O Vampiro (Phillip Burne-Jones, 1897)
Apesar da recente fama e popularidade dos zumbis, parece claro que eles jamais conseguiram suplantar os vampiros no imaginário popular, e muito menos na quantidade e qualidade das obras produzidas, seja na literatura, no cinema ou na televisão.
E não é por acaso. A história ficcional dos vampiros começa no século 18, e ela inicia fortemente amparada por crenças populares e, em alguns casos, científicas – considerando-se, é claro, o conhecimento científico da época –, ainda reforçadas por pontos de vista e abordagens de cunho religioso.
Sabe-se que o século 18 foi marcado, notadamente na Europa, por um “surto” de vampiros, então tidos por muitos como ameaças reais à população, e por investigações de eventos ocorridos com os supostos bebedores de sangue que pareciam comprovar a existência dos seres.
Daí a começarem a surgir histórias com vampiros, foi um passo.
O crítico e pesquisador Brian Stableford (em The Encyclopedia of Fantasy) disse que os vampiros literários têm suas raízes em duas tradições folclóricas distintas, como “(...) a noção grega da sedutora lâmia” e em “várias superstições da Europa oriental relativas a cadáveres reanimados com inclinações canibalísticas”. Esses últimos seres, segundo Stableford, são mais parecidos com aqueles zumbis de A Noite dos Mortos Vivos do que com o aristocrático conde Drácula, do livro de Bram Stoker.
Os pesquisadores Martha Argel e Humberto Moura Neto (em O Vampiro Antes de Drácula. Ed. Aleph) vão além, entendendo que “Seres fantásticos tomadores de sangue existem numa infinidade de culturas ao redor do mundo, assumindo grande variedade de formas e de comportamento – empusas, lâmias, estriges, bruxas, ghouls, etc”, ainda que considerem que o fato de “partilharem o hábito alimentar” não significa que descendam de uma mesma criatura mitológica ancestral, tendo mais a ver com o “imenso poder simbólico do sangue como fonte da vida”. Assim, apesar da existência de tantas criaturas com alguma semelhança, segundo os pesquisadores, “A grande maioria das criaturas tomadoras de sangue do folclore mundial não contribuiu para o surgimento do mito do vampiro propriamente dito. O conceito do vampiro tem uma origem bem definida e restrita, tanto do ponto de vista geográfico quanto temporal”.
Vampiro (Edvard Munch, 1895).
E, como muitos já sabem, esse local geográfico é a Europa oriental, ou centro-oriental, em particular entre os povos eslavos, tendo sua imagem e seu conceito sendo definidos entre o final do século 17 e meados do século 18. E dessa época até agora os vampiros passaram por várias transformações, muitas delas exacerbadas pelos filmes dos anos 1950 e 1970. J. Gordon Melton (em O Livro dos Vampiros. M. Books, 2003) diz que “Qualquer discussão sobre a aparência dos vampiros precisa levar em conta os vários tipos de vampiro. O vampiro contemporâneo dos anos 80 e 90 mostra uma nítida tendência para uma aparência normal que se encaixa perfeitamente na sociedade, podendo ir e vir sem ser detectado”. Dessa forma, os vampiros mais recentes na verdade retomaram a aparência que era apresentada nas primeiras histórias, nas quais os vampiros podiam se movimentar durante o dia e frequentavam a sociedade sem que as pessoas percebessem suas características vampíricas. Como lembra Melton, não havia nada na aparência de vampiros famosos como Geraldine, Lord Ruthven, Varney ou Carmilla que os distinguisse das demais pessoas, nem mesmo os dentes protuberantes.
Melton entende que grande parte da popularização da figura do vampiro se deve à produção da peça Dracula, por Hamilton Deane, em 1924, e ainda pelo filme Drácula (Dracula), em 1931, estrelado por Bela Lugosi. “(...) o vampiro contemporâneo”, escreveu Melton, “ainda está baseado em grande parte na figura dominante de Drácula, conforme desenvolvida para o palco por Hamilton Deane e, especialmente, como retratada por Bela Lugosi”.
As primeiras obras eram poemas, e a primeira provavelmente foi O Vampiro (Der Vampir, 1748), do alemão Heinrich August Ossenfelder (no Brasil, disponível em algumas coletâneas, que também trazem poemas “vampíricos” da época, como os de Gottfried August Bürger, Goethe e Coleridge).
O poema é narrado pelo próprio vampiro referindo-se ao seu amor, a jovem cristã Christiane, e como pretende apresentar a ela os prazeres noturnos, que incluem beber seu sangue. Argel e Moura Neto dizem que “Ossenfelder trouxe para a ficção o vampiro descrito pela tradição folclórica centro-europeia, acrescentando-lhe um aspecto sensual que o transformou numa ameaça aos valores cristãos”.
A Noiva de Corinto (Ed. Melhoramentos, 2014).
E essa sensualidade iria marcar para sempre as histórias de vampiros e vampiras, tanto na literatura quanto no cinema, além, é claro, de apresentar uma oposição aos valores cristãos tradicionais.
