Uma das mais importantes escritores do período foi Alice Hastings Bradley Sheldon, que assinou com o pseudônimo James Tiptree Jr., e o fez com tanta convicção que apenas em 1977 sua verdadeira identidade se tornou pública. Ela continuou assinando com o pseudônimo até seu falecimento, em 1987. Com um doutorado em psicologia, graduada em arte, Alice também trabalhou por um curto período como espiã para a CIA, mas destacou-se de fato como escritora, começando a escrever como James Tiptree Jr. em 1967.
Como praticamente todos os críticos que observam a obra de Alice Sheldon parecem concordar, o que ela fez de melhor está nos contos e não nos romances, e teve uma influência imensa na ficção científica. Como explica Adam Roberts, “O Prêmio James Tiptree foi criado após a morte de Sheldon para recompensar a ficção especulativa que interroga noções de gênero. Sua própria escrita realizou isso, e muito mais”.
(Capa: John Picacio/ Tachyon Publications).
Para John Clute, foi entre 1970 e 1977 que ela produziu seus melhores trabalhos, um volume imenso de contos, reunidos em diversas coletâneas, incluindo Her Smoke Rose Up Forever: The Great Years of James Tiptree. Jr., tida por John Clute como uma das mais importantes coletâneas de contos de FC publicadas no século 20. Clute explica que “Vários temas interpenetram-se no melhor trabalho de Tiptree – sexo, identidade, descrições feministas de relações homem/mulher, ecologia, morte –, mas o maior desses temas é a morte. É muito raro que uma história de Tiptree não lide diretamente tanto com morte e terminem com uma morte do espírito, ou de toda a esperança, ou do corpo, ou da raça”.
(Capa: Chesley Bonestell).
Ele cita como exemplo o conto And I Awoke and Found Me Here on the Cold Hill’s Side (1972), publicado originalmente em The Magazine of Fantasy and Science Fiction. “Inicialmente”, diz Clute, “parece tratar-se de uma interpretação direta dos efeitos que alienígenas imensamente superiores têm no homo sapiens. Apenas retroativamente torna-se claro, por meio das eficazes analogias sexuais e antropológicas trabalhadas na história básica, que esses efeitos são absolutamente destrutivos, que os humanos em uma estação espacial significativamente conhecida como Big Junction (algo como “grande encontro”, ou “grande cruzamento”), quando expostos aos alienígenas ali, são afligidos com uma mentalidade fatal de ‘culto à carga’, e se veem atados a uma submissão sexual, um desejo por exogamia cuja provável consequência é a morte da espécie”.
(Capa: Dennis Anderson/ Nelson Doubleday - SFBC).
O conto The Girl Who Was Plugged In (1973), publicado originalmente na coletânea New Dimensions 3, editada por Robert Silverberg, deu a Tiptree seu primeiro prêmio Hugo. A história situa-se em um futuro controlado por corporações e em que, apesar de a propaganda ser ilegal, as empresas utilizam celebridades para divulgar produtos, vinculando-os às figuras populares. Uma jovem de 17 anos, P. Burke, é contratada para se tornar uma dessas celebridades, apesar de ser terrivelmente deformada. Após tentar o suicídio, ela é contatada por uma corporação e passa por modificações, recebendo implantes eletrônicos que lhe permitem controlar outro corpo, uma jovem conhecida como Delphi, de imensa beleza e criada artificialmente, porém sem cérebro. A história progride até Delphi tornar-se uma estrela, até chamar a atenção de um jovem, por quem P. Burke também se apaixona. O rapaz não percebe que Delphi é uma casca sendo controlada por outra pessoa, e o final é trágico.
Adam Roberts diz que “Há, sob a ostentação estilística e o vigoroso repertório de ideias de Tiptree, uma sensibilidade genuína e trágica. As histórias de Tiptree não têm ilusões acerca do sofrimento e não se esquivam das responsabilidades que essa visão acarreta, mas nunca são meramente pessimistas ou severas (na realidade são, com frequência, muito engraçadas). Veja ‘The Girl Who Was Plugged In’ [A Moça que Foi Ligada na Tomada] (...). Sem dúvida é um peça um tanto cruel, mas cruel de um modo tão brilhante e afetuoso, com uma metáfora central tão eloquente e impiedosa, que você não pode deixar de se apaixonar por ela. (...) A metáfora central da história fala de uma ansiedade humana universal, uma ansiedade espantosamente presciente da estratégia preferida no século XXI de mediar a interação social pelo discurso on-line das mídias sociais. E se meu amigo ou amante pudesse me ver como de fato sou, pálida e monstruosa em minha cabine subterrânea, uma Burke ‘como um esquelético golem feminino, flácida, nua e cuspindo fios e sangue’? Com certeza deixaria de me amar. Embora eloquente sobre os papéis de gênero, a essência da história transcende o gênero”.
