As transformações na ficção científica a partir do final dos anos 1950, estendendo-se de forma mais significativa pelos anos 1960 e 1970 – que foram chamadas por alguns críticos e escritores de new wave, a nova onda – não parecem ter ocorrido por acaso. Praticamente todas as sociedades do planeta estavam passando por transformações importantes na época, em particular na cultura, com o surgimento e popularização do rock, a nouvelle vague do cinema francês (a nova onda, título que, segundo se diz, originou a utilização do termo new wave para a fc), evoluções no jazz com o fusion, a bossa nova e os ritmos do Caribe, com o desenvolvimento de novas formas de literatura. Para não falar das transformações sociais e políticas em um mundo que chegou a estar bem próximo da destruição total. E as transformações de comportamento nas populações mais jovens, em particular nos Estados Unidos e Europa, não apenas com a utilização de drogas, mas com uma visão bem mais aberta com relação aos relacionamentos sexuais. Tudo parte do que foi chamado de contracultura dos anos 1960.
Primeira edição da New Worlds editada por Michael Moorcock, em maio/junho de 1964 (Capa: James Cawthorn).
Assim, era de se esperar que a ficção científica também passasse por transformações. Peter Nicholls disse que o termo new wave foi mais utilizado por publicitários ligados à fc do que por escritores e que, de qualquer forma, a expressão nunca foi definida com precisão. Segundo Nicholls, entre os primeiros escritores que, posteriormente, foram incluídos no rótulo new wave, estavam vários ingleses, especialmente Brian W. Aldiss e J.G. Ballard. Os dois estavam publicando suas histórias na revista New Worlds, que iria mudar bastante sua linha editorial a partir de maio de 1964, quando o escritor Michael Moorcock assumiu a editoria. A revista começou a apresentar histórias com viés metafórico, com temas mais inclinados à psicologia e às ciências humanas do que para as ciências exatas.
“Em meados dos anos 1960, a ficção científica tradicional”, escreveu Peter Nicholls, “tinha atingido um ponto de crise, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Muitos escritores estavam criando variações intermináveis e, às vezes, descuidadas, dos mesmos temas tradicionais da fc”. Bons escritores continuavam a escrever suas histórias, mas elas se mostravam previsíveis. Assim, muitos dos novos escritores que surgiam perceberam que a ficção científica tinha se tornado uma camisa de força; “(...) tinha se tornado rígida e, paradoxalmente para uma forma de literatura que enfatizava a mudança e a renovação, tinha se tornado conservadora e perdido seu espírito de iniciativa”.
Nicholls explica que o mercado para a ficção científica não estava diminuindo. Pelo contrário, as editoras estavam, mais do que nunca, dispostas a publicar obras do gênero, mas para obter sucesso no formato de livro seria uma boa vantagem se o estilo das histórias das revistas pulp evoluísse para uma prosa mais culta e flexível.
“Então”, diz Nicholls, “em 1965 não havia nada para impedir certo grau de experimentos, tanto na forma quanto no conteúdo da ficção científica, e havia sólidos motivos para tentar, tanto artísticos quanto comerciais”. Ainda assim, Nicholls lembra que muitos dos chamados experimentos da ficção científica nesse período não eram realmente experimentos, mas apenas adaptações das estratégias narrativas e, às vezes, das ironias, que há muito eram conhecidas dos romances predominantes. “De qualquer forma”, diz Nicholls, “alguns escritores, especialmente J.G. Ballard e talvez (mais tarde) Michael Moorcock, genuinamente acrescentaram à prosa de ficção algo que antes não havia”.
(Capa: Jakubowicz).
Adam Roberts, ao comentar sobre a new wave, também destaca o período em que Michael Moorcock esteve à frente da revista New Worlds, a partir de 1964. “Em um editorial”, diz Roberts, “Moorcock pediu uma forma mais apaixonada, sutil, irônica e original de FC, selecionando quatro escritores como promissores padrões do novo estilo: J.G. Ballard, E.C. Tubb, Brian Aldiss e John Brunner. Se estamos, como podemos perfeitamente estar, tentando definir a FC new wave como uma tentativa deliberada de reunir as sensibilidades literárias associadas ao alto modernismo com a energia da popular FC pulp, então esses quatro nomes devem nos lembrar de que nunca se tentou isso como uma mistura igualitária, meio a meio”. E ele diz isso porque, por exemplo, E.C. Tubb publicou 33 livros da saga Dumarest da Terra que poderiam perfeitamente ter sido publicados dez ou vinte anos antes.