Outras obras da época, ainda que sendo vistas por alguns pesquisadores como influenciadoras do texto vampírico, não apresentam o personagem em si. Por exemplo, Lenore (1773), de Gottfried August Bürger, tem a ver com a Morte, que surge e carrega a personagem central do poema, Lenore, que aguarda a volta de seu noivo da guerra.
Em A Noiva de Corinto (Die Braut von Korinth, 1797. No Brasil, Ed. Melhoramentos), de Johann Wolfgang von Goethe, o tema do vampirismo é mais claro e, segundo vários críticos, reforçou tanto o aspecto sensual dos vampiros e vampiras, quanto o conflito entre as tradições pagãs e cristãs. Como lembram Martha Argel e Humberto Moura Neto, o poema aborda, além da sedução da femme fatale – aqui, trata-se de uma vampira – também o amor além da morte, “(...) que se tornariam temas favoritos dos escritores românticos e, posteriormente, do cinema”.
Thalaba the Destroyer (Createspace Independent Publishing Platform, 2016).
Pesquisadores dessa fase inicial dos textos com vampiros citam o poema Thalaba the Destroyer (1801), do britânico Robert Southey que, segundo se diz, foi o primeiro escritor a apresentar, em língua inglesa, a morte de um vampiro por meio de uma estaca. Em história situada na Arábia, o personagem central, Thalaba, parte em uma jornada para recuperar a espada de seu pai e vingar sua morte pelos magos. Em um ponto da história, ele se encontra com uma vampira, Oneiza, que era sua noiva. Segundo J. Gordon Melton, “Ao relatar o caso da vampira Oneiza, Southey assumiu a noção grega de que o vampiro era um cadáver habitado por um espírito maligno”.
Ilustração do poema Christabel, no livro The Blue Poetry Book (Ilustrações por H. J. Ford e Lancelot Speed, 1891).
Ainda segundo Melton, o poema de Southey compete com Christabel, do poeta mais conhecido Samuel Taylor Coleridge, como o introdutor do tema do vampirismo em língua inglesa. Sabe-se que a primeira parte do poema de Coleridge foi escrita entre 1797 e 1798, e a segunda entre 1800 e 1801, ainda que só tenha sido publicado em 1816 e, ainda assim, trata-se de uma obra inacabada. Melton ressalta que “Embora sem mencionar vampiros abertamente, é agora geralmente aceito que o vampirismo era o tema pretendido em Christabel”, com a personagem vampira Lady Geraldine sendo vista como tal pelo exame de suas características, e Christabel sendo retratada como uma vítima em potencial que precisa ser protegida das forças do mal.
Melton diz que “Coleridge se concentrou no encontro noturno das duas mulheres”, no qual elas acham um local para descansar e Christabel se despe por sugestão de Geraldine, que tira sua roupa parcialmente, mostrando um corpo com uma aparência “magra, velha e asquerosa na cor”. As duas mulheres ficam deitadas por uma hora, após o que o corpo de Geraldine volta a ter um aspecto sadio.
O poema é considerado o introdutor do tema do vampirismo lésbico, que ressurgiria na literatura e no cinema do gênero muitas outras vezes.
Diferentes pesquisadores, entre eles J. Gordon Melton, entendem que o primeiro romance com vampiros foi Der Vampyr (1801), do autor alemão Ignaz Ferdinand Arnold, publicado com o pseudônimo Theodor Ferdinand Kajetan Arnold. Argel e Moura Neto também citam o livro, e Melton, na segunda edição em inglês de The Vampire Book (2011), diz que a obra foi apresentada em três volumes, mas ninguém sabe mais nada a seu respeito, pois deve ter-se perdido. Melton entende que o vampiro, na obra, deve ter sido apresentado em sentido literal, e não metafórico, e isso pode ser concluído pelos demais livros com temas sobrenaturais de Arnold.
Edição de O Vampiro, ainda erroneamente atribuindo a obra a Lord Byron.
Mas a obra que de fato abriu as portas para o tema dos vampiros na literatura foi o conto O Vampiro (The Vampyre, 1819), do médico inglês John William Polidori, publicado na New Monthly Magazine, e que, inicialmente, foi erroneamente atribuída a Lord Byron.
A história surgiu de um dos encontros mais comentados da literatura fantástica, uma vez que resultou não apenas na história de Polidori, mas também em Frankenstein (1818), de Mary Shelley, que transformou a história da literatura de terror e, segundo muitos estudiosos, deu início ao que seria a ficção científica.
O encontro foi na Vila Diodati, mansão próxima ao Lago Genebra que o poeta Lord Byron havia alugado para o verão, levando seu médico e amigo Polidori, e também estavam presentes a meia-irmã de Mary, Claire Clermont, e o poeta Percy Bysshe Shelley, que seria marido de Mary. Byron sugeriu que cada um escrevesse uma história de fantasmas; Mary Shelley iniciou um conto que iria se transformar no livro Frankenstein; Byron compôs um fragmento de história, que logo abandonou, com um personagem que, posteriormente, Polidori usaria como a base para seu conto O Vampiro.
