – pelo que pude pesquisar ainda inédito no Brasil – recebe elogios rasgados da crítica e de outros escritores do gênero. Na Visual Encyclopedia é apresentado como um trabalho sem paralelo no gênero, do qual se originaram várias visões religiosas que surgiram na ficção científica. Para Adam Roberts, Star Maker é “uma novela para a qual mesmo os superlativos mais extravagantes são insuficientes”.
(Capa: Les Edwards/ Gollancz-Orion).
Stableford lembra que, no ano seguinte ao lançamento de Star Maker, o britânico C.S Lewis utilizou o vocabulário de símbolos da ficção científica para sua fantasia teológica Além do Planeta Silencioso (Out of the Silent Planet), que teve sequência em outros dois livros.
Esses livros de C.S. Lewis estão incluídos no que Adam Roberts chamou de “ficção científica mística e religiosa”. Para ele, o projeto central da trilogia é “(...) demonstrar que o materialismo não é apenas incompatível com a ética, mas também tem de ser eliminado pela raiz, pelo tronco e pelo próprio conceito (Lewis o chama de ‘objetivismo’, apresentando-o com clareza como invenção de Satã). Para Lewis, as realidades espirituais são verdadeiras. O mundo material é uma espécie de aberração, e a dedicação a ele – por exemplo, a dos cientistas modernos – é mera blasfêmia (...)”.
(Ver mais sobre a trilogia de C.S. Lewis no ensaio O Bem e o Mal na Literatura e no Cinema).
Ainda antes de Olaf Stapledon e C.S. Lewis publicarem seus livros, Clifford D. Simak encontrou muita resistência para publicar seu conto The Creator (1935. Ver a matéria Os Primeiros Extraterrestres), numa época em que as revistas do gênero consideravam os temas religiosos não aceitáveis. E nos anos seguintes surgiram as histórias de Robert A. Heinlein, Se Isto Continuar (1940. Ver a matéria Religião e Controle) e O Dia Depois de Amanhã (1941. Ver a matéria Novas Religiões); ou a de Fritz Leiber, Gather, Darkness! (1943), que apresenta um grupo de supostos satanistas derrubando um estado religioso tirânico.
No entanto, para Brian Stableford, as religiões apresentadas nessas histórias eram apenas superestruturas, e as questões teológicas continuavam intocadas. Segundo o estudioso, as coisas mudaram após a Segunda Guerra Mundial, quando surgiram histórias que foram diretamente ao centro da questão. “Para explicar essa súbita explosão de interesse na teologia, precisamos mais do que a observação de que a morte das revistas pulp resultou num declínio dos tabus associados a elas”. Ele cita um ensaio do escritor James Blish, “Cathedrals in Space” (1953, publicado no livro The Issue at Hand, com o pseudônimo William Atheling Jr.), no qual ele cita essas histórias como “instrumentos de uma crise milenarista de uma magnitude que não se via desde o pânico milenarista de 999”.
Stableford explica que James Blish estabelece uma ligação entre essas histórias e o crescimento de histórias baseadas na possibilidade, na época, real, da destruição atômica do planeta, em particular após 1953, com o desenvolvimento da bomba de hidrogênio e a capacidade de EUA e URSS aniquilarem a raça humana. “A principal diferença”, explica Stableford, “entre o novo pânico milenarista e o antigo é que no ano 999 existia m prazo final que expirou e permitiu que o mundo cristão relaxasse novamente. Desde 1945 não existia mais essa possibilidade de alívio. Em vista disso, dificilmente é de se surpreender que o interesse em assuntos teológicos, e em assuntos metafísicos em geral, estimulados por essa insegurança existencial, não tenha diminuído de intensidade, mas tenha se tornado mais forte, ainda que às vezes não fosse explícito”.
Seja como for, o fato é que os temas religiosos, ou teológicos, nas histórias de ficção científica ganharam novo impulso, tendo como resultado a produção de alguns clássicos do gênero, assim como de muitas histórias bem ruinzinhas.
Nas matérias a seguir apresentamos uma série de obras que lidam direta ou indiretamente com questões ligadas à religião, e procuramos separá-las por temas, ainda que nem sempre um livro ou filme lide apenas com um aspecto do assunto.