Moorcock também recrutou vários escritores norte-americanos, como Samuel Delany, Thomas M. Disch e John Sladek, que foram morar em Londres. “Talvez”, diz Roberts, “isso forneça de fato uma boa noção de que a New Wave foi produto da agitação da contracultura de Londres nos anos 1960. Na verdade, a FC new wave foi parte do interesse internacional mais amplo por técnicas literárias experimentais e de vanguarda. (..) O que a New Wave fez foi pegar um gênero que estivera, em sua modalidade popular, mais preocupado com conteúdo e ideias do que com forma, estilo ou estética, e reconsiderá-lo sob a lógica dos últimos três termos”.
É claro que o surgimento de novos autores e formas de apresentar temas na ficção científica não significou o fim da utilização das formas anteriores, e a chamada fc hard ainda era, e é, a preferida da maioria dos leitores. De qualquer modo, pode-se dizer que as mudanças na sociedade levaram até mesmo as formas mais conservadoras e apresentar visões mais abrangentes.
(Capa: Diane Dillon e Leo Dillon/ Doubleday).
Ao falar sobre os autores da new wave, Peter Nicholls disse que “De repente, sexo explícito era corriqueiro na fc, no trabalho de Brian W. Aldiss, J.G. Ballard, Samuel R. Delany, Norman Spinrad e muitos outros. A antologia editada por Harlan Ellison, Dangerous Visions (1967), conscientemente rompendo tabus, apresentou algumas histórias desse tipo”. Dangerous Visions acabou sendo considerada uma das maiores e mais importantes antologias de fc, com dois prefácios escritos por Isaac Asimov e uma introdução de Harlan Ellison. Entre os contos e novelas estão:
Riders of the Purple Wage, de Philip José Farmer – vencedor do Hugo de 1968, juntamente com Weyr Search, de Anne McCaffrey, primeira história da série O Planeta dos Dragões (Dragonriders of Pern). No que diz respeito às relações sexuais ou à orientação sexual, o ambiente retratado é de liberdade absoluta, sem qualquer tipo de preconceito, inclusive com relação ao personagem central, que é bissexual. Também existe um aparelho chamado fornixator, capaz de satisfazer sexualmente as pessoas que não desejam ter uma vida social, e o faz estimulando diretamente os centros de prazer do cérebro. A religião Panamorite também lida com sexo, sendo que uma das características é a liberdade sexual total, o que inclui o incesto.
A Toy for Juliette, de Robert Bloch, que apresenta um viajante do tempo que rapta pessoas ao longo da linha do tempo para levá-las para sua neta Juliette, que realiza “jogos sexuais” que envolvem tortura e assassinato.
Eutopia, de Poul Anderson, apresenta um personagem homossexual que pertence a uma Terra paralela na qual a civilização grega clássica dominou o planeta.
Sex and/or Mr. Morrison, de Carol Emshwiller, a respeito de uma mulher de idade obcecada por seu inquilino, que pode ser um extraterrestre.
Aye, and Gomorrah, de Samuel R. Delany, vencedor do Prêmio Nebula de 1968, para melhor conto. Apresenta um mundo no qual os astronautas têm seus órgãos de reprodução removidos cirurgicamente antes da puberdade, para evitar a ação da radiação nos gametas. Assim, eles mantêm uma aparência andrógina que atrai um grupo de pessoas com fetiches com relação a eles.
(Capa: Peter Maxish/ Essex House).
