Ilustração de Julie Zimmi/ Pixabay.
O escritor e filósofo Colin Wilson – ele mesmo autor de um livro de ficção científica com vampiros alienígenas – iniciou seu texto sobre Drácula, em Horror: 100 Best Books, dizendo que “Drácula é uma obra-prima paradoxal, um trabalho que, de certa forma, não tem direito de existir. Os outros romances de fantasia de Stoker – The Lady of the Shroud, A Toca do Verme Branco e Os Sete Dedos da Morte – revelam uma deprimente falta de talento literário; eles não são refinados e são óbvios. Todavia, Drácula é um dos clássicos mais extraordinários em todo o âmbito da ficção de terror”.
E, ainda que nem todos os críticos concordem com Colin Wilson quanto aos outros trabalhos de Stoker, parece ser um ponto em comum todos reconhecerem que, após Drácula, publicado em 1897, os vampiros nunca mais foram os mesmos. O conde Drácula estabeleceu uma série de parâmetros para as histórias de vampiros que iriam inundar a literatura de terror e o cinema do gênero no século 20.
Drácula mudou a forma como os vampiros seriam apresentados dali em diante, ainda que o livro não tenha sido um grande sucesso de vendas nos primeiros anos após a publicação. Mas, como disse John Clute (em Encyclopedia of Fantasy), o livro é, possivelmente, a ficção sobrenatural mais famosa já escrita, “(...) e o texto deu o formato definitivo à figura do vampiro. O histórico Príncipe Vlad IV (1431-1476) – Vlad, o Impalador – nunca é mencionado em Drácula, mas o Conde é um membro da família Szekely, vive na Transilvânia e tem 466 anos de idade, e como o senhor da guerra Vlad, é um militar. Ele é sombrio, magro e assustadoramente demoníaco na aparência; com isso e seu efeito sedutor sobre jovens mulheres, ele leva ao auge a tradição vampírica que John Polidori criou a partir de sua relação obsessiva com Byron. Mas o Drácula de Stoker também tem pelos nas palmas das mãos, hálito ruim, força anormal e unhas bem afiadas, e é frio ao toque”.
Primeira edição de Drácula (Archibald Constable & Co./ 1897).
Os vampirizados por Drácula morrem, mas renascem como vampiros, e ele pode ser combatido pela utilização de alho, um crucifixo ou uma rosa silvestre. Ele pode ser morto por uma bala, por uma estaca enfiada em seu coração ou por decapitação. Clute lembra que, ao final do livro, Drácula é destruído, e que “(...) Stoker não tem nada a ver com qualquer uma das incontáveis ressuscitações”, que foram bem comuns no cinema, em particular.
Don D’Ammassa (em Encyclopedia of Fantasy and Horror Fiction) também destaca esse ultimo aspecto de Drácula, dizendo que “Os leitores modernos frequentemente se esquecem que Drácula podia andar ao ar livre durante o dia e que podia ser morto por um disparo de arma de fogo”. Aliás, como os demais vampiros das primeiras histórias, que também podiam se locomover livremente durante o dia, sem “queimar” ao Sol, um artifício que foi utilizado posteriormente.
Capa da edição de 1901 (Archibald Constable & Co.).
Brian Stableford disse que Drácula se tornou o arquétipo do vampiro na ficção ocultista, mas que o vampiro manteve um interesse considerável na fantasia devido à sensualidade que herdou, em parte, de histórias “lâmia” como A Morta Amorosa, de Gautier, e em parte pelo carisma terrivelmente ambivalente dos vilões de Polidori e de Stoker. “Não importa o quanto os escritores de terror tenham tentado confinar os vampiros a papéis diretamente monstruosos, essa qualidade carismática não pode ser totalmente suprimida, e se tornou progressivamente flagrante no cinema, quando os padrões de censura foram relaxados”.
A história foi escrita no estilo conhecido como “romance epistolar”, desenvolvendo os acontecimentos a partir de outros textos, como diários, cartas ou notícias de jornais e revistas. O diário, no caso, é do personagem Jonathan Harker, que viaja até o castelo do Conde Drácula, nos Cárpatos, para ajudá-lo na compra de uma casa próxima a Londres. Em sua primeira noite no castelo, Harker já tem um encontro com três vampiras e é salvo pelo próprio Drácula que, logo depois, deixa o homem sozinho, tendo de fugir e surgir delirando em um hospital de Budapeste.
Eventualmente, Drácula vai para a Inglaterra de navio, levando consigo caixas com terra de seu castelo, e ao final da viagem é insinuado que o Conde tem a capacidade de transformar seu corpo em um animal, como fazia Carmilla. E na Inglaterra, Drácula começa a perseguir Lucy, a melhor amiga de Mina, noiva de Harker. É o professor Abraham Van Helsing quem descobre a origem da doença que começa a afetar Lucy, mas apesar de seu conhecimento sobre os vampiros, não consegue impedir sua morte e eventual retorno como vampira.
