O BEM E O MAL NA LITERATURA E NO CINEMA
Algumas ideias sobre a presença das forças do Bem e do Mal na ficção científica, terror e fantasia.
A noção do Bem e do Mal, a luta entre os opostos, é não apenas um elemento constante nas histórias de fc, terror e fantasia, mas uma constante na história da humanidade, desde quando se tem notícia, e provavelmente até mesmo antes disso.
Na fc, geralmente essa noção é tão evidente, em seus aspectos menores, quanto o é, por exemplo, nas histórias de faroeste. Surgem impérios por todos os lados da galáxia, se é que galáxia tem lados. São impérios bons ou ruins, como se vê no filme Guerra nas Estrelas. Em torno de uma força, que não é boa nem ruim e que existe em todo o universo, aglutinam-se pessoas que a utilizam para o Bem ou para o Mal, de acordo com suas inclinações e desejos pessoais.
No cinema de fc essa situação é ainda mais explícita. Grande parte das histórias de fc no cinema nada mais é do que adaptações de faroestes, conhecidos ou não, com a clássica situação de um grupo de pessoas ameaçadas de alguma forma por um poder superior ao seu ou apenas mais organizado, até que a salvação chega na figura de algum herói ou grupo de heróis. Mudam os perigos, as ameaças e os heróis salvadores, mas a moral é a mesma. Em vez de um ditadorzinho que pretende tomar todo o pasto e água da região para seu gado, passando por cima de quem for preciso, é um planeta rico em algum minério ou outra coisa qualquer. Os mais capazes conseguem fazer essa adaptação com categoria, como no filme Outland, Comando Titânio, com Sean Connery como o xerife espacial (o filme que, no Brasil, posteriormente teve seu nome trocado para “Comando Titânico”). Os mais incompetentes, infelizmente também mais numerosos, apenas apresentam caricaturas pálidas de personagens que representam o Bem e o Mal.
Sean Connery, como um xerifão em Outland (The Ladd Company/ Warner Home Video).
No terror e fantasia não é muito diferente. A força existe para todos que saibam reconhecê-la, decodificá-la e manipulá-la. Uns a utilizam para fins escabrosos, egoístas, outros para o Bem. No setor do terror, o Mal pode aparecer com maior evidência, vindo diretamente das profundezas do inferno ou de alguma sucursal do inferno, igualmente repugnante. Surgem demônios e seres maléficos de vários tamanhos e graus de malvadeza que, por sua vez, podem ser combatidos por armas como símbolos especiais, pessoas puras ou virgens imaculadas, intocadas pela corrupção que os enviados do Mal procuram trazer ao planeta.
É comum ver-se nos filmes de terror, principalmente os mais antigos, as mulheres sexualmente ativas e independentes serem atacadas pelo Mal, na forma do demo e seus capangas, ou na forma de um maníaco, um alucinado que foi corrompido pelo Mal. É evidente que a virgindade ou a falta dela, como apresentada nesses filmes, é bastante discutível como representação do Mal ou do Bem, mas para nossa discussão considero apenas o fato estabelecido de que representam armas utilizadas de uma forma ou de outra, e não a moral implícita nessas mensagens.
Uma possível diferença entre o aparecimento do Bem e do Mal nas histórias de fc e nas de terror parece estar no fato de que, nas histórias de terror, qualquer evidência de um poder fora do normal é imediatamente associado ao sobrenatural e, como tudo o que é desconhecido e misterioso, passa a ser associado com o Mal, de uma forma mais ou menos aberta. Na fc, evidentemente, essa aproximação ao Mal deve ser feita de outras maneiras, uma vez que nesse gênero o desconhecido e misterioso antes maravilha o leitor ou espectador do que o aterroriza, ainda que muitas vezes a diferença entre um e outro estado de espírito seja bastante sutil. Como a fc geralmente procura respostas racionais às questões que apresenta, é sempre possível surgir, em última hipótese, um cientista, por mais louco que seja, explicando suas teorias e os acontecimentos que se verificam. No terror, as explicações que surgirem, se surgirem, serão sempre de natureza espiritual, sobrenatural. Estamos falando, é claro, dos gêneros puros, ou filtrados se acharem melhor, e não das conexões entre eles, como em Alien e tantos outros.
A tripulação da nave Nostromo sendo acordada para sua aventura, em Alien, O Oitavo Passageiro (Twentieth Century-Fox Productions/ Brandywine Productions).
É claro que o Mal, em ambos os gêneros, só pode ser definido a partir de uma observação do ponto de vista utilizado na narração. Em Alien, o Mal é um ser alienígena que liquida impiedosamente os seres humanos que encontra pela frente e ainda os utiliza como hospedeiros para futuras crias. Nós estamos ameaçados. Alien seria, talvez, mais orientado para a fc se a narração seguisse o ponto de vista do ser alienígena que, absolutamente de acordo com seus padrões morais e éticos, faz o possível para assegurar a sobrevivência de sua raça, utilizando para isso uma raça que se intromete em seu habitat e pretende obter algumas vantagens com isso. Seria, talvez, uma fc politicamente correta, e o alien não morreria ao final (se bem que as inevitáveis e desnecessárias sequências deram um jeito de manter a raça alienígena viva).
Da mesma forma, os alienígenas de H.P. Lovecraft são demônios incompreensíveis para a humanidade, a ponto de terem elaborado uma arquitetura capaz de causar delírios e um mal estar profundo nos humanos. Em resumo, não é humano, e por isso assusta. A distância entre raças alienígenas tão diversas quanto as descritas e demônios surgidos das profundezas do inferno é bastante sutil. Não são humanos, não podem ser compreendidos e representam um perigo para a nossa existência, seja no aspecto físico, moral, ético, filosófico ou qualquer outro. A diferença entre terror e fc, no que se refere a esse aspecto da manifestação do Bem e do Mal, é uma diferença que reside mais na abordagem do tema e menos na forma.
Essas manifestações do Bem e do Mal na literatura e no cinema de fc e terror, ainda que nem sempre possam ser chamadas de simplistas – e existem inúmeros exemplos de que nem sempre o são – não chegam a alcançar a amplitude de propostas de um tipo diferenciado de literatura ligada aos gêneros, que apresenta o conflito, a dualidade eterna, de forma ainda mais clara, às vezes dando nome aos bois, apresentando os inimigos como entidades vivas no universo, com intenções declaradas, se bem que nem sempre muito claras.
São histórias que escancaram as portas do Bem e do Mal, definindo-os como constantes universais. Apresentá-las no espaço, no universo, dentro dos seres humanos ou em mundos invisíveis para nós, em dimensões paralelas, não muda muito a questão. O Bem e o Mal são realidades interiores que a fc extrapola a todo o universo. Os personagens são colocados frente a frente com suas opções e, portanto, com seu futuro. Nossos deuses e demônios ganham vida, realidade, manifestam-se abertamente em nosso cotidiano, num universo possível de existir em algum lugar.