As modificações na forma pela qual a fc lidava com as questões sexuais foram tão significativas nos anos 1960 e 1970 que uma editora, a Essex House, chegou a se especializar em ficção científica pornográfica, segundo Peter Nicholls “(...) um gênero que teve seu auge no final dos anos 1960 e início dos 1970”, e que inclui The Image of the Beast (1968) e A Feast Unknown (1969), de Philip José Farmer. O primeiro traz o detevive particular Herald Childe cujas investigações o levam a ter contato com monstros de várias espécies que gostam de sexo violento. O personagem apareceria em mais um livro para a editora e em um terceiro, não pornográfico, Traidor à Humanidade (Traitor to the Living, 1973). O segundo apresenta dois irmãos com o mesmo pai – o famoso Jack, o Estripador – que têm uma vida quase eterna devido a um elixir que foi fornecido a eles por uma sociedade secreta de imortais, mas que descobrem que não podem mais ter relações sexuais normais: só ficam excitados com atos de violência, e só ejaculam quando matam suas vítimas.
Nicholls diz que a editora também publicou obras de Hank Stine e David Meltzer. Stine, que posteriormente legalmente mudou seu nome para Jean Marie Stine, escreveu Season of the Witch (1968), que “(...) interessantemente combina ficção científica e literatura erótica na história de um homem biologicamente transformado em uma mulher como punição por estupro e assassinato, mas que eventualmente encontra seu verdadeiro papel e satisfação como transexual”. A história foi adaptada para o cinema, e mal, com Memory Run (1995) (ver também a matéria Um Mundo de Distopias e Utopias).
Meltzer, mais conhecido como guitarrista de jazz e poeta da geração beat e da contracultura, escreveu duas séries para a Essex. A primeira, The Agency, com três livros: The Agency (1968), The Agent (1968) e How Many Blocks in the Pile? (1969). Segundo John Clute, “(…) é uma sátira consideravelmente cruel dos EUA em um futuro próximo, com um enredo cuja natureza erótica (um jovem é doutrinado pela organização do mesmo nome (The Agency) para escravidão sexual, ele mesmo tornando-se um agente para seus senhores) pode facilmente ser visto como uma metáfora ilustrando a natureza distópica da sociedade pós-industrial”.
A segunda série, conhecida como Brain Plant, traz os livros Lovely (1969), Healer (1969), Out (1969) e Glue Factory (1969), com personagens que percorrem um EUA desconjuntado em uma busca pré-programada por sexo, enquanto os “senhores secretos” governam a partir do coração do complexo industrial-militar.
The Gas (Capa: Harry Douthwaite/ Savoy Books).
Também são citados nessa área mais extrema da ficção científica os escritores Charles Platt e Barry N. Malzberg, que trabalharam com a Ophelia Press. O livro mais comentado de Platt nesse sentido é The Gas (1970), que fala sobre um gás acidentalmente liberado sobre a Inglaterra e que age como um poderoso afrodisíaco. Segundo John Clute, o trabalho de Platt mostra uma clareza constante e uma nítida inclinação para a ofensa. No caso desse livro, “(...) ele trata seu material sexual em termos transgressivamente pornográficos, o que estimulou a ira da polícia de Manchester, muito ativa naqueles dias como autoproclamada árbitro da moral pública”.
O professor Joseph Marchesani, da Pennsylvania State University, já citado na primeira matéria, também destaca as mudanças pelas quais passaram a ficção científica e a fantasia nos anos 1960, e “(...) começaram a refletir as mudanças estimuladas pelo movimento dos direitos civis e o surgimento da contracultura”. Assim, os escritores ligados à new wave “(...) estavam mais propensos a reivindicar um interesse no ‘espaço interior’ em vez de no espaço exterior, e a chamar seu trabalho de ‘ficção especulativa’ em vez de fantasia ou ficção científica. Eles eram menos tímidos a respeito da sexualidade explícita e mais favoráveis a reconsiderações sobre a função dos gêneros e o status social das minorias sexuais. A medida que as expectativas pela igualdade social propagaram-se para raça, gênero e orientação sexual, as mulheres escritoras simpáticas a essas expectativas assumiram os dois gêneros em números crescentes – entre outras, Alice Sheldon, Ursula K. Le Guin, Sally Miller Gearhart, Marge Piercy, Joanna Russ, Suzy McKee Charnas, Elizabeth A. Lynn e Diane Duane.
(Capa: Lightsource Images/ Spinsters Ink).
