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COLOCANDO A LEITURA EM DIA: A Pequena Caixa de Gwendy e Carbono Alterado

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data05/03/2019
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A Pequena Caixa de Gwendy é o que os americanos chamam de novella, uma história entre 17.500 e 40 mil palavras. Para os padrões da produção de Stephen King, é um conto. Segundo se diz, Stephen King tinha o início da história, mas estava com dificuldade de finalizar; foi Robert Chizmar quem encontrou o caminho. Chizmar não é muito conhecido no Brasil, mas tem vários trabalhos publicados na literatura de terror, assim como roteiros para o cinema e também como editor de antologias e da revista Cemetery Dance, dedicada à publicação de contos e matérias sobre terror e fantasia.
Antes de mais nada, o livro está longe do que Stephen King produziu de melhor, mas ainda assim é atraente. Não sei se pode ser classificado como terror, talvez aproximando-se mais da classificação dark fantasy, com um clima sombrio cercando todos os eventos.
E tudo começa na cidade de Castle Rock, já conhecida de muitas histórias de King, com Gwendy Peterson, de 12 anos, que tem um encontro estranhíssimo com uma figura misteriosa que lhe dá uma caixa de presente. A caixa tem botões na tampa e, segundo o homem misterioso, quando apertados podem causar certos efeitos em qualquer lugar do planeta. Ele diz que cada botão, com cores diferentes, representa um continente, e a responsabilidade que ele confere a Gwendy é imensa.
A caixa também possui na lateral uma pequena alavanca que, quando pressionada, libera um pequeno chocolate em forma de animal. Esse chocolate, quando ingerido, sacia a fome de Gwendy, o que é bastante apropriado, uma vez que ela já estava sofrendo com as provocações na escola por estar um pouco “cheinha”.
Com o passar dos anos, Gwendy percebe que o chocolate é mais do que isso, que ajuda a modificar sua aparência, transformando-a numa adolescente e numa mulher lindíssima.
O que há de mais interessante na história, que tem um final inesperado, é que ela lida com a questão da responsabilidade individual, da importância de nossas escolhas em cada momento da vida e como lidamos com as ferramentas que temos à nossa disposição, mas também sem grandes lições de moral. Ainda que Gwendy tenha sido levada a uma vida que não esperava por meios certamente mágicos, não existe qualquer certeza de que ela tenha sido a responsável por qualquer dos eventos que ocorreram durante o tempo em que ela teve a posse da caixa.
Vale a pena conhecer.


Eu li Carbono Alterado sem conhecer a série da Netflix, sobre a qual já tinha lido alguns comentários, mas não sabia muito bem o que esperar. Foi uma cacetada. O livro é pauleira, em vários sentidos. Tem uma narrativa direta, seca, mas com humor sutil e sarcástico. O autor, o inglês Richard Morgan, não amacia, seja nas cenas de sexo, seja nas cenas de violência, e elas são muitas e bem explícitas, ainda que sempre absolutamente necessárias, considerando-se o ambiente violento e competitivo em que se passa a história.
No futuro relatado, algumas pessoas são praticamente imortais, uma vez que suas mentes, suas personalidades, tudo aquilo que faz de um ser humano o que ele é, pode ser estocado digitalmente e baixado para um novo corpo, ou corpos. Claro que os mais ricos levam vantagem, como sempre. Richard Morgan já declarou, em entrevista ao jornalista Saxon Bullock, que aceita a definição do personagem Kovacs, de que a sociedade sempre foi e sempre será estruturada de modo a favorecer os mais ricos e poderosos.
E, em Carbono Alterado, os ricos e poderosos fazem de tudo o que lhes dá na veneta. Os mais velhos são chamados de Matusas, numa referência ao Matusalém bíblico, que viveu centenas de anos. E é um desses matusas, Laurens Bancroft, que contrata Takeshi Kovacs para solucionar um crime: o seu próprio suicídio.
Kovacs é o centro da ação. Especialista em combate, pertenceu a uma força de elite em batalhas e guerras interestelares, tendo saído do gueto de um planeta distante da Terra. No início da história, ele foi morto, mas digitalmente conservado, e é baixado para um novo corpo na Terra, em São Francisco, contratado pelo milionário em questão. E inicia sua tarefa de detetive, amontoando corpos pelo caminho e envolvendo-se numa trama que é muito mais ampla e complexa do que parecia à primeira vista.
O livro ganhou o Prêmio Philip K. Dick, em 2003 e, coincidentemente ou não, traz algumas semelhanças com algumas obras de Philip K. Dick. Além da investigação detetivesca – que encontramos, por exemplo, em Blade Runner – a descrição detalhada de Morgan da cidade futura encontra ecos em várias histórias de PKD. Mas, principalmente, a questão da identidade, um dos temas centrais de vários livros de Dick. Uma vez que, em Carbono Alterado, uma pessoa pode literalmente ser baixada para qualquer corpo, as confusões e erros são inevitáveis, ainda que o personagem Kovacs não tenha esse problema; em parte, devido ao seu treinamento nas forças de combate e por já ter passado pelo processo de ocupar um novo corpo algumas vezes. Kovacs consegue adaptar-se a novas situações com extrema facilidade.
Na entrevista citada, com o jornalista Saxon Bullock, Morgan explicou como surgiu a ideia para o livro. Ele estava discutindo com um budista a respeito do conceito de carma, em particular sobre a ideia de que todo o sofrimento pelo qual a pessoa passa nessa vida é resultado de algo ruim que ela fez em uma vida anterior. Morgan entendeu que isso parecia justo, até que se perceba que a pessoa não pode se lembrar de suas vidas anteriores e, se você não pode se lembrar, no fim das contas aquela vida foi, definitivamente, vivida por outra pessoa. E, então, por que você deveria pagar pelos crimes de outra pessoa?
“Uma vez que eu mantive essa ideia, ela me fascinou e eu não consegui afastá-la. Eu decidi que queria contar uma história de crime baseada nessa injustiça. E, como não sou um homem religioso, a única maneira pela qual eu poderia fazê-la funcionar era fazendo compras no hardware no Shopping da Fama da Ficção Científica. Existem precedentes para o tipo de tecnologia que Carbono Alterado descreve, voltando a escritores como Robert Sheckley, e existe até mesmo um episódio do Jornada nas Estrelas original, que apresenta a mesma premissa”.
Richard Morgan escreveu duas sequências às aventuras de Takeshi Kovacs: Anjos Partidos (Broken Angels, 2003), também publicado no Brasil, e Woken Furies (2005).

 

A PEQUENA CAIXA DE GWENDY (Gwendy’s Button Box, 2017)
Stephen King e Richard Chizmar
Editora Suma de Letras (2018)
168 páginas

CARBONO ALTERADO (Altered Carbon, 2002)
Richard Morgan
Editora Bertrand Brasil (2017)
490 páginas