Em alguns autores, essa forma de abordagem do tema pode ser percebida com maior clareza, atingindo proporções nunca vistas no gênero, e é justamente nesses autores que iremos nos concentrar, escritores como Doris Lessing, Philip K. Dick, J.R.R. Tolkien e Clifford D. Simak.
Vários livros de Philip K. Dick e Doris Lessing, principalmente deles, foram, declarada ou veladamente, baseados nas mais diversas noções religiosas. No caso de Doris Lessing, com a série "Canopus em Argos: Arquivos" – especialmente Shikasta e As Experiências de Sirius, o primeiro e o terceiro livros da série – ela baseou a construção da ambientação em inúmeros livros sagrados e, a julgar pela forma como o tema foi desenvolvido, alguns não tão sagrados, ou mesmo algumas fontes de informação que não esses livros.
Em Philip K. Dick, a noção de religiosidade está presente em quase toda sua obra, mas é particularmente visível e identificável nos livros O Deus da Fúria, Valis e A Invasão Divina, nos quais, apesar da presença de uma série de símbolos e elementos que estão relacionados às religiões cristãs, apresenta-se uma visão da realidade bastante parecida com a do Hinduísmo, além de existir uma aproximação mais ou menos nítida com o Gnosticismo, seita cristã surgida na Alexandria já no primeiro século da era cristã, e que consistia numa espécie de sincretismo entre diversas religiões da época (ainda que alguns pesquisadores, como John Lash, entendam que o Gnosticismo cristão era uma versão posterior e já deturpada de um gnosticismo xamânico muito anterior).
Doris Lessing, em festival literário em Colônia, Alemanha, 2006 (Elke Wetzig/ Wikipedia).
Como já foi dito anteriormente, a proposta de Doris Lessing (1919-2013) em Shikasta e nos livros seguintes da série está diretamente relacionada com o que se costuma chamar de “história alternativa da Terra”, que tem como base a suposição de que o planeta foi visitado por seres extraterrestres em épocas remotas e, mais que isso, que a civilização terrestre foi – e no caso de Shikasta, continua sendo – decisivamente influenciada por essa presença no planeta.
Como ocorre com as especulações levantadas pelos pesquisadores que enveredaram por essa área, como Erich von Däniken e tantos outros, Doris Lessing apresentou a ideia de que a presença de um número enorme de deuses, demônios, gênios, anjos e uma infinidade de seres estranhos e diferentes, assim como uma série de fenômenos relatados em praticamente todos os livros sagrados das religiões do planeta, está relacionada com presenças reais de seres alienígenas, operando em diversas regiões da Terra, em épocas diversas e com objetivos diferentes. A noção de Bem e Mal presente nas religiões surge em função da atuação desses aliens entre nós e das mensagens transmitidas por eles aos povos com que entraram em contato ao procurarem cumprir suas missões. O Bem e o Mal passam a ser vistos de um ângulo concreto, ou seja, não se trata da batalha entre seres ou forças místicas, invisíveis, imaginadas pelos seres humanos em sua tentativa para explicar as forças da natureza que ainda desconhecem, mas sim entre dois impérios estelares reais, totalmente opostos, com objetivos, finalidades, organização e fonte de abastecimento energético completamente antagônicos.
O Bem é representado por Canopus e o Mal por Shammat. Canopus também tem como associado Sírius e, enquanto o primeiro dedica-se a realizar experiências de colonização e aprimoramento do hemisfério norte, o segundo dedica-se ao hemisfério sul. Shikasta, no caso, é a Terra, ou o nome que recebeu após o desastre. Chamava-se Rohanda, que significava “fértil e cheia de vida”. Assim como em nossa história vários impérios procuraram colonizar outros continentes, também Canopus colonizou a Terra, ainda que jamais com a intenção de retirar riquezas do planeta, mas sim com o objetivo de integrá-lo a uma espécie de rede universal de fluxo de energias.
A narração da história é feita principalmente por meio dos relatórios de Johor, um dos enviados de Canopus a Shikasta, e completada com relatórios de outros enviados. Como o tempo de vida dos canopianos parece ser de milhares de anos, aproximando-se muito da imortalidade e, portanto, da ideia de deuses, eles retornam em diferentes épocas da vida no planeta. Seu conhecimento da realidade do planeta é muito maior do que a que possuímos hoje em dia, chegando a reconhecer as diferentes zonas de vida, invisíveis para nós, que existem em torno da Terra; seis, para ser exato. Dessa forma, podem chegar ao planeta utilizando suas naves espaciais, que atravessam diferentes dimensões do espaço, ou podem nascer aqui, como seres humanos normais. Escolhem uma determinada época, uma família específica, que irá dar ao enviado as condições de crescer e desenvolver-se da melhor forma possível para cumprir a missão que lhe foi destinada na Terra. Para nascer no planeta tudo o que têm a fazer é conhecer os caminhos das zonas que cercam a vida em Shikasta, que contêm também os caminhos do retorno ao planeta, do renascimento.
A noção das diferentes zonas de vida em torno do planeta lembra a noção hindu do véu de Maia, que nos impede de ver a realidade tal como ela é, cobrindo nossa visão das formas de vida que nos cercam. Da mesma forma, a ideia de retornar ou renascer no planeta após uma passagem por uma ou várias dessas zonas invisíveis, tem relação com as diferentes doutrinas da reencarnação, desde as hindus até as mais recentes que se desenvolveram no Ocidente.
A zona seis, a que se encontra mais próxima de Shikasta/Terra, é repleta de fantasmas, aparições, seres insatisfeitos. Lessing apresenta-a como possuindo uma natureza que se resume numa emoção poderosa chamada nostalgia, que na verdade é uma saudade de algo que nunca existiu, ou pelo menos não na forma imaginada. Com a exceção da própria Shikasta, é a zona mais conturbada, que provoca emoções mais descontroladas e a mais difícil de se viver. As demais mostram-se mais agradáveis, sendo habitadas por aqueles que conseguiram abandonar, ou ultrapassar, as tensões existentes em Shikasta, e que são de tal natureza que tendem a fazer com que as pessoas retornem sempre a ela. Na zona seis, as pessoas estariam ainda presas às emanações provenientes de Shikasta, incapazes de se libertar e pensando unicamente em retornar para a existência viciada no planeta. A noção está ligada, mais uma vez, a conceitos budistas a respeito de se atingir o ponto de não reencarnação, escapar do ciclo de sucessivos retornos ao planeta. Da mesma forma, a ideia de uma região invisível, repleta de espíritos que ainda se encontram presos às emoções humanas da Terra, está relacionada com a visão moderna dos espíritas. Na Zona Seis existe o Portão Oriental, onde se aglomeram as almas que estão ansiosas para se afastar de Shikasta, sem coragem para voltar e suportar mais um período de vida no planeta, ainda que algumas tenham de fazê-lo para cumprir sua missão, o que pode ser entendido como o carma dos hindus ou a reencarnação dos espíritas.