Gearhart, uma das mais ativas e conhecidas ativistas pelos direitos das mulheres e dos gays nos EUA, publicou seu The Wanderground – Stories of the Hill Women, em 1978, apresentando uma sociedade de mulheres, que abandonaram as cidades governadas por homens para formar uma comunidade isolada. Essas mulheres têm habilidades psíquicas e uma relação de harmonia e equilíbrio com a natureza. Marge Piercy escreveu o romance utópico Woman on the Edge of Time (1976. Ver a matéria Um Mundo de Utopias e Distopias), que traz uma visão de um futuro em que a homossexualidade é aceita sem restrições.
A essas mulheres juntou-se um número menor de escritores homens com simpatias semelhantes, notavelmente Thomas M. Disch e Samuel R. Delany. Sob sua influência, descrições favoráveis a sexualidade alternativa e a gênero multiplicaram-se na ficção científica e na fantasia”.
(Penguin Books).
Um dos livros desse período, citado por Adam Roberts, é Giles Goat Boy, or the Revised New Syllabus of George Giles Our Grand Tutor (Giles, o Menino-Bode, ou o Novo Sumário Revisto de George Giles, nosso Grande Tutor, 1966), de John Barth. Segundo Roberts, a “(...) meia dúzia de textos mais importantes desse período estão fascinados por um tema em particular: o valor do Messias”. O livro de Barth está entre essa meia dúzia, segundo Roberts, ao lado de Um Estranho Numa Terra Estranha, Duna, a série com Jerry Cornelius, de Michael Moorcock, e alguns livros de Philip K. Dick, como Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, O Caçador de Androides e Ubik.
E, diz Roberts, o Messias de John Barth é “(...) de modo deliberado, caprino”. O livro “(...) conta a história de um humano criado como bode em uma fazenda, que passa a acreditar que é o Messias. Barth ambienta sua novela em um mundo futuro dividido entre duas grandes universidades, traduzindo como paródia as geografias da Guerra Fria no idioma das novelas dos campi (...). O Campus Ocidental é governado por um supercomputador conhecido como WESCAC, assim como o Campus Oriental é governado pelo EASCAC, e o menino-bode mencionado no título pode ser ou não o filho do WESCAC, o primeiro homem ‘programado’. (...) Giles traduz as divisas de Cristo para o idioma do campus (‘aprovados são os que levaram bomba!’), mas é tudo coisa de bode, não só em termos de comer capim, mas de uma incessante e um tanto tediosa excitação que o faz copular com cabras e com um grupo de mulheres que revelam uma resignação deprimente. A novela de forma tão descontraída com tantas cenas de estupro que ultrapassa a sátira e entra na agonia. O sexo e a blasfêmia indireta talvez tivessem parecido mais chocantes nos anos 1960 do que parecem hoje, embora haja muito mais no livro que a iconoclastia”.
(Capa: Harry Douthwaite/ Avon).
A série de livros de Michael Moorcock com o personagem Jerry Cornelius, citada acima, inicia com The Final Programme (1968), e segue com A Cure for Cancer (1971), The English Assassin (1972) e The Condition of Muzak (1977). O personagem surgiu na revista New Worlds, que Moorcock editava, na história Preliminary Data (1965). Outras histórias com o personagem foram escritas por Brian Aldiss, M. John Harrison e Norman Spinrad, além de inúmeros contos de Moorcock, reunidos em coletâneas. Posteriormente, outras séries com o personagem surgiram, nos anos 1980 e 2000.
(Capa: Tom Hachtman/ Holt, Rinehart and Winston).
Adam Roberts diz que “Cornelius aparece como uma espécie de James Bond surrealista, voando como piloto, em uma sucessão de máquinas fantásticas, por paisagens europeias devastadas pela guerra, matando sem remorso, entregando-se aos excessos da bebida e do sexo. A vilã ambígua, Miss Brunner, usa um enorme compactador chamado DUEL – Decimal Unit Electronic Linkage [Conexão Eletrônica de Unidade Decimal] – para criar um híbrido programado de si mesma e de Cornelius, um transexual pós-humano”. E esse ser destrói a Europa.