A partir daí, Van Helsing e os demais personagens iniciam uma caçada para eliminar Drácula, que consegue escapar para a Romênia, mas é seguido pelos heróis e, finalmente, morto por decapitação e com uma estaca enfiada em seu coração.
Bram Stoker (c. 1906).
O texto de abertura do já citado texto de Colin Wilson, escrito pelos editores do livro (Stephen Jones e Kim Newman), diz que, ainda que a história tenha sido narrada em um estilo hoje considerado arcaico, com uma sucessão de relatos interconectados, diários, recortes de jornais e documentos, Drácula é provavelmente o primeiro romance moderno de terror. “Em seu conflito entre um mal ancestral e o mundo moderno, ele estabelece o precedente para o desenvolvimento do formato para todo o século 20”.
Colin Wilson é mais um dos críticos que têm dificuldade em entender como um homem com uma vida tão pacata, tão normal, quanto Bram Stoker, pode escrever um livro como Drácula. Wilson lembra que Stoker estava tão imerso na vida moralista vitoriana que, em um artigo, chegou a defender a censura da ficção.
“Quando Drácula surgiu em 1897”, escreveu Wilson, “foi imediatamente reconhecido como o romance sobrenatural mais poderoso já escrito; tem permanecido sendo impresso desde então, e intrigou gerações de psicólogos, que especularam como alguém tão ‘quadrado’ como Bram Stoker poderia criar uma fantasia de estupro tão terrível. Porque obviamente é disso que se trata. Essas mulheres cujo sangue Drácula bebe são símbolos arquetípicos da fêmea indefesa e violada. (...) Parece claro que fogos estranhos ardem debaixo da superfície digna de confiança desse correto cavalheiro vitoriano. É devido a esse toque de paradoxo – alguém poderia dizer, esse cheiro de enxofre – que Drácula permanece um dos romances mais estranhamente perturbadores já escritos”.
(Pocket Books/ 1947).
Stephen King, certamente um especialista em histórias de terror, disse que todas as histórias do gênero podem ser divididas em dois grupos: “(...) aquelas em que o horror resulta de um ato de vontade própria e consciente – uma decisão consciente de fazer o mal – e aquelas nas quais o horror é predestinado, vindo de fora, como um súbito relâmpago”. Como exemplos do primeiro tipo de histórias, King cita Frankenstein, O Médico e o Monstro e O Coração Delator, de Poe; e do segundo tipo, as histórias de H.P. Lovecraft. E, retornando aos vampiros, ele diz que “O Drácula, de Bram Stoker, parece-me um empreendimento notável na medida em que humaniza o conceito de mal exterior; nós compreendemos isso de uma maneira familiar, o que Lovecraft nunca permitiu, e podemos sentir sua textura. É uma história de aventura, mas que não degenera ao nível de Edgar Rice Burroughs ou de Varney, o Vampiro”.
Stephen King continua analisando a obra dizendo que “O efeito alcançado por Stoker deve-se em grande escala ao fato de ter mantido o mal literalmente no exterior em grande parte de sua longa história. O Conde ocupa a cena quase o tempo todo durante os quatro primeiros capítulos, em duelo com Jonathan Harker (...) e depois desaparece pela maior parte das trezentas ou mais páginas restantes. Esse é um dos truques mais notáveis e sedutores da literatura inglesa, uma trompe l’oeil, que em raras ocasiões foi igualada. Stoker cria seu monstro imortal, ameaçador, de forma semelhante à que uma criança cria a sombra de um coelho gigante na parede pelo simples menear dos dedos em frente à luz”.
Capa de Richard Sparks (De Arbeiderspers/ 1968).
O aspecto da sexualidade – tão comum nas histórias de vampiros – também foi destacada por Stephen King em Drácula. “Stoker revitalizou a lenda do vampiro principalmente porque escreveu um romance que realmente palpita de sensualidade”, disse King, lembrando que o Conde jamais ataca Jonathan Harker, que está prometido às irmãs misteriosas que vivem com ele no castelo. “A impressão de Harker sobre esses ataques voluptuosos, embora letais, é de cunho sexual, e é apresentada em seu diário numa bela descrição, para a Inglaterra da virada do século”.
Drácula, por outro lado, só ataca mulheres, e “As reações de Lucy à mordida do Conde são muito parecidas com os sentimentos de Jonathan a respeito das irmãs misteriosas”. Para King, o sucesso da obra se deve, então, muito devido à época em que foi escrita, uma época “(...) que ditava que a maldade do Conde deveria vir de fora, porque muito dessa maldade é originada de uma perversão sexual. (...) Em matéria de sexo, uma sociedade altamente moralista pode encontrar uma válvula de escape psicológico no conceito de um mal exterior”.
Jess Nevins (em Encyclopedia of Fantastic Victoriana) lembra que Drácula não foi um sucesso imediato, sendo eclipsado nas vendas por The Beetle, de Richard Marsh, publicado no mesmo ano. “Mas Drácula”, diz Nevins, “ajudado pelos relatos da mídia sobre o romance, assim como pela potente mistura de simbolismo, sexo e horror”, acabou superando a outra obra e se tornando tão imortal quanto o próprio Conde.