O problema para os emissários de Canopus e Sírius é que eles, vivendo sob condições terrestres, também podem sucumbir às tentações de Shikasta, deixando-se levar pelas emanações ruins do planeta, e até mesmo esquecerem-se de sua missão, enveredando por caminhos distantes daqueles que deveriam seguir, e a história inicia-se com Johor vindo a Shikasta para procurar outro agente que se perdeu.
A história básica indica que, nos primórdios da vida no planeta, a vida foi exposta longamente à radiação de uma estrela de Antar, e Canopus e Sírius realizaram então suas experiências com uma série de espécimes. É uma situação que está relacionada com algumas noções de caráter científico – ou paracientífico, como entendem alguns –, de que a vida extremamente variada existente na Terra só foi possível devido à emissão de algum tipo de radiação proveniente do espaço cósmico. Assim, os macacos sofrem alterações com resultados interessantes, e é então que o planeta recebe o nome de Rohanda. Os macacos se estabeleceram no hemisfério norte, a cargo de Canopus, e acreditava-se que, em 50 mil anos, eles deveriam alcançar um desenvolvimento adequado, mas Canopus consegue apressar esse desenvolvimento utilizando um plano especialmente traçado, diminuindo para 20 mil anos o período em que atingiriam o estágio desejado. Como parte desse plano, introduzem em Rohanda uma espécie de outro planeta, com o objetivo de interagir com a espécie nativa e provocar um número ainda maior de alterações favoráveis. Os colonos trazidos para cá são os gigantes, que passam a ensinar à outra espécie, ou os homens primitivos. Os gigantes conseguiam viver de 4 a 5 mil anos, enquanto que a espécie local vivia até 500 anos, com tendência a ampliar esse período.
Todos esses preparativos e planos cuidadosamente traçados visam atingir o ponto chamado de União, que representa um fluxo de pensamentos, ideias, informação e crescimento entre os diversos planetas da galáxia, unidos através de Canopus, algo como um fluxo constante de energia percorrendo o cosmo, propiciando cada vez mais desenvolvimento e uma vida mais equilibrada em todos os sentidos.
O lado oposto, Shammat, manifesta-se de forma completamente diferente, obtendo sucesso onde existe o desequilíbrio. Rohanda passa, então, por um período de cerca de 10 mil anos em União, em perfeito equilíbrio, ou caminhando cada vez mais seguramente para esse equilíbrio, quando então ocorre o desastre, que nada mais é do que uma “falha nas estrelas”, ou seja, o fluxo de energia que circulava entre os planetas do sistema Canopus/Sírius é rompido devido a causas naturais, quando um cometa provoca um desalinhamento entre os astros. Aproveitando esse momento, Shammat começa a agir através de seus próprios enviados ao planeta, que passa então a ser chamado de Shikasta, nome que pode ser entendido como “a magoada, a danificada, a ferida”.
Shammat, ao contrário de Canopus, alimenta-se dessa energia às avessas, e não há nada que Canopus possa fazer para salvar Shikasta, a não ser manter seus agentes no planeta e trabalhar com afinco para minimizar os problemas causados pelo desequilíbrio, aguardando o momento em que nova mudança deverá ocorrer nas forças cósmicas, dentro de milhares de anos, quando então Shikasta poderá retornar à União.
Uma noção semelhante já havia sido abordada na fc, em 1954, no livro A Hora da Inteligência (Brain Wave), de Poul Anderson, ainda que sem apresentar a noção de Bem e Mal, ou da atividade de extraterrestres no planeta, mas apenas entendendo que o desenvolvimento da inteligência na Terra jamais atingiu um nível muito elevado, ao contrário do que se pensava até então, porque o planeta encontrava-se escondido numa espécie de cone de sombra, uma zona do espaço onde estava sujeita a determinados campos de força que impediam o desenvolvimento total da inteligência ao não deixar que os neurônios do cérebro se movimentassem de forma mais intensa. A noção de desastre apresentada por Doris Lessing não foge muito a essa perspectiva, mas tem a função de procurar um novo tipo de visão para a presença das noções de Bem e Mal nas sociedades terrestres.
A ideia de um equilíbrio/desequilíbrio nos astros parece buscar sua fonte de inspiração, mais do que em teorias ou especulações da ciência, na astrologia, tida por alguns estudiosos como uma das formas mais antigas de conhecimento, e que trabalha diretamente com as noções de fluxo de energias cósmicas. Aqui, o desequilíbrio joga o planeta para fora de um sistema cósmico. O que ocorreu também em outros planetas do sistema canopiano desenvolve-se de forma particularmente cruel em Shikasta, em proporções ainda maiores, dificultando o acesso dos enviados, que se sentem mal com as vibrações então existentes. A noção também está intimamente ligada ao pensamento contido na Tábua de Esmeraldas, e que foi e ainda é tão utilizada, seja pelos alquimistas seja por outros ramos do ocultismo, magia e esoterismo, ao afirmar que o que está em cima é igual ao que está em baixo, ou seja, o desequilíbrio cósmico causa o desequilíbrio terrestre. É verdade que Shikasta/Terra ainda conta com a ajuda de forças exteriores, superiores, mas está basicamente entregue e dependente de suas forças internas, já abaladas e ainda sob a ação constante de Shammat.
Uma visão da Tábua de Esmeraldas, do século 17 (de Amhitheatrum sapientae aeternae, obra de Heinrich Khunrath, 1606).
Essa reviravolta na história do planeta seria responsável também pela noção da perda de uma situação ideal. Quando ainda se encontrava em estado de União, ocorria a convivência pacífica entre os homens – os nativos do planeta e os gigantes colonos – e os animais, o que nos remete ao conceito do Jardim do Éden, o Paraíso. Era a situação anterior ao desastre que, nos livros religiosos é apresentado como a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Os anjos rebeldes que participaram da Queda seriam os representantes de Shammat.
Jardim das Delícias Terrenas (Hieronymus Bosch, entre 1480 e 1505).
Alguns pensamentos modernos atribuem a perda do Paraíso a uma nova aquisição, a do conhecimento. Os anjos caídos teriam trazido aos homens o conhecimento, com o que perderam a possibilidade de outro tipo de desenvolvimento. Lúcifer é visto por muitos grupos de estudo como “o portador da luz”, ou o que traz o conhecimento, podendo entender-se como aquele que fez com que os seres humanos partissem para uma forma de vida organizada sob outras condições, com outros propósitos e objetivos, transformando a civilização humana numa sucessão de conquistas tecnológicas que chegaram a tal ponto que a própria existência do planeta encontra-se ameaçada.