Adam Roberts diz que “Moorcock por certo tentou chocar com mais severidade que a maioria de seus contemporâneos, e muitos momentos permanecem chocantes mesmo em nossa época menos inibida”, e cita o conto The Swastika Set-Up (1971), publicado inicialmente na revista Corridor (1972), e depois incluído na coletânea The Lives and Times of Jerry Cornelius (1976), que começa com Cornelius cometendo incesto com a mãe.
Jon Finch, Jenny Runacre e Graham Crowden, em O Programa Final (Anglo-EMI Film Distributors/ Goodtimes Enterprises/ Gladiole Films Production).
O primeiro livro da série foi adaptado para o cinema em O Programa Final (The Final Programme, 1973. Também com o título The Last Days of Man on Earth), produção inglesa dirigida por Robert Fuest, também responsável pelo roteiro. John Finch interpreta Jerry Cornelius, e Jenny Runacre é Miss Brunner. Infelizmente, o filme não decola, com um roteiro horrível que se perde em excessos e indefinições. Como disse o crítico Michael Weldon, foi uma tentativa fracassada de realizar um filme cult. John Brosnan e Peter Nicholls não foram menos rigorosos, afirmando que o filme parece impressionante, mas não manteve muito da criação de Moorcock. O final é pavoroso: o que no livro era o surgimento do ser bissexual, o Messias, é transformado num neanderthal, sem qualquer sentido para a história.
Phil Hardy chamou a produção de “um filme seriamente defeituoso”, com o diretor Fuest colocando todas suas energias nos cenários elegantes, reduzindo o elemental ao meramente decorativo.
Uma obra importante do período foi o sensacional A Mão Esquerda da Escuridão (The Left Hand of Darkness, 1969), de Ursula K. Le Guin. Peter Nicholls disse que, nos anos 1960, a miscigenação era um tema sério e aceitável na ficção científica, e o livro de Ursula K. Le Guin foi, talvez, o que o explorou da forma mais cuidadosa e delicada, ao apresentar a história de um humano que é forçado a repensar toda a questão dos papéis sexuais quando tem de encarar uma raça alienígena, os Gethenianos, que é bissexual, podendo assumir, em épocas diferentes, tanto o sexo masculino quanto o feminino, ou mesmo o neutro. Para Nicholls, “A força do romance vem da interação entre o estranho e o familiar; os Gethenianos são semelhantes a nós em muitos aspectos, e nosso lento entendimento de suas diferenças diz muito a respeito do sexo e do sexismo em nosso mundo e sobre nossa alienação cultural em geral”.
(Capa: Diane Dillon e Leo Dillon/ Ace Books).
Adam Roberts considera que “A Mão Esquerda da Escuridão é com frequência discutido, e na verdade ensinado, como ferramenta para reflexão sobre gênero, desempenhando essa função de modo admirável. Mas há muito mais na obra que sua função heurística, e na verdade existe, de forma polêmica, um essencialismo de gênero, um tanto perigoso, inerente à suposição de que Le Guin, sendo mulher, deva ter subordinado seu projeto estético ao proselitismo feminista. A verdade disso é que a obra de Le Guin é sempre muito equilibrada, e, de fato, o equilíbrio em si constitui uma de suas maiores preocupações”.
O livro foi marcante na ficção científica, colocando o nome de Ursula K. Le Guin quase instantaneamente entre as maiores escritoras – e escritores em geral – do gênero. David Pringle disse que “Em meados dos anos 1970 Le Guin era a mais frequentemente discutida, a mais intensamente estudada entre os autores da fc. Existiu uma quantidade de escritoras no campo da ficção científica americana, dominada por homens (C.L. Moore, Leigh Brackett, Judith Merrill, Zena Henderson e Anne McCaffrey, para nomear algumas), mas Le Guin foi a primeira a ganhar um status mais importante indiscutível – a primeira a se tornar, de fato, um guru; uma inspiração para os jovens escritores de ambos os sexos, assim como para os leitores”.
