UNIVERSOS E MUNDOS CONSTRUÍDOS
Quando se fala de mundos construídos logo vem à mente o mundo de Matrix (ver matéria também aqui), uma realidade virtual, um mundo paralelo, construído pelas máquinas para apascentar e alimentar-se dos humanos. Talvez seja um dos mais bem sucedidos exemplos desse tipo de construção de um mundo paralelo nos tempos mais recentes da ficção científica.
(Warner Bros./ Village Roadshow Pictures/ Groucho Film Partnership/ Silver Pictures).
Com o avanço da tecnologia relacionada à realidade virtual, surgiram inúmeras obras que poderiam se encaixar nessa categoria, muitas delas (ou a maioria) não publicadas no Brasil. É verdade que essas criações virtuais não se enquadram nas definições clássicas de mundos paralelos, mas é impossível ignorá-las como mundos criados artificialmente, e que funcionam exatamente como mundos paralelos.
E essa história também não começou com Matrix.
Em 1964, por exemplo, o escritor Daniel F. Galouye publicava Simulacron-3, que também foi levado às telas no mesmo ano de Matrix, com o título O 13º Andar; e já tinha sido adaptado para a televisão em 1973, na produção alemã O Mundo Por um Fio.
John Clute escreveu (em The Science Fiction Encyclopedia) que o livro de Galouye é, de certa forma, uma revisão da história de Frederik Pohl, The Tunnel Under the World (1954).
Já o escritor polonês Stanislaw Lem imaginou um mundo paralelo criado por um cientista. Lem desenvolveu vários personagens cientistas em suas histórias, quase todos um tanto alucinados, o que é o caso do Professor Corcoran, que surge no conto com o mesmo título – também conhecido como Further Reminiscences of Ijon Tichy, de 1961. Em português, foi publicado em Viagens de Ijon Tichy, sendo este o personagem que também aparece em várias de suas histórias. Tichy, o narrador, viaja pelo universo, já totalmente colonizado pelos humanos, obtendo conhecimento. Ele encontra o Professor Corcoran, um homem que vive afastado da sociedade, uma vez que não acredita que as pessoas sejam reais. Corcoran mostra a Tichy sua obra. Ele criou cérebros e os aprisionou em caixas de ferro, ligando-os a uma caixa central que lhes fornece bilhões de informações. Assim, esses cérebros imaginam que vivem em um universo real, imaginando terem corpos físicos. Para eles, o mundo em que estão vivendo é absolutamente real, mas estão seguindo as informações fornecidas pelo computador central.
Não por acaso, Corcoran passa a pensar que ele mesmo é uma criação de outro ser, um deus, semelhante a ele. No mundo que ele criou, um cientista também imagina que o seu mundo é irreal, e cria outro mundo em seu laboratório imaginário.
(Capa: Boris Vallejo. Ace Books).
Philip José Farmer imaginou vários universos paralelos na série de livros conhecida como World of Tiers, a partir de O Construtor de Universos (1965), continuando com Armadilha Cósmica (1966), O Cosmos de Kickaha (A Private Cosmos, 1968), Behind the Walls of Terra (1970), The Lavalite World (1977) e More Than Fire (1993).
A série geralmente não é considerada pelos críticos entre seus melhores trabalhos, mas ainda assim os livros parecem ter sido os mais populares, como ressaltou David Pringle em The Science Fiction Encyclopedia, entendendo que as obras não mantêm a mesma consistência. Isso já é possível perceber no segundo livro da série, inferior ao primeiro.
As histórias situam-se em universos artificiais, criados por seres que atingiram um nível tecnológico extraordinário; no entanto, essa raça, geneticamente semelhante à humana, entrou em decadência, ainda que seus descendentes ainda vejam a si mesmos como seres superiores, praticamente deuses, apesar de que nem mesmo sejam mais capazes de compreender a ciência capaz de tornar esses universos possíveis.
Os universos que criam são completos, com planetas e seres vivos, e com leis físicas próprias, estipuladas por eles. O deslocamento entre esses universos e mundos é feito por meio de portais ou por buracos de minhoca criados para conectar as regiões do espaço-tempo.