Doris Lessing apresenta a evolução tecnológica do planeta antes do desastre, quando ainda em União, seguindo um caminho muito distante daquele que trilhou posteriormente. As cidades eram construídas segundo planos determinados, de linhas, círculos e combinações específicas, que valiam igualmente para os outros planetas e que formavam a base para os sistemas de transmissão da União entre Canopus e Rohanda. Não era uma tecnologia voltada para a construção de máquinas, mas sim para a construção de ambientes apropriados para a vida e o fluxo dessas energias. Essa forma de pensar permanece uma constante em muitas religiões e práticas ocultistas e esotéricas, nas quais os sinais representados por linhas, círculos e outros símbolos, traçados com precisão, determinam o tipo de energia em ação em cada momento, em cada espaço, criando um fluxo apropriado para cada tipo de pensamento ou ação desejado, e também faz parte de uma série de estudos relacionados com a procura de linhas energéticas existentes em determinados pontos do planeta, que se tornou bastante comum nos últimos anos, assim como a procura por formas que garantam fluxo de energia, como ocorre com a mania atual dos cristais e das pirâmides.
Assim sendo, depois do desastre e da quebra do fluxo de energia, o enviado Johor começa a tentar fazer com que as pessoas abandonem as cidades, uma vez que essas passaram a vibrar de forma desarmoniosa. Essa vibração desarmoniosa consiste basicamente num fluxo de energia ruim, negativa, que faz com que as pessoas que permanecem na cidade sintam-se doentes. Por outro lado, os que continuam vivendo nelas acabam se acostumando e, como viciados, querem experimentar cada vez mais as emanações que as cidades passam a fornecer.
O período seguinte apresentado nos relatórios de Johor pode ser descrito como uma fase de esquecimento, quando as pessoas começam a perder definitivamente o contato real com a União e, assim, esquecer-se dos ensinamentos que até então haviam recebido e que os levava em direção a um período de crescimento sem proporções na história da civilização. Tudo o que pertencia a esse passado pré-desastre passa a fazer parte das lendas e mitologias dos povos, dá margem ao surgimento de religiões e superstições que vêem os gigantes como deuses, os que lhes haviam trazido dos céus o conhecimento das coisas.
As noções de Bem e Mal começam a se desenvolver entre os povos devido ao esquecimento, apesar desse esquecimento jamais ser total devido às formas encontradas pelos diferentes povos para registrar a história. Aqui, portanto, ao contrário do que algumas interpretações esotéricas das religiões propõem, o Mal não está relacionado ao conhecimento, ou à luz, mas exatamente à perda, à falta de lembrança desse conhecimento e do que ele realmente significava, situação da qual se favorecem os enviados de Shammat. A queda verifica-se de forma inexorável e vertiginosa, com a figura de Canopus e sua presença passando a ser confundida com uma entidade única, específica, como um deus. É Johor quem tenta minimizar o mal que se alastra, encarregando algumas pessoas de percorrerem o mundo e contar a verdade sobre o que aconteceu, tentando manter viva nas pessoas a lembrança de um período melhor e a esperança, diante do sofrimento que toma conta do planeta, de que um dia as coisas irão melhorar.
A Terra/ Shikasta vista como um ponto de passagem de energias cósmicas (FreeImages.com/ David Cowan).
Da forma como é visto em Shikasta, o Bem e o Mal dependem mais de questões técnicas do que de fé, religiosidade, procedimentos mentais, atitudes morais ou seja lá o que for. Os próprios seres superiores, enviados de Canopus e Sírius, sentem a influência dessa disfunção técnica pela qual passa o universo, sentem física e mentalmente. Por outro lado, Shammat não deve se considerar o Mal, uma vez que se nutre desse outro tipo de energia. As atividades de um e outro lado podem ser vistas como atividades puramente técnicas, mesmo quando o que está em jogo é um certo tipo de atividade de pressão psicológica nas massas, uma vez que seu conhecimento de psicologia de massas é, ou tudo indica que seja, muito superior ao que nós conhecemos, atingindo a proporção de verdadeira ciência exata. Apenas o fato de estarmos afastados do fluxo de energia é que nos leva a entender essa necessidade técnica como uma necessidade religiosa, como se a falta da energia – ou o que os canopianos chamam de SOWF, a “substância do sentimento de comunhão” – causasse alterações no metabolismo humano, fazendo com que o cérebro funcione segundo outros padrões. Na verdade, não são poucos os cientistas que entendem que as visões dos santos e místicos, os momentos de êxtase religioso tão citados em livros sagrados em todo o mundo, nada mais são do que manifestações de alterações metabólicas de um tipo especial, talvez do tipo das que podem ser verificadas nos chamados estados alterados de consciência. O estado de crença religiosa, ou a fé, poderia assim ser resumida cientificamente.
A visão apresentada por Doris Lessing para o mundo após a guerra final, à qual sobrevive apenas um por cento da população do planeta, é bastante parecida com aquela apresentada por Poul Anderson em A Hora da Inteligência. O SOWF, que não era suficiente para os bilhões de habitantes do mundo, passa a existir em quantidade suficiente para atender aos sobreviventes que, então, começam a se perguntar o que haviam feito, o que estavam fazendo anteriormente, como se não conseguissem entender como tinham sido capazes de cometer tantas besteiras, especialmente os políticos e governantes, que recebem uma atenção especial da escritora. Na verdade, mais de uma vez em sua obra ela se referiu à política como “uma das mais falsas ideias de nossa época”, um grande engodo.
Nesse ponto, a obra de Doris Lessing aproxima-se mais uma vez da obra de Philip K. Dick, que aborda a questão da presença e ação do Bem e do Mal na Terra, e também do livro Parasitas da Mente, de Colin Wilson. Em PKD é comum a ideia do esquecimento total, o esquecimento da razão de estarmos aqui, no planeta, e de quais sejam nossas funções e objetivos finais e primordiais. Colin Wilson, ainda que apresentando um enredo diferente – uma vez que pressupõe a existência de parasitas, alienígenas, agindo em nossas mentes a partir de um reservatório universal de energia ao qual teríamos acesso caso eles não interferissem no caminho – também trabalha com a noção do despertar; ou seja, as pessoas que conseguem desenvolver plenamente suas capacidades mentais, quando conseguem atingir esse reservatório comum de energia, passam a ver suas vidas passadas como se estivessem dormindo, sonhando, sem conseguir ver plenamente o mundo que os cercava. A diferença é que os alienígenas de Colin Wilson estão literalmente impedindo o acesso à energia, enquanto que os de Doris Lessing apenas se alimentam da energia, incapazes de impedir que um novo fluxo encha o planeta quando os astros voltarem a estar na posição correta. Os aliens representantes do Mal apresentados por PKD também são mais ativos, uma vez que efetivam uma espécie de cerco ao planeta, impedindo a entrada dos seres do Bem.
