Eu não sei se isso acontece com muitos leitores, mas comigo é comum. Explicando: às vezes, quando começo a ler um livro, com apenas poucas linhas, poucos parágrafos ou uma página, eu já sei que vou gostar. Outras vezes, apenas poucas páginas adiante, eu já sei que vou adorar e ser completamente envolvido pela narração.
Pois foi exatamente o que aconteceu quando comecei a ler A Parábola do Semeador, de Octavia E. Butler, com a narrativa na primeira pessoa da personagem Lauren Oya Olamina. Cem páginas depois, e eu só conseguia me perguntar o que diabos eu estava pensando quando demorei tanto tempo para descobrir a obra, apesar de já ter lido tantos comentários fantásticos a respeito de Octavia Butler. E já começava a entender porque ela foi chamada de A Grande Dama da Ficção Científica.
O livro é uma distopia, com história situada entre 2024 e 2027, nos Estados Unidos, um país irreconhecível, com a sociedade em absoluta desintegração. Lauren mora em uma comunidade que, na verdade, é composta por alguns quarteirões de um barro periférico de Los Angeles, uma espécie de condomínio fechado por um portão para impedir a invasão por criminosos de todos os tipos. É uma de várias comunidades existentes na cidade, ou no país inteiro, algumas com mais recursos que outras. As pessoas que precisam sair do bairro têm de ser acompanhadas por uma escolta armada, tamanho o nível de violência. A polícia não funciona e, para ser acionada em casos de emergência, cobra taxas dos habitantes, assim como os bombeiros.
Com o desemprego atingindo taxas jamais vistas, as grandes empresas começam a empregar as pessoas em regime de escravidão, trabalhando para comer, recebendo em bônus que precisam gastar para comprar alimentos e outros bens fornecidos pelos próprios empregadores a preços altíssimos, de modo que ainda ficam devendo às empresas.
Lauren Olamina é inteligente, prática, e ainda sofre com a hiperempatia, uma doença que faz com que ela sinta intensamente a dor e o prazer das pessoas com quem convive. Mas isso não a impede de fazer o que é preciso fazer para sobreviver quando a situação se torna ainda pior, tornando a vida na comunidade insustentável. E ela ainda cria uma religião, ou mais propriamente uma filosofia, a Semente da Terra, que mistura ensinamentos de várias religiões, baseada no conceito de que a mudança é absolutamente necessária, mas com uma visão totalmente diferente de Deus – ela diz que “Deus é mudança” –, e que tem como destino final “criar raízes entre as estrelas”.
A narração dos eventos dessa sociedade em avançado processo de degeneração é feita por meio do diário de Lauren, escrito com perspicácia e atenção aos detalhes, com desenvolvimento preciso e profundo das personagens. As datas dos acontecimentos – hoje, muito próximas de nós – podem não agradar a alguns leitores, e muitos livros de ficção científica já sofreram com isso. Mas também não é possível dizer que não se trata de um desenvolvimento possível para a sociedade atual. Em uma entrevista publicada ao final do livro, Octavia E. Butler disse que quis imaginar um futuro não afetado por habilidades parapsíquicas como telepatia ou telecinese, intervenção alienígena ou mágica. O que quis foi olhar para onde estamos agora, o que estamos fazendo agora, imaginando “onde alguns dos nossos comportamentos atuais e problemas negligenciados podem nos levar”.
O livro também é o que se chama de “romance de formação” – ou bildungsroman, no conceito original em alemão – que apresenta o crescimento gradual da personagem central ao longo de sua jornada, da infância à fase adulta, crescimento que pode ocorrer em diferentes níveis, do físico ao psicológico.
Enfim, só lendo. O livro é uma maravilha, e teve sequência com A Parábola dos Talentos, lançada pela Editora Morro Branco agora em 2019, e que já está na mão... já vou começar a ler... já, já.
A PARÁBOLA DO SEMEADOR (Parable of the Sower, 1993)
Octavia E. Butler
Editora Morro Branco
432 páginas