O primeiro livro começa apresentando o personagem Robert Wolff, um terrestre que descobre um dos portais para o mundo de Tiers, onde conhece o personagem que acaba se tornando central nas histórias, Paul Janus Finnegan (cujas iniciais reproduzem as do nome do próprio autor), também conhecido como Kickaha. O próprio Robert Wolff sofre de amnésia e só posteriormente vai perceber que ele próprio é um dos Senhores.
Apesar de quase sempre ser apresentada como uma série de ficção científica, às vezes também é vista como fantasia. É assim que John Clute a apresenta em The Encyclopedia of Fantasy, informando que os nomes dos Senhores que governam os universos foram obtidos das obras de William Blake.
Na matéria “Outros mundos”, citamos o termo “mundo secundário”, criado por Tolkien, e que alguns autores entendem como sendo uma espécie de mundo alternativo ou paralelo. Nesse sentido, um dos exemplos modernos mais conhecidos é o mundo chamado Fantastica, criado por Michael Ende no livro A História Sem Fim (Die Unendliche Geschichte, 1979).
A história apresenta esse mundo sendo ameaçado pelo Nada, que significa sua destruição total. Mas ele pode ser salvo por um humano, exatamente o jovem que está lendo o livro chamado “A História Sem Fim”. Fantastica é um mundo de fantasia, sem dúvida, mas diretamente relacionado ao nosso, ou, no caso, ao mundo do jovem que Bastian Balthazar Bux, que rouba o livro em questão. Bastian lê a história da Imperatriz, responsável pela manutenção do mundo paralelo, e os problemas que vem enfrentando com a chegada da entidade conhecido como O Nada; além disso, a própria Imperatriz está morrendo. Um jovem chamado Atreyu é convocado para encontrar a cura para a Imperatriz e para seu mundo, o que só pode ser obtido se um jovem humano der a ela um novo nome.
Quanto mais se aprofunda na leitura, mais Bastian percebe que ele deverá ser a criança a salvar Fantastica, imaginando um novo mundo e impedindo que O Nada acabe com tudo o que existe.
(Producers Sales Organization/ Bavaria Film/ Warner Bros.)
O livro foi filmado em 1984, com o título A História Sem Fim (The Neverending Story), com direção de Wolfgang Petersen, e geralmente é criticado pelos especialistas em fantasia por não contar a história até o fim. No filme, é mais fácil perceber que o Nada que ameaça o mundo, aqui chamado de Fantasia, é simplesmente a ausência de pessoas que pensem nesse mundo, que o imaginem, possibilitando que ele continue existindo. Seja como for, o filme é delicioso, e os efeitos são excelentes.
Por outro lado, as sequências – A História Sem Fim 2 – O Próximo Capítulo (The Neverending Story II: The Next Chapter, 1990), dirigido por George Miller, e A História Sem Fim 3 (The Neverending Story III: Escape From Fantasia, 1994), dirigido por Peter MacDonald – não tem qualquer conexão real com as propostas da história de Michael Ende, e nem mesmo uma relação de qualidade com o filme original.
(Paramount Television/ Rumbleseat Productions/ Shaken, Not Stirred Productions/ Viacom Productions).
O seriado Combate Mortal (Deadly Games, 1995-1997), que teve Leonard Nimoy como produtor executivo e também como diretor do primeiro episódio, apresentou James Calvert como o cientista Gus Lloyd, que resolve desenvolver um vídeo game em suas horas de folga, criando um mundo em que os vilões são baseados em pessoas de sua vida real e pretendem dominar o planeta. Só que, de alguma forma, esses vilões começam a surgir em nosso mundo, ganhando vida e realmente ameaçando o planeta.
O principal vilão foi interpretado por Christopher Lloyd e os episódios tiveram atores e atrizes convidados, como Shirley Jones, LeVar Burton e Brent Spinner (de Jornada nas Estrelas: A Nova Geração), Anthony Michael Hall. A série não era grande coisa e teve apenas 13 episódios produzidos entre 1995 e 1997.
Terry O'Quinn, como o General Santiago, em Harsh Realm (20th Century Fox Television/ Ten Thirteen Productions).
Com ainda menos episódios produzidos – apenas nove – entre 1999 e 2000, a série Harsh Realm apresentou um conceito e uma realização mais eficientes.
Foi uma tentativa do produtor Chris Carter de emplacar outro sucesso – ele havia criado Arquivo X (1993-2002) e Millennium (1996-1999) – mas não conseguiu a audiência esperada, de modo que a Fox cancelou sua apresentação após apenas três episódios terem ido ao ar; os seis restantes foram apresentados no canal FX.