Essa diferença é visível na parte do livro em que Doris Lessing narra o "Período dos Acauteladores Públicos", que nada mais são do que os enviados de Canopus que, por meio de seus avisos, propiciam o surgimento de uma série de religiões, que são formadas baseando-se em suas vidas ou em suas palavras, e aqui a história lembra o conceito dos avatares. Cristo não é citado literalmente como sendo um enviado, mas pode perfeitamente ser incluído nesse grupo, como tantos outros. Durante toda a história o Bem e o Mal estão muito próximos, ainda que Canopus não entre diretamente em contato ou em choque com Shammat. Os dois estão agindo no planeta, que se encontra literalmente aberto. Nesse sentido, não existe efetivamente um confronto entre o Bem e o Mal, ao contrário do que ocorre nos livros de Philip K. Dick. Parece que sua obra centra-se na ideia básica de que, ao contrário do que é ensinado nas religiões mais conhecidas do planeta – ou em praticamente todas elas – as forças, seres, entidades ou energias representantes do Bem não têm uma atuação representativa no planeta. Sua manifestação estaria restrita a algumas poucas visões a que tiveram acesso algumas pessoas, ao longo da história.
A noção de um planeta sob o domínio do Mal e sob o constante assédio do Bem, na obra de PKD, pode ser observado especialmente nos livros O Deus da Fúria (Deus Irae, 1976), escrito em parceria com Roger Zelazny, Valis (Valis, 1981) e A Invasão Divina (The Divine Invasion, 1981). Uma ideia semelhante já havia surgido no início de sua carreira, em 1957, numa novela pouco conhecida (e ainda menos no Brasil) chamada Marionetas Cósmicas (The Cosmic Puppets, publicada em Portugal pela Europa-América), em que uma ilusão é construída pelas forças do Bem e do Mal como pano de fundo para seu confronto, forças representadas por Ormuzd e Arimã (ou Ahura Mazda e Ahura Mainyu), respectivamente as forças do Bem e do Mal no Zoroastrismo.
A noção parece ter sido desenvolvida com mais propriedade nos três livros anteriormente citados – e com algumas variações que a afastam da cosmogonia zoroastrista e aproximam-na do Gnosticismo. Esse tema indica também uma preocupação constante do autor com a noção de realidade, ou do que é real e o que é imaginário em nosso mundo. A ideia dos ambientes fictícios que permeia toda a obra do autor, mas especialmente esses três livros, também tem relação com o Hinduísmo, no que se refere à noção do véu de Maia que cobre o mundo, impedindo que os mortais percebam a realidade em sua totalidade, fazendo com que pensemos, erroneamente, que aquilo que nós vemos do mundo chamado real é a totalidade das coisas.
Capa da primeira edição (Doubleday. Ilustração de John Cayea).
O livro O Deus da Fúria não foi bem recebido pela crítica, sendo considerado uma colaboração não muito bem sucedida entre PKD e Roger Zelazny. Não foi escrito exatamente como a primeira parte de uma trilogia a ser completada com Valis e A Invasão Divina; não existe uma única história, com uma continuidade (na verdade, costuma-se dizer que a trilogia é formada por Valis, A Invasão Divina e A Transmigração de Timothy Archer, este o livro derradeiro de Philip K. Dick, publicado após sua morte em 1982). No entanto, as concepções desenvolvidas são, basicamente, as mesmas, procurando, de certa forma, decifrar a presença do Bem e do Mal no planeta. E enquanto algumas imagens surrealistas apresentadas no livro podem ser creditadas a Zelazny, a proposta de que o mundo se encontra diretamente sob a administração do Mal é, decididamente, de PKD.
Em O Deus da Fúria, os autores compuseram o cenário apresentando uma Terra que passou por uma guerra devastadora que causou uma série de mutações e permitiu o surgimento de uma nova igreja, uma religião que tem como seu deus o Deus Irae do título, o Deus da Fúria, que é aquele que trouxe a destruição. Para seus seguidores, a morte é uma solução, e não o adversário; eles repudiam a ideologia cristã que entende que o Bem tem um papel decisivo no planeta. A ideia básica é que existe um mal entendido ao longo da história, com as pessoas sendo enganadas uma vez que o Deus bom ao qual a Bíblia se refere era, na verdade, o demônio, e que ele é que estava no controle das coisas. Qualquer tentativa das pessoas em chegar ao verdadeiro Deus Bom é infrutífera, porque a Terra está inacessível, cercada por uma força do Mal. A única forma de comunicação possível com esse Deus é através de seus próprios esforços para chegar até nós, uma vez que apenas ele pode romper a barreira. E, na verdade, é o que ele está tentando fazer constantemente; chegar até nós, e não o contrário.
(Dell Books).
O Mal também tem seu representante humano – assim como Jesus Cristo foi o representante do Bem – na figura de Carl Lufteufel, o criador da “gob”, a “grande bomba sem objetivo”, que causou milhões de mortes, contaminando a atmosfera, mas também vista pelos seres mutantes como o início de sua vida, o ato de sua criação. Lufteufel literalmente os criou ao inventar e disparar a bomba que causou as mutações. O mundo transformou-se num lugar de sonhos, pesadelos, imagens surrealistas, porém mais real do que o mundo anterior, uma vez que o véu de Maia foi levantado e as pessoas finalmente perceberam quem realmente manda no planeta, quem sempre esteve no controle, apesar das religiões dizerem o contrário. Nesse sentido, O Deus da Fúria apresenta uma situação completamente diferente das apresentadas nos outros dois livros de PKD, nos quais a Terra ainda é apresentada da forma como a vemos hoje, ainda que prestes a ser tomada de assalto pelas forças do Bem.
No entanto, a maior marca da presença do Mal na Terra é o “não conhecimento”, o engano, o engodo. Mesmo com a presença desse Mal sendo revelada, o engano é uma constante e mostrado pelos autores por meio de uma série de símbolos, às vezes sutis, outras vezes escancarados. Lufteufel, por exemplo, vive em companhia de uma jovem com problemas mentais que o chama de pai e entende que ele é uma pessoa boa, enquanto tudo em que ele pensa é numa forma de se livrar dela, aborrecendo-se com sua presença. O próprio Lufteufel está confuso, sem saber exatamente quem ou o que ele é. Os únicos que reconhecem sua verdadeira natureza são os ratos mutantes, que formam uma entidade inteligente, como uma mente coletiva. Ao tentarem matá-lo, reconhecendo-o pelo que realmente é, eles se desculpam, uma vez que sabem que ele é o representante do poder que está comandando o mundo. Todo cuidado é pouco.
Nesse mundo transformado que, por vezes, é apresentado como um mundo fantástico semelhante àqueles das 1001 Noites, todas as coisas perderam sua função original. Além dos grupos de pessoas estarem isolados uns dos outros, sem comunicação e, portanto, sem conhecimento do que realmente está ocorrendo no planeta, nada funciona como deveria ser. Um computador subterrâneo, que deveria responder às perguntas das pessoas, não pode mais fazer isso no mundo do “não conhecimento”, e passa a alimentar-se das pessoas que a ele se dirigem, criando extensões móveis, como androides femininas.