Peter Nicholls disse que a ficção científica, mais do que outros gêneros (com exceção do terror), é mais sujeita a unir sexo com aversão. Ele cita Robert Bloch, Ray Bradbury e Theodore Sturgeon como autores que escreveram histórias em que o sexo está inextricavelmente ligado a imagens de violência, sangue, repugnância e dor, apesar de que esses escritores geralmente sejam considerados mais voltados para o aspecto “liberal” da ficção científica. Para Nicholls, essa relação doentia com a sexualidade, talvez de origem cultural, também se reflete em uma imagem recorrente da ficção científica abertamente sexual: “(...) um dualismo corpo/mente no qual o corpo é visto como ‘alienígena’ e governando a mente, mais do que sendo governado por ela ou em parceria com ela”.
“Pelo lado mais positivo”, diz Nicholls, “a fc que conscientemente julga os preconceitos sexuais de nossa sociedade imaginando sociedades com expectativas sexuais totalmente diferentes, começou – relativamente falando – a florescer a partir dos anos 1970, ainda que permanecendo um pequeno subgênero dentro da fc em geral. Muitos desses trabalhos foram escritos por mulheres, especialmente escritoras feministas, notadamente Joanna Russ”. Assim, segundo explica Nicholls, as escritoras (e escritores) desse período começaram a apresentar extrapolações em direção a sociedades nas quais a norma eram o troilismo, homossexualidade, bissexualidade e mesmo pansexualidade.
(Capa: Steve Weston/ Hamlyn).
Um exemplo de relacionamento aberto com alienígenas, por exemplo, pode ser encontrado em Strangers, de Gardner Dozois, inicialmente publicado em New Dimensions IV (1974), editado por Robert Silverberg, e em 1978 expandido para romance. Segundo Nicholls, é um tratamento sensível do amor entre raças alienígenas, com atenção especial para os erros terríveis que podem ocorrer ao se tentar entender uma sociedade estrangeira a partir das concepções de sua própria sociedade. David Pringle diz que o livro tem semelhanças óbvias com o livro Os Amantes do Ano 3050 (Lovers, 1961), de Philip José Farmer, “(...) mas é mais bem feito”.
Entre os livros mais citados desse período estão Dhalgren (1975) e Triton (1976), de Samuel R. Delany, 334 (1972), de Thomas M. Disch, e The Female Man (1975), de Joanna Russ.
(Capa: Chris Moore/ Gollancz SF Masterworks).
Dhalgren, com quase 900 páginas, é um livro controverso, às vezes incensado como um dos melhores da fc, outras vezes tido como enfadonho, até mesmo por alguns escritores do gênero. E, ao mesmo tempo em que é um texto experimental de difícil leitura e ainda mais difícil interpretação, inspirado no livro Finnegans Wake (1939), de James Joyce, foi um imenso sucesso de vendas. Diz-se que era, para a época, sexualmente bastante explícito, o que pode ter alavancado as vendas.
David Pringle definiu a obra como “Um livro consideravelmente longo e autoindulgente com um apelo para uma grande audiência jovem, apesar de ser obscuro (ou, talvez, devido a isso). Muitos de nós não conseguimos ter qualquer entusiasmo por esse livro difícil, mas alguns críticos o veem como uma obra-prima da ficção científica de vanguarda”.
(Capa: Dean Ellis/ Bantam Books).
Adam Roberts diz que Dhalgren, obra “(...) ambientada na cidade futura de Bellona, multifacetada e fragmentada pelo tempo, tem sido, talvez, mais admirada que amada”. Para Roberts, é possível que a estranha cidade da história exteriorize a vida interior esquizofrênica do personagem principal, Kid, que é o “foco do sexo polimorficamente promíscuo do livro. Dhalgren é um livro repetitivo, trabalhando de maneira contínua o mesmo episódio ou episódios similares, e preenchendo boa parte de sua grande extensão com relatos divagantes de conversas divagantes, desconexas ou embriagadas de grupinhos fechados, regadas a sexo. O sexo também é repetitivo, sempre e sempre a mesma coisa, ainda que esse fato não pareça nos desanimar”.
(Capa: Mitchell Hooks/ Bantam Books).