Na mesma época em que Matrix foi lançado, estreava eXistenZ, o filme excepcional de David Cronenberg, com Jennifer Jason Leigh, Jude Law, Willem Dafoe e Ian Holm.
Como fez em Videodrome, aqui Cronenberg se aproxima dos universos criados por Philip K. Dick, elaborando um mundo em que é impossível saber o que é real e o que é imaginário. Os próprios personagens são incapazes de decifrar o pesadelo interminável em que se encontram.
Jennifer Jason Leigh e Jude Law conectados ao mundo virtual (Alliance Atlantis Communications/ Canadian Television Fund/ The Harold Greenberg Fund/ The Movie Network/ Natural Nylon Entertainment/ Serendipity Point Films/ Téléfilm Canada/ Union Générale Cinématographique).
Ao mesmo tempo, Cronenberg continua a manifestar críticas contundentes ao mundo moderno, especialmente ao mundo das comunicações. Ele se embrenha no mundo dos jogos e da realidade virtual, sempre estabelecendo uma estranha e, convenhamos, nada improvável relação entre a máquina e a carne, mais uma vez, como se viu em Videodrome. Ele imaginou um jogo biológico, eXistenZ, no qual as pessoas se conectam ao mundo virtual por meio de bioportas instaladas na base de suas colunas. Mas pode ser que isso não seja verdadeiro, uma vez que jogo e vida real são igualmente nítidos na mente das pessoas, e nós, espectadores, não temos como decidir entre um e outro.
O mundo criado pelo jogo é tão real que as pessoas podem morrer nele. Assim, não sabemos se a versão do aparelho de jogos é real, uma espécie de pedaço de carne, de formato indefinido, construído a partir das entranhas de répteis geneticamente alteradas para poderem se conectar às bioportas humanas por um cabo que mais parece um cordão umbilical.
O mundo paralelo criado para os jogadores é absolutamente real. Dentro dele, eles conseguem se conectar a outro jogo, de modo que qualquer noção do que seja a realidade desaparece. Não por acaso, a última frase do filme é uma indagação de um dos personagens: “Nós ainda estamos no jogo?”
OS MUNDOS DE PHILIP K. DICK
Os mundos paralelos “construídos” que surgem nas obras de Philip K. Dick são quase um assunto à parte, e podemos começar falando sobre isso com o conto The Trouble With Bubbles (1953), segundo algumas fontes publicado originalmente na revista If, na mesma edição em que foi publicado o sensacional Um Caso de Consciência, de James Blish. Até onde pude verificar, não foi publicada em português.
(Capa: Ken Fagg).
A história situa-se numa época em que a humanidade desenvolveu uma tecnologia que permite construir “bolhas plásticas”, chamadas Worldcraft, ou seja, as pessoas podem construir mundos e controlar as leis que imperam nesses mundos, incluindo a presença de formas de vida. As pessoas que criam as “bolhas” participam de competições nas quais são julgadas as melhores criações. Ao final do concurso, não apenas a criação vencedora, mas também os demais participantes, destroem duas bolhas, acabando com os mundos que criaram.
O personagem central é Nathan Hull, que não participa desses concursos e que considera imoral destruir os mundos construídos, uma vez que eles incluem formas de vida, e tenta fazer com que seja aprovada uma lei impedindo que a destruição ocorra.
E o final do conto dá a entender que o próprio mundo em que Hull vive é uma criação de outros seres, podendo ser destruído por seus criadores a qualquer momento.
(Capa: Ed Valigursky).
Já no ano seguinte, Philip K. Dick apresentava outro mundo criado especialmente para os seres humanos, no conto The Adjustment Team, publicado originalmente na revista Orbit Science Fiction. Apresenta um conceito que iria surgir inúmeras vezes na obra do autor: a de que o mundo em que vivemos não é exatamente o que imaginamos. Algumas vezes, a realidade está escondida por camadas de irrealidades, fabricadas ou naturais. Nesse caso específico, a realidade é constantemente alterada, ajustada, de acordo com as necessidades da “equipe de ajustes”, seres cuja existência é desconhecida dos humanos e cuja origem não é explicada no conto.