Nada é o que se imagina à primeira vista, o que é uma característica da obra de PKD, mesmo quando ele não se refere à presença do Mal na Terra. É assim que, em Blade Runner, existem duas delegacias de polícia – uma falsa, outra verdadeira –, e os animais são apenas réplicas; é assim em Falsa Identidade, no qual é construído um mundo de aparências para o personagem central; ou em A Penúltima Verdade, e Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, Ubik, e muitos outros. O mundo sob a ação das aparências, da mentira, do engano, é uma constante nos livros do autor.
A peregrinação por esse mundo de pesadelo é feita por um homem, um incompleto, que é a denominação que recebem aqueles que perderam seus membros durante a guerra, e que também é um tipo de personagem que aparece diversas vezes nos livros de PKD. Sem pernas, movimenta-se usando um carrinho puxado por uma vaca, e possui braços mecânicos. Sua missão é encontrar Lufteufel e captar sua imagem para reproduzi-la num mural da Igreja que ele está pintando para os Servos da Fúria. Ao longo de sua jornada, encontra os grupos de seres estranhos, inclusive uma lagarta negra gigantesca que deseja matá-lo. Ele consegue acabar com ela, mas é salpicado com sua baba, que por sua vez permite que ele entenda a linguagem de um pássaro, que o leva ao Deus da Fúria. Este aparece em sua forma não humana, uma autêntica visão, como as que os cristãos tinham em outros tempos. Assim como o antigo Deus cultuado fazia algo de bom, o Deus da Fúria realiza algo ruim, fazendo com que, por alguns minutos, o incompleto adquira novamente as suas pernas e braços, para em seguida retirá-las mais uma vez, aumentando sua dor e tristeza.
O Deus reafirma sua presença e domínio sobre o mundo louco dos homens pelo processo de destruição, de retirada de alguma coisa, como sempre fez. E é pela destruição do deus-homem Lufteufel que o Mal inicia sua saída do planeta. O incompleto mata-o sem ter o conhecimento do que está fazendo, de quem ele é na verdade. Depois de matá-lo acreditando que era apenas um caçador, ele percebe que só foi capaz de cometer um assassinato porque foi levado a isso pela ação má do pseudocaçador, que matou seu cachorro. E só pôde fazê-lo porque possuía os braços mecânicos, muito mais fortes que os seus braços naturais seriam. Se o Deus da Fúria tivesse permitido que ele ficasse com os braços, o deus-homem não seria morto, e o Mal não seria expulso. Por outro lado, o Deus da Fúria é o que é, e tinha que agir daquele modo, de certa forma, destruindo a si próprio.
A ideia de que a comunicação com o deus bom só pode ser feita se ele assim o desejar, ou conseguir, penetrando na camada de Mal em torno do planeta, surge mais claramente nas visões experimentadas por um cristão, um dos poucos que restaram no planeta, e que costuma tomar alucinógenos para tentar penetrar na dimensão em que essa comunicação se tornará possível, ou pelo menos facilitada. O conceito de um cristão tomando alucinógenos para obter informação, conhecimento, liga o conceito apresentado por PKD ao Gnosticismo, uma doutrina supostamente cristã, mas que obtinha seu conhecimento de visões; para alguns historiadores, o Gnosticismo foi, na verdade, uma doutrina de natureza xamânica e diretamente ligada à utilização de drogas.
Numa visão, ele percebe Deus na forma de um vaso de cerâmica, que fala com ele e lhe diz que Santa Sofia, a Haggia Sofia, irá retornar à Terra. Haggia Sofia é o conhecimento ou a sabedoria de Deus, que irá renascer. Apesar dos cristãos não conseguirem entender corretamente a questão, achando que o Bem sempre esteve presente e, assim, não precisaria voltar, a situação é bastante clara. Trata-se de uma batalha pelo poder no mundo, e o Mal encontra-se sitiado, ainda que sempre procurando reforçar suas defesas. Nesse sentido, PKD apresenta uma situação muito mais definida do que a de Shikasta, em que já se sabe que o Mal não controla, mas apenas aproveita-se de uma situação que, desde sempre, já se sabe que será contornada com o tempo.
O “não conhecimento” que impera no mundo seria também exemplificado numa frase, igualmente mal interpretada pelos cristãos, a que Cristo diz, na cruz: “Perdoa-lhes Pai, eles não sabem o que fazem”. Ao contrário da suposição corrente de que Cristo estaria libertando o mundo por meio do seu sofrimento, pedindo o perdão para os pecados do mundo, ele estaria, na verdade, resumindo a situação do mundo e das pessoas que nele vivem: elas estão sob o domínio da ilusão, da falsidade e, portanto, não podem saber o que estão fazendo.
Após a morte de Lufteufel e a saída do Mal do planeta, a mudança é visível. Os seres começam a retomar a consciência e conhecimento das coisas, sua forma de agir se modifica, o próprio ar do planeta se torna mais limpo, fica mais fácil respirar, o que não deixa qualquer dúvida a respeito do que ocorreu. A Terra foi libertada.
Seria de se supor, caso fosse uma continuação, que em Valis fosse apresentado um mundo já sem a presença do Mal, e prosseguindo sua vida, agora sob nova direção. Na verdade, trata-se de um aprofundamento do tema, mais uma vez mostrando o mundo sob o domínio do “não conhecimento” e da ilusão. A forma como a noção é apresentada, no entanto, é bem mais complexa. Aqui PKD conseguiu criar, provavelmente, as imagens mais alucinatórias de sua carreira, revivendo uma série de temas que abordou ao longo dos anos, de certa forma sintetizando-os e fazendo com que atingissem uma proporção ainda não experimentada.
Sabe-se que PKD havia renunciado às drogas, publicamente, desde seu livro O Homem Duplo (A Scanner Darkly), de 1977, o que não impediu que utilizasse o ambiente da Califórnia no início da década de 1970 para contar a história de Valis. Grande número de personagens está envolvido com drogas, destruindo suas personalidades de maneira brutal e criando realidades alternativas. O “não conhecimento” preconizado em O Deus da Fúria, aqui atinge proporções dramáticas.
PKD armou uma estratégia complicada e complexa para apresentar seu personagem central no livro, Horselover Fat. Apesar de a narração ser feita na 3ª pessoa, é explicado que assim é feito para que se obtenha um efeito de distanciamento, de objetividade, mas que é o próprio Horselover quem escreve, que por sua vez é um escritor de ficção científica. Na verdade, é um alter ego de PKD, vivendo num mundo criado pelo autor, e por sua vez, como personagem, também vivendo uma fantasia. E além de ser tido como um psicótico e já ter tentado o suicídio, vive em outra realidade, a que a droga cria em sua mente. São mundos dentro de mundos, numa sucessão de véus de Maya, como já falamos anteriormente, que nos impedem de ver a realidade tal como ela é, impede-nos de penetrar nos mistérios do invisível que nos cerca e que faz parte de nosso mundo, definitivamente dominado pelo Mal, pelo “não conhecimento” da realidade absoluta e final.