Esse conto foi adaptado para a excelente e, infelizmente, curta série de TV, Welcome to Paradox (1998), em episódio com direção de Jorge Montesi.
O conto The Women Men Don’t See foi publicado no Magazine of Fantasy and Science Fiction (Capa: Ron Walotsky).
Roberts diz que “Possivelmente, tópicos da mulher como oprimida e do homem como um tipo opressor não punham em relevo o melhor de Tiptree como escritora. Há uma exceção notável a essa declaração – o brilhante conto de 1973, ‘The Women Men Don’t See’ [As Mulheres que os Homens Não Veem], que é famoso e inesquecível por transformar os homens em alienígenas. Suas duas protagonistas femininas são uma maravilha de caracterização, alcançada por um processo de, por assim dizer, colorir a área em volta delas com tamanha habilidade que os espaços vazios moldados pelas duas personalidades alcança extrema credibilidade. O fundamental, é claro, é que essa presença pela ausência é o exato tema (de gênero) da história”.
A coletânea Aurora: Beyond Equality traz os contos Your Faces, O My Sisters! e Houston, Houston, Do You Read? (Capa: Ann Dalton/ Fawcett Gold Medal).
Segundo Roberts, “é provável ser verdade que, quando Tiptree manipula a opressão das mulheres como tema, quase nunca o faz com a mesma perícia”, referindo-se à habilidade relatada nos contos anteriores. Para ele, “A moral claro-escuro de ‘Your Faces, O My Sisters! Your Faces Filled of Light’ [Seus Rosto, Oh, Minhas Irmãs! Seus Rostos Cheios de Luz!](1976) é enfatizada de modo pesado demais; a radiante inocência da protagonista feminina (que acredita, de forma equivocada, que vive em um mundo futuro ginotopiano desprovido de homens) colide de maneira muito desajeitada com a violência estupradora e assassina do que é masculino. E ‘Houston, Houston, Do You Read?’ [Houston, Houston, Está me Ouvindo?] (1976), embora tenha trazido um Hugo para a autora, parece hoje demasiado panfletário (...)”.
John Clute, ao comentar sobre A Momentary Taste of Being (1975), publicado na coletânea The New Atlantis, editada por Robert Silverberg, disse que se trata de seu conto longo mais intenso e admirável, e uma das histórias mais sombrias do gênero, com a raça humana, “(...) a caminho das estrelas, descobre que seu papel racial é agir como gameta em uma união cósmica”. Adam Roberts disse que o conto “(...) situa toda a viagem espacial como um ato sexual cósmico ou, de modo mais específico, situa toda a exploração espacial humana como uma extensão fálica (...)”.
(Capa: John Schoenherr).
Outro destaque é a história – ou, como os norte-americanos classificam, novelette, que nada mais é do que um romance curto – The Screwfly Solution (1977. Na revista Analog), publicado com o outro pseudônimo da autora, Racoona Sheldon, e que também recebeu o prêmio Nebula. A história se passa em um momento em que começam a ocorrer assassinatos organizados de mulheres, que alguns cientistas suspeitam ter uma causa biológica. Surge um movimento religioso chamado Sons of Adam (Filhos de Adão) que acredita que as mulheres são o mal e que Deus está lhes dizendo para livrarem-se de todas as mulheres. Um cientista percebe que se trata de uma doença que faz com que os desejos sexuais dos homens se transformem em impulsos violentos, antes que ele mesmo sucumba à doença e mate sua própria filha. Posteriormente, descobre-se que uma raça alienígena é a responsável pela situação, com o objetivo de livrar-se da raça humana.
Adam Roberts diz que a história é mais interessante do que Houston, Houston, Do You Read? ou do que Your Faces, O My Sisters! Your Faces Filled of Light: “(...) uma fábula muito engenhosa e assustadora, produz maior densidade tanto de afeto quanto de percepção ao imaginar um mundo em que não apenas misóginos inclinados ao estupro, mas todos os homens, entre eles os amáveis e os civilizados, impelidos por um oculto plano alienígena de purgar o cosmos da humanidade, dedicam-se ao assassinato de suas mulheres”.
Alice Sheldon foi o que Adam Roberts chamou de “um ícone da inventividade feminina ante o viés intrinsicamente masculinista da cultura em geral”, sendo “(...) adotada com entusiasmo por críticos feministas da FC, e com boa razão”.
E John Clute e Peter Nicholls consideram que sua “produção limitada”, em particular na fase final de sua vida (ela faleceu em 1987), não encobre o peso de sua contribuição para a ficção científica, entendendo que ela pode ter sido a mais importante nova escritora a entrar no gênero nos anos 1970. O que não é pouca coisa, considerando-se o que foi produzido nesse período.