Polidori desenvolveu o personagem Lorde Ruthven, que influenciaria alguns vampiros posteriores, inclusive o Conde Drácula. E, ainda que não tenha incorporado elementos que já faziam parte das lendas sobre vampiros, compôs uma figura enigmática, um aristocrata que circulava livremente pelos salões de festa da nobreza, parecendo distante de tudo e de todos, mas ainda assim, e talvez até mesmo por isso, chamando a atenção e despertando a curiosidade de mulheres e de homens, como ocorre com o jovem e rico Aubrey, que acompanha o vampiro em suas viagens, até que percebe o estranho e maléfico poder que a criatura detém. E as consequências são trágicas, tanto para ele quanto para sua irmã.
O Vampiro, de John William Polidori (Sebo Clepsidra, 2020).
Jess Nevins diz (em The Encyclopedia of Fantastic Victoriana) que O Vampiro é a primeira história moderna de vampiro e de notável importância no desenvolvimento do gênero “terror”, assim como é “a história de vampiro prototípica na literatura inglesa”, podendo ser vista como uma versão tardia da história gótica. “Ruthven é o herói-vilão gótico depois que sucumbiu aos seus desejos: Ruthven tem a natureza melancólica do herói-vilão e seu brilho fatal, mas parece não sentir qualquer motivo para resistir a vitimar os outros. Ruthven não é apenas um vampiro físico, mas, como muitos dos vilões góticos, Ruthven também é um vampiro psicológico. (...) O mal triunfa e o bem é derrotado, que são mensagens apropriadas para as histórias de terror, mas rara nos góticos, cuja audiência gosta de ler sobre vilões depravados desde que eles recebam a devida punição ao final da história”.
Como a história foi inicialmente atribuída a Lorde Byron, tudo indica que ela despertou um interesse e teve uma divulgação que não teria se tivesse sido publicada com o nome de Polidori. Mas, como explica Jess Nevins, sua contribuição para o gênero vai bem além de sua popularidade. Antes de Polidori, o vampiro tinha sido, quase sempre, uma criatura folclórica, mas “Polidori peneirou muitos mitos sobre o vampiro, tanto ingleses quanto europeus, e criou uma versão do mito apropriada para o século 19 e para uma cultura urbana moderna nascente. (...) Ruthven é um aristocrata entediado, cínico e amoral”, tratando as mulheres como nada mais do que receptáculos para sua luxúria, tanto pela carne quanto pelo sangue. “Em outras palavras”, continua Nevins, “Ruthven é pouco diferente dos aristocratas da Regência Britânica, um tipo de pessoas que os leitores de Polidori conheciam ou acreditavam que eram familiares (um subtexto notável de O Vampiro é uma desconfiança da classe aristocrática, que é retratada como decadente e corrupta). Quase todos os escritores de terror posteriores iriam seguir o exemplo de Polidori e fazer seus vampiros criaturas da época moderna e não como monstros folclóricos”.
The Vampyre (The Floating Press, 2009).
Martha Argel e Humberto Moura Neto também destacam aspectos semelhantes, afirmando que “Em seu conto, Polidori reuniu os elementos isolados do vampirismo em um texto literário coerente, afastando-se do repugnante vampiro do folclore para recriar o monstro na forma de um aristocrata sedutor, perverso e contemporâneo. Desse modo, ele transformou o espectro que só aparecia à noite para sugar o sangue dos vivos num ser complexo e crível, que convivia em sociedade e viajava a seu bel prazer, escolhendo suas vítimas em vários países”.
Os dois pesquisadores também levantam o importante aspecto de que o foco da história mudou do herói passivo para o vilão, “(...) que passou a desencadear a ação. (...) Lord Ruthven foi, para o século XIX, aquilo que o Conde Drácula seria para o século XX”.
Jess Nevins disse que O Vampiro foi a primeira história de vampiro a colocar uma ênfase na natureza sexual do vampiro, especificando que o vampiro tem “(...) de se alimentar da vida de uma linda mulher, de modo a prolongar a sua própria por mais alguns meses”. No entanto, como já vimos anteriormente, são citados os poemas O Vampiro (1748) e A Noiva de Corinto (1797) como exemplos mais antigos da introdução da sensualidade nas histórias de vampiros.
Mas o crítico pode estar correto quando afirma que O Vampiro foi a primeira história do gênero a enfatizar o aspecto psicológico do vampirismo e retratar o “charme profano e a habilidade sedutora” do vampiro, de forma que ele não apenas atrai as vítimas das quais se alimenta como também enfraquece a força de vontade dos que estão à sua volta. Nevins disse que alguns críticos entenderam que a incapacidade do personagem Aubrey em quebrar seu juramento a Ruthven é uma evidência de que, de alguma forma, o vampiro possuiu ou enfraqueceu a força de vontade do jovem, por meio de vampirismo psicológico.
Esse aspecto dos vampiros, capazes de penetrar na mente das pessoas, controlando suas vontades e comandando-as, se tornaria comum em muitas histórias, inclusive sendo enfatizado nos filmes que, muitas vezes, utilizaram closes dos olhos dos vampiros para ressaltar suas capacidades em impor seus desejos.