(Vintage).
No mundo cercado, é Horselover Fat quem recebe o que acredita ser uma mensagem de Deus, a manifestação divina que surge na forma de uma luz cor-de-rosa. Como uma parcela do Bem penetrando no mundo, essa luz transmite a Fat uma série de informações, de conhecimento, que ele não possuía anteriormente e que ele começou a reunir de forma mais ou menos organizada. Ele acreditava que partes de seu cérebro estavam sendo estimuladas, seletivamente, por finos feixes de energia vindos de muito longe. Assim, essas impressões seletivas geravam em seu cérebro a impressão de que estava vendo e ouvindo palavras, figuras, pessoas, páginas impressas, ou seja, estava vendo e ouvindo Deus e sua mensagem, ou o que chamou de Logos. Em sua teoria, ele apenas imaginaria as coisas, que seriam semelhantes a hologramas. As mensagens seriam, então, tão conflitantes com a realidade que ele estava acostumado a encarar, abriam tamanhas perspectivas de se ver o mundo sob outra forma, que ele pensa que toda a teoria que elaborou pode ser apenas uma tentativa para explicar suas alucinações de forma sofisticada, intelectual, uma forma de racionalizar sua loucura.
Capas de O Mistério de Valis, edição portuguesa da coleção Argonauta.
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Fat é mais um de uma série de personagens cometendo loucuras e com sérias dificuldades em entender a vida, o que está acontecendo à sua volta e, ao mesmo tempo em que é mostrado como aquele que caminha em direção à loucura total, ele também é aquele que vê “o que nenhum homem vê”.
A confusão que PKD estabelece na narração é, possivelmente, proposital, refletindo a confusão absoluta em que se encontram as pessoas que vivem no mundo e jamais conseguem compreendê-lo. Se o personagem apenas estivesse louco, a história não teria sentido ou seria apenas um relato das alucinações pessoais. Mas se ele está correto em suas teorias, não poderia estar louco, e alguma coisa de muito estranha está se passando com a base de realidade do mundo. E ainda é possível que ele esteja sendo dirigido para a loucura justamente por estar certo em suas teorias. O confronto com a realidade, com o conhecimento, pode ser capaz de deixar qualquer um alucinado.
Fat continua elaborando teorias a respeito do que está se passando, e os demais personagens participam ativamente da procura pela verdade. Para ele, a realidade está escondida, de modo que nosso mundo é apenas aparente, é apenas a “estrutura óbvia que está sob o domínio de uma estrutura latente invisível”. O que era apenas insinuado na história torna-se cada vez mais claro na medida em que o personagem elabora suas teorias. Sua loucura é, na verdade, a teofania, ou a manifestação de Deus. E se a realidade está escondida e o que vivemos é ilusão, é maia, então não existe outra realidade além das teofanias, a “intromissão de Deus”, que nada mais são do que as tentativas de invadir nosso mundo ou, na pior das hipóteses, comunicar-se com algumas pessoas que nele vivem, para contar a verdadeira história.
A noção apresentada aqui iria se repetir em A Invasão Divina, a de que o tempo parou no ano 70, quando os romanos venceram os hebreus e destruíram completamente o Templo de Herodes. Nessa época, o tempo real foi suspenso e todo o tempo intermediário tornou-se irreal, ilusório, de modo que ainda vivemos no tempo dos romanos. Na batalha final, Deus teria sido derrotado pelo Mal e foi afastado da Terra. Vivemos, então, uma situação irracional. O mundo e seu criador são loucos, irracionais; o universo é irracional, assim como o espírito que o governa. Porém, acima deste, encontra-se o verdadeiro Deus, separado de nós. Ele aventura-se em nosso mundo, iludindo os poderes que o governam, para nos ajudar. Para Fat, ele é o Logos, ou informação viva.
A semelhança com a situação apresentada em Shikasta encontra-se na confusão em que vivem os seres humanos do planeta, a falta de informações, ou melhor, o excesso de informações, o que nesse caso dá na mesma porque implica na falta de conhecimento real que as pessoas possuem sobre o que está acontecendo à sua volta. Os deuses de Shikasta são apresentados ao leitor como extraterrestres desde o início, enquanto o Deus de Valis apenas aos poucos vai se revelando. A possibilidade de que esse deus seja uma forma elevada de vida alienígena é introduzida juntamente com uma comparação com as formas de vida terrestre que se utilizam do mimetismo para enganar seus possíveis predadores. Esse ser superior, esse deus, apresentaria uma forma avançada de mimetismo, capaz de nos iludir, apresentando-se com formas que jamais imaginaríamos, apenas revelando-se quando fosse de seu interesse.
Enquanto Doris Lessing nos apresenta uma situação resolvida – ou seja, sabemos exatamente o que está ocorrendo devido à narração e aos relatórios de Johor –, com PKD isso é impossível. O ponto de vista é o de um ser humano, um habitante do planeta e, portanto, igualmente sofrendo o processo de ser iludido, confundido pela realidade ou irrealidade que o cerca. Não é possível, portanto, apresentar um único ponto de vista como sendo o correto, apenas uma teoria, daí elas sucederem-se de forma alucinante, acumulando-se de tal forma que a confusão se estabelece no próprio texto do autor, na própria impossibilidade em definir se o autor PKD é mesmo Fat.
No jogo do real e imaginário que PKD elaborou ao longo de sua obra, ele jamais conseguiu construir um cenário como esse, em que o leitor deve se precaver contra as informações transmitidas pelo texto a cada parágrafo, desconfiando de tudo e de todos. Em Blade Runner, tínhamos os animais sintéticos ou a delegacia de polícia que se desdobra em duas; em Identidade Perdida, um personagem que vagueia entre uma e outra realidade; em O Homem do Castelo Alto, um personagem que vislumbra a possibilidade de existência de outra realidade. E assim por diante, com personagens e leitores percebendo a existência ou, pelo menos, a possibilidade de existência de diferentes níveis de realidade ou realidades justapostas. Mas aqui, as coisas têm dupla realidade, as pessoas são várias pessoas ao mesmo tempo, a própria essência da realidade abre-se para uma série de possibilidades. E, o que pode representar mal maior do que ocultar ou impedir que a informação a respeito dessas realidades seja conhecida?