Capa de Robert Adragna (Tempo Star/Ace/ 1979).
Nevins é um dos críticos que não tem tantos elogios à forma como o romance foi composto. Para ele, “Drácula está naquela classe de romances, com O Conde de Monte Cristo e Frankenstein, que são poderosos e agradáveis ainda hoje, ainda que seja falho. Drácula não é arte ou literatura, mas é um trabalho de simbolismo e terror cuja força cresceu, e não diminuiu”, desde que foi escrito. “Stoker não era um escritor particularmente bom”, diz Nevins. “Ele era negligente e apressado, suas sensibilidades vitorianas sobrepujavam suas sensibilidades narrativas, e ele se excedia na atenção ao sentimentalismo comum aos últimos vitorianos. Mas mesmo com suas muitas falhas, Drácula ainda é um trabalho de grande força, e seminal no gênero do terror”.
O crítico diz que o romance tem alguns elementos em comum com os góticos, incluindo a sexualidade, mas essa é bem mais visível e comum em Drácula do que nos romances góticos. Nevins diz que a história de Bram Stoker, quer ele soubesse ou não, é saturada com sexualidade, com uma mistura equivalente de sexo e sangue. “Drácula não foi a primeira história de vampiro a ligar vampirismo com sexualidade – Gautier conseguiu isso 60 anos antes, com Clarimonde, e desde então essa ligação tornou-se uma tradição nas histórias de vampiros – mas Drácula conseguiu isso de forma mais completa do que qualquer história ou romance de vampiros antes dele”.
Capa de Andrew Holmes (Penguin Books/ 1979).
Ao contrário do aspecto levantado por Stephen King, Jess Nevins entende que, após os primeiros quatro capítulos, o elemento de terror diminui sensivelmente no romance. “O ápice do erotismo no romance”, disse Nevins, “vem nos primeiros quatro capítulos, com o surgimento das noivas-vampiras e seu quase ataque a Jonathan Harker. Esses capítulos também são o ponto alto de terror do romance”. Para Nevins, a atmosfera aterrorizante é sustentada com imagens arrepiantes e atrocidades, como quando Drácula dá um bebê para as vampiras no lugar de Harker. “A mudança para Londres muda a atmosfera, e ainda que existam muitos momentos de terror mais adiante no romance, eles não atingem o pico dos primeiros quatro capítulos”.
No entanto, Nevins acaba seguindo quase na mesma direção da análise de Stephen King, entendendo que, apesar de Drácula estar ausente na maior parte do romance, e de ter muito pouco de sua personalidade desenvolvida por Stoker, o fato dele estar fora de ação por tanto tempo na história acaba aumentando o suspense e a sensação de perigo.
Capa de Boris Vallejo (Tor/ 1997).
Os pesquisadores Martha Argel e Humberto Moura Neto ressaltam que, na época em que escreveu e publicou seu romance, Bram Stoker pode contar com uma série de tradições literárias, uma vez que a ficção vampírica já contava com um corpus estabelecido. “Diversos arquétipos vampíricos haviam surgido e se fixado ao longo do século XIX”, dizem os pesquisadores, “com especial destaque para três: o vampiro folclórico, o nobre satânico e a mulher fatal”, dos quais existem exemplos nas obras de Gogol, Polidori e Gautier, entre outros.
Assim, Drácula reúne as três vertentes. O vampiro folclórico surge na referência uma terra distante e misteriosa que Jonathan Harker visita, fazendo pouco caso das lendas locais. As mulheres fatais surgem na forma das três vampiras que moram no castelo de Drácula, e também com a jovem inglesa que é vampirizada. E o grande vilão, que é um conde, com uma aparência que é o protótipo do vilão gótico do século 18.
Além disso, lembram Argel e Moura Neto, Drácula introduziu alguns elementos que seriam bastante repetidos desde então, como o fato do vampiro ter de dormir sobre solo nativo, de não ter reflexo no espelho ou projetar uma sombra, de ser incapaz de cruzar água corrente, e de precisar de um convite para entrar em uma residência. E ainda reforçou a relação do vampiro com os morcegos, que havia sido introduzida em Varney, o Vampiro, afirmando que Drácula podia se transformar em um grande morcego, algo que o cinema exploraria bastante anos depois.
E, ainda, “Stoker impregnou seu livro de religião para, por um lado, investir contra a degradação dos valores morais e religiosos personificada no Drácula, e por outro ‘vestir’ as cenas demasiado eróticas para seus leitores. Dada sua estreita ligação com o teatro, Stoker pode ter tirado da ópera Fausto (1859), de Charles Gounod, a ideia do crucifixo como potente arma antivampiro. Qualquer que seja a origem da ideia, o fato é que foi por influência de Drácula que a religião assumiu o papel de grande inimiga do vampiro”.