Peter Nicholls explica que o outro livro de Delany, Triton, é estruturado de forma mais tradicional, “(...) mas, de certa forma, mais sofisticada. Ele evoca uma série de sociedades futuras diferenciadas principalmente ao longo de linhas sexuais; o herói masculino, que começa com um machismo particularmente tradicional e insensível, no final das contas escolhe tornar-se uma mulher. (...) O livro propõe questões interessantes acerca da sexualidade e também sobre a liberdade de escolha”.
A história opõe a sociedade mais aberta de Tritão, a lua de Netuno, a as sociedades mais restritivas da Terra e Marte, seguindo a vida do personagem Bron Hellstrom que, segundo Adam Roberts, “(...) serve de mediador para uma série de aspectos familiares (pelo menos para certa crítica) e não familiares da sexualidade humana. O próprio Hellstrom se transformou por cirurgia de homem em mulher, e a novela como um todo trabalha sem cessar para desfazer as noções tradicionais de sexo como algo de alguma maneira inerente aos corpos biológicos. O compromisso com uma completa perversidade polimórfica e a inflexível aceitação da violência que isso às vezes acarreta faz do livro uma leitura absorvente”.
(Capa: Morgan Kane/ Bantam Books).
O livro The Female Man, de Joanna Russ, foi um dos cem escolhidos por David Pringle para seu Science Fiction: The 100 Best Books, que relaciona os melhores do gênero entre 1949 e 1984. E, segundo ele, trata-se de “um dos mais memoráveis e significantes romances de fc dos anos 1970, e impulsiona a forma da ficção científica ao limite para fazer valer um ponto de vista válido e forte. Ele afirma que se trata de um livro extremamente “didático”, mas que desfila seu didatismo de forma orgulhosa e provocativa, “(...) nos desafiando a negar que esse didatismo também possa ser arte. (...) Na realidade, é um romance muito engenhoso que utiliza muitos artifícios retóricos com o objetivo de prevenir respostas automáticas”.
Fala sobre a vida de quatro mulheres – Janet, Jeannine, Joanna e Jael – que na verdade são uma mulher. Elas vivem em mundos alternativos, mas as fronteiras entre esses mundos estão começando a se romper, permitindo que elas se encontrem. O mundo de Joanna é semelhante ao dos Estados Unidos nos anos 1970; no mundo de Jeannine, a Grande Depressão não terminou e a Segunda Guerra Mundial não ocorreu, uma vez que Hitler foi assassinado em 1936; o mundo de Janet, chamado Whileaway, uma utopia em um futuro distante na qual todos os homens morreram de uma praga, 800 anos antes e as mulheres se reproduzem por partenogênese. David Pringle diz que é o mundo mais radicalmente alterado, um planeta no qual "(.“.) não podem existir ‘problemas’ de relacionamento entre os sexos, uma vez que só há um gênero de ser humano – o livre e onipotente Female Man”. A quarta personagem, Jael, vive em uma distopia na qual uma batalha entre os sexos está em andamento por 40 anos, e é ela quem reúne as mulheres em seu próprio mundo, uma vez que entende que elas são quatro versões da mesma mulher.
(Capa: Peter Jones/ Star).
Segundo Pringle, “A comédia amarga do livro é gerada pelo choque entre as personalidades muito diferentes que foram formadas pelas condições sociais desses mundos distintos”. Pringle continua, afirmando que o livro está longe de ser um romance “(...) equilibrado e razoável. Foi escrito com raiva, um desejo de vingança e um anseio por libertação genuína. A autora entrega-se a suas fantasias por completo, no que Phyllis Chesler descreveu como uma ‘exploração do espaço interior feminista’ – uma exploração que revela cantos escuros tanto quanto esperanças brilhantes. O resultado é um livro inquietante, e de qualquer forma corajoso. Joanna Russ (...) juntamente com a mais popular Ursula Le Guin, foi bem sucedida em mais uma vez abrir as perspectivas utópicas da ficção científica. Ela ousou sonhar com um mundo melhor”.
Adam Roberts também destaca o aspecto da formação das diferentes personalidades e seu papel no enredo do livro. “Os personagens deslizam de um mundo para outro”, disse, “e Russ é bastante enfática sobre o modo como diferentes circunstâncias sociais podem afetar o mesmo indivíduo e reconstruir a ele ou a ela de modo radical. É uma obra-prima da ficção científica, e sua circularidade é evidente no modo como amarra a narrativa em paralelo antes que em sequência. Nesse movimento simples e brilhante, Russ expõe a força crucial de sua Newer Wave”.
