Praticamente todos os críticos e pesquisadores de ficção científica que falaram sobre A Curva do Sonho (The Lathe of Heaven, 1971), de Ursula K. Le Guin, foram unânimes em afirmar que se trata de uma homenagem da autora a Philip K. Dick, o que a autora confirmou em uma entrevista que concedeu a John Plotz, professor de Literatura Vitoriana, na Brandeis University (EUA).
O livro já havia sido publicado em português com o título O Flagelo dos Céus, pela editora portuguesa Europa-América, e sem dúvida parece uma homenagem a Philip K. Dick, se não na forma como é estruturado e pela qual foi escrito, pelo menos na escolha do tema. E não por acaso, uma vez que Le Guin sempre foi uma das maiores defensoras dos livros de K. Dick, em uma época em que ele ainda não era tão famoso e era até criticado.
O livro apresenta alterações da realidade realizadas pelo personagem George Orr, que possui a incrível capacidade de mudar o mundo a partir de seus sonhos. Em outras palavras, o que ele sonha acaba se tornando realidade; não apenas partes da realidade são modificadas, mas toda ela, de modo que até a história da humanidade e do planeta é alterada, com a nova realidade que ele sonhou ganhando consistência.
Para piorar a situação, Orr percebe que apenas ele tem consciência de que o mundo foi modificado; as demais pessoas vivem na nova realidade como se ela sempre tivesse sido daquela forma. Desesperado com a situação, Orr tenta inibir seus sonhos por meio das drogas, mas acaba se consultando com um psiquiatra, o dr. Wiliam Haber, que vai se tornar outro personagem fundamental na história.
Em entrevista ao jornalista Bill Moyers, na PBS (Public Broadcasting Service), após a reapresentação da produção para TV da própria emissora (The Lathe of Heaven, 1980), Ursula K. Le Guin disse que a história “É um tipo de conto de fadas antigo, no qual alguém está tentando fazer o bem e está sempre sendo derrotado pela realidade, porque tentar fazer o bem simplesmente não é o suficiente. Você também tem de ser realista e seguir com a correnteza”. Ela lembrou ainda que o psiquiatra não é alguém ruim; “(...) ao longo do livro, ele sempre tentar fazer o bem, mas ele está fazendo isso da forma errada, de forma muito agressiva, enquanto George Orr está em sintonia com as coisas, segue a correnteza”.
Dois temas básicos presentes no livro – o indivíduo com poderes fora do comum, e a dificuldade em definir o que é realidade e o que é fantasia, ou sonho – estão sempre presentes na obra de Philip K. Dick, ainda que ele apresente personagens “ruins” com mais frequência. Le Guin disse que não se sente confortável apresentando “vilões”.
O crítico Peter Nicholls disse que “Como em toda a obra de Ursula K. Le Guin, há uma forte ênfase, ainda que não em forma de sermão, na responsabilidade moral do indivíduo, e seu custo”. Essa responsabilidade tem a ver com a relação da autora com o Taoísmo, a tradição filosófica e religiosa chinesa, e o próprio título original do livro foi baseado em uma frase de um livro do filósofo taoísta Chuang-Tzu.
Ursula K. Le Guin – que faleceu em 2018, aos 88 anos – é frequentemente citada entre os maiores nomes da ficção científica e da fantasia, quase sempre em função de suas obras mais famosas e consideradas, como Os Despossuídos (The Dispossessed, 1974), A Mão Esquerda da Escuridão (The Left Hand of Darkness, 1969) e a trilogia de Terramar (O Feiticeiro de Terramar [The Wizard of Earthsea], 1968; As Tumbas de Atuan [The Tombs of Atuan], 1971; O Outro Lado do Mundo [The Farthest Shore], 1972).
No entanto, sua produção literária além desses livros é imensa e riquíssima, e esse A Curva do Sonho é mais um exemplo perfeito da capacidade inventiva e narrativa da autora. Excelente escolha da Editora Morro Branco
A CURVA DO SONHO (The Lathe of Heaven)
Ursula K. Le Guin
Editora Morro Branco
224 páginas