A história foi adaptada para o cinema em Agentes do Destino, com abordagem bem diferente da que se vê no conto.
(Capa sem crédito, porém, provavelmente arte de Ed Valigursky).
PKD continuou explorando o tema em Os Olhos do Céu (Eye in the Sky, 1957), um livro que, segundo o biógrafo Anthony Peake (em A Vida de Philip K. Dick – O Homem Que Lembrava o Futuro. Ed. Seoman), fez com que o autor decidisse que escrever romances era o caminho correto a seguir. Anthony Peake escreveu que “esse enredo envolve mundo alternados, mas desta vez são uma criação dos personagens. Dessa forma, Phil questiona a verdadeira natureza da percepção. Nós podemos ser influenciados pelos pensamentos dos outros? O mundo externo é simplesmente uma criação da mente? Essa ideia de uma espécie de ‘mente grupal’ a que se pode ter acesso em determinadas circunstâncias pode ter sido influenciada pela admiração que PKD tinha pela história de 1949 de Fredric Brown, What Mad Universe [Loucura no Universo]. Esse tema gnóstico seria desenvolvido em seus romances seguintes e foi discutido de maneira inesgotável em sua Exegese”.
(Capa: Jack Faragasso. Macfadden Books).
Outros tipos de mundos construídos surgiriam no espetacular Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (The Three Stigmata of Palmer Eldritch, 1964), um dos livros mais conhecidos de PKD, trabalhando com alguns dos conceitos mais constantes em sua obra. A história original tem alguma relação com seu conto Os Dias de Pat Prafrente (The Days of Perky Pat, publicado em 1963 na revista Amazing Stories. No Brasil, publicado no livro O Pagamento, 2004, Editora Record).
A história se passa num futuro em que a Terra enfrenta problemas ambientais extremos, com o derretimento da calota polar. Colonos vivem em Vênus, Marte, Ganimedes e em outros planetas, obrigados a fugir das condições inóspitas da Terra. Mas as condições de vida nas colônias também não são as melhores; em alguns casos, são insuportáveis. Os colonos recebem as miniaturas Perky Pat, reproduções do mundo e da vida na Terra – ou como deveria ser. Junto com as miniaturas, é comercializada a droga Can-D que, quando ingerida em conjunto, possibilita a união dos espíritos. A droga dá às pessoas a impressão de estarem vivendo no mundo das miniaturas, com as pessoas fundindo-se, transformando-se em uma nova unidade.
(Capa: Bruce Pennington. Manor Books).
O personagem Palmer Eldritch é um industrial interplanetário que havia partido em viagem para um sistema distante, e que retorna ao nosso sistema em uma nave que cai em Plutão. E uma nova empresa surge no mercado fabricando miniaturas, a Chew-Z, mas essas miniaturas só funcionam com os colonos que utilizem uma nova droga, ainda mais poderosa do que a Can-D, e suspeita-se que Eldritch seja o responsável. Mais do que isso, existem indicações de que os seres da região visitada por Eldritch estejam preparando uma invasão ao nosso sistema, utilizando algum processo desconhecido dos humanos, mas que tem relação com a utilização da nova droga.
Segundo Eldritch, no sistema alienígena, a droga era utilizada em orgias religiosas. Ele diz que Deus promete a vida eterna, mas que ele pode fazer melhor: pode realmente fornecer essa vida eterna. Ele fala sobre as possibilidades abertas pelo uso da droga; segundo ele, quando se regressa do mundo construído pela droga, ou sob a ação da droga, não passou tempo algum. As pessoas podem, por exemplo, passar 50 anos no mundo criado pela droga, que não fará qualquer diferença, uma vez que ela escolhe o momento ao qual quer voltar. E nesse mundo que, na verdade, a própria pessoa constrói, ela pode dar forma a tudo o que desejar.
A história inicia apresentando um ambiente opressivo e, às vezes, difícil de estabelecer o que é real e o que é ilusório. Mas essa sensação é ampliada com o surgimento da Chew-Z, com a imaginação das pessoas sendo, literalmente, libertada num mundo ou em outra dimensão, e transformada em realidade.
O livro é excepcional, ainda que às vezes de difícil interpretação, com PKD entrando de cabeça em temas religiosos que iriam dominar alguns de seus livros, em especial O Deus da Fúria (também aqui), Valis e Invasão Divina.