O mundo de Whileaway já havia aparecido no conto When It Changed (1972), publicado originalmente na coletânea Again, Dangerous Visions (1972), editada por Harlan Ellison, como uma sequência da coletânea clássica Dangerous Visions (1967). O conto ganhou o prêmio Nebula de 1972 e, como explica John Clute, descreve “(...) um mundo florescendo com a ausência dos homens, eliminados séculos antes por uma praga; a mutilação da cultura de Whileaway, após a chegada de uma nave com uma tripulação masculina espantosamente intolerante, é descrita brutalmente”. Joseph Marchesani diz que, no conto, “Russ pega o tratamento costumeiro da ficção científica de um planeta só de mulheres visitado por homens, e o vira às avessas; em vez de experimentar uma transformação reflexiva em uma heterossexual entusiástica, a narradora mulher identifica precisamente os homens como uma ameaça profunda à sua cultura e identidade lésbica”.
(Capa: Rick Sternbach).
Russ publicou We Who Are About to... inicialmente na revista Galaxy (1976) e depois em livro (1977), com a narração feita por uma mulher, parte de um grupo de pessoas que caiu com sua nave em um planeta desfavorável à vida humana, mas negam o fato de que suas mortes são inevitáveis, uma vez que seus suprimentos vão acabar. John Clute explica que a mulher narradora se recusa a ser coagida a ser engravidada, segundo a linha de pensamento ilusório do grupo dominante em seguir um modelo Adão e Eva de sua situação. Os eventos seguem na direção da violência, de forma que ela tem de matar os demais sobreviventes para evitar ser estuprada. “O romance funciona não apenas como uma sátira afiada”, diz Clute, “mas como uma análise dos preconceitos dissimulados de muitas ficções científicas tradicionais”.
(Capa: Keleck/ J. C. Lattès).
Também em 1976 foi publicado o livro de Ian Watson, Orgasmachine, história que teve a participação de sua esposa, Judy Watson, conforme o próprio autor explica. Segundo diz, começou a escrever fc quando viveu no Japão entre 1967 e 1970, e a ideia para o livro surgiu quando ele visitou uma ilha onde as mulheres mergulhadoras conhecidas como “ama” pegavam pérolas no fundo do mar. Watson imaginou uma ilha onde mulheres artificiais fossem confeccionadas. Nessa época, sua esposa escreveu alguns contos que ele reescreveu e expandiu, e um deles falava sobre uma mulher presa a uma máquina de sexo, e que se tornava confusa sobre sua personalidade, sem saber se era uma mulher ou uma máquina. Ao mesmo tempo, ele entrou em contato com os livros da Essex House, já comentados anteriormente, que o inspiraram a escrever um romance erótico satírico.
A história foi chamada inicialmente The Woman Factory, posteriormente The Woman Plant, e encontrou imensas dificuldades para ser publicada na Inglaterra, quando Watson voltou ao seu país de origem, sendo publicado na França com o título Orgasmachine.
Adam Roberts explica que o livro “(...) postula um mundo em que as mulheres são cultivadas para o sexo, assim como pérolas artificiais são cultivadas para serem utilizadas em joalheria. A fantástica bizarrice do (notável) inventivo itinerário das alteradas e despersonalizadas escravas sexuais de Watson dá à novela uma riqueza superficial. (...) Trata-se da dominação masculina das mulheres, o abismo de crueldade e abuso que as mulheres enfrentam. É uma sátira, claro, e, apesar de toda a sua sexualidade explícita, está o mais longe que possamos imaginar do universo erótico. Orgasmachine toma um dos modos mais íntimos e universais de comunicação entre duas pessoas – o sexo – e extrapola a partir dele uma distopia”.
Essas novas formas de elaborar histórias e as novas abordagens aos temas iriam se aprimorar e expandir nas décadas seguintes, também acompanhando mudanças significativas no comportamento das sociedades, em particular nos EUA e Europa.