Parece que, para PKD, estar preso nesse segmento de realidade, ser obrigado a viver uma pequena parcela da verdade, é uma punição, que só pode ter sido elaborada por um ser maligno. Para fugir a essa condição, então, é necessário enlouquecer, seja lá o sentido que possa ser dado à ideia. Fat somente começa a questionar e procurar soluções porque está enlouquecendo cada vez mais. A revelação divina é então apresentada como sendo, possivelmente, a loucura, a fantasia. A grande dificuldade está no fato de que a loucura traz consigo o descontrole, a incapacidade crescente em lidar com a vida diária, com a realidade aparente. E parece ser, também, uma das formas de defesa do Mal em nosso planeta. Os que têm a visão do que realmente está ocorrendo são considerados loucos e, ou encarcerados – seja literalmente, em hospitais e sanatórios, seja em suas próprias mentes, por meio das drogas controladoras – ou eliminados dessa sociedade por intermédio de formas que variam da liquidação física à liquidação intelectual, o ostracismo. Esse sistema de defesa do Mal que se instalou na Terra é bem mais eficiente do que o de Shammat em Shikasta, uma vez que não depende de fatores externos, mas de sua própria habilidade em “esconder” o universo, e da forma como os próprios humanos tratam aqueles que conseguem ver o que está acontecendo.
Em Valis, Philip K. Dick introduz a noção de que o deus de sua história seja uma forma elevada de vida alienígena.(NASA/JPL-Caltech).
Uma das maneiras que PKD encontrou para esconder a realidade em seu texto pode ser considerada, curiosamente, muito próxima da realidade do que vemos em nossa sociedade, ou seja, ele entope o leitor (e os personagens) de informações, vindas das mais variadas fontes, que dão origem a uma série de teorias que se complementam, se correspondem, mas ao mesmo tempo se contradizem. O excesso de informação torna quase impossível determinar a veracidade das mesmas. Da mesma forma, com esse excesso de informação e mais o provável processo crescente de enlouquecimento das pessoas, as teorias ganham um aspecto cada vez mais alucinante e dúbio, como ocorre quando o personagem afirma que Cristo é uma forma de vida extraterrestre que chegou à Terra há milhares de anos e, como informação viva, passou para os cérebros dos seres humanos, numa simbiose interespécies. A informação pode ser considerada plausível dentro do universo em que a história ocorre, mas também não está inteiramente de acordo com a noção de que o mundo encontra-se sob o controle das forças do Mal, ainda que sitiado pelas forças do Bem, a não ser que se considere como real a informação de que o Bem foi derrotado no ano 70.
As situações em que são colocados o personagem Fat e o narrador Phil (K. Dick) parecem visar, entre outras coisas, essa aglomeração de informações, a criação de uma situação extremamente confusa que reflete o mundo em que a história se desenvolve. Fat acredita que outra pessoa vive dentro dele, e também o narrador da história, que Fat chama de Phil; ou seja, é identificado como sendo o próprio PKD. Confundem-se definitivamente as realidades de narrador e personagem, um sendo alter ego do outro, ou uma extensão. Fat ainda imagina que essa outra pessoa que vive dentro dele está no futuro, mas se expressa no passado sob a forma de Zebra, ou Deus, que seria um nome arcaico dado a essa entidade no passado. Mas o narrador pensa que Fat não encontrou Deus, mas seus “eus” passados e futuros, de forma que o tempo foi abolido para ele. Para compreender o que está ocorrendo seria preciso passar por um processo de anamnésia, ou seja, a “perda da amnésia”. Quando o esquecimento desaparece, a verdadeira memória expande-se para trás e para a frente, para o passado e para o futuro, viajando por universos paralelos. Mas essa é a noção do narrador.
É difícil movimentar-se nesse universo, e a ideia é que seja assim mesmo, mas, seja como for, Fat e Phil estão defintivamente juntos. Fat diz a Phil: “Não posso existir sem você e você não pode existir sem mim. Estamos juntos nisso”. Fat está à procura da realidade em seu universo, que foi construído por Phil, que também está à procura da realidade e que se encontra nos dois universos ao mesmo tempo; em um, como criador; no outro, como personagem.
Valis surge inicialmente como o título de um filme que os personagens assistem, já decorrida boa parte da história. Significa Vast Active Living Intelligence System, ou Grande Sistema Ativo de Inteligência Viva. Ao assistirem ao filme, repleto de mensagens subliminares, ficam assombrados com a quantidade de informações transmitidas e que têm ligação direta com os acontecimentos em torno de Fat, com suas teorias e os assuntos que os amigos discutem constantemente. Valis é um satélite com capacidade de iludir, criar visões ou realidades, e que, no filme, mantém um domínio sobre os EUA, a ponto de conseguir depor um presidente, chamado Fremont e comparado a Nixon. Valis também produz distorções no tempo, o que os personagens relacionam com a visão que Fat teve no ano de 1974 – e que deu início às suas teorias e à procura pelo Salvador – quando teria ocorrido uma manipulação do tempo. O presidente no filme, Ferris F. Fremont, é comparado à besta do Apocalipse citada na Bíblia, uma vez que “F” é a sexta letra do alfabeto e as iniciais resultariam em 666. Pela série de informações subliminares fornecidas pelo filme, eles entendem que os cristão apostólicos, armados com uma tecnologia espantosamente sofisticada, tinham irrompido em nosso mundo através da barreira do espaço-tempo e, com o auxílio de um instrumento com ampla capacidade de processamento de informações, tinham desviado a história da humanidade. Esses cristãos, que teriam recebido os ensinamentos orais de Cristo, eram imortais.
Não podendo se conter, o grupo de amigos estabelece contato com o autor de Valis, Eric Lampton, que percebe que Horselover Fat é, na verdade, Phil (o autor apenas traduziu os nomes: Horselover, “o que gosta de cavalos”, seria Philip em grego. Fat, “gordo”, é a tradução do alemão “dick”). O fato de outro personagem do livro de PKD perceber que ele também está fora do livro, criando aquele universo, parece apenas confirmar que tudo à volta deles está envolto em desconhecimento, em confusão, que o mundo não é o que eles pensam ou imaginam ver. As informações fornecidas por Lampton e sua família apenas servem para ampliar essa sensação de confusão, de estar perdido numa teia de impressões falsas. Eles se dizem os Amigos de Deus, seres muito antigos, na verdade os próprios deuses que nunca morrem, existindo há mais tempo do que a Bíblia. Valis, segundo eles, é simplesmente um artefato que foi ancorado na Terra, e para ele, espaço e tempo não existem. Foi construído para programá-los quando nascem. Esses deuses são, na verdade, extraterrestres vindos da estrela Albemuth, e a atmosfera da Terra é tóxica para sua espécie, de modo que Valis dispara instruções racionais de modo que eles vençam a patologia causada por essa atmosfera. Mas a exposição excessiva a Valis pode causar doenças e até a morte.
O chacra ajna (autor desconhecido, século 18).
No entanto, esses disparos de informação de Valis podem reabrir o terceiro olho, o ajna, o olho do discernimento, de modo que dessa forma é possível perceber que o local em que vivemos é um labirinto, e não um mundo. Ao perceber que tudo é irreal, pode-se sair do labirinto. Os que ficaram fora do labirinto, em outros sistemas solares, comunicaram o que estava acontecendo a Albemuth, que por sua vez construiu Valis para ajudá-los. O espaço e o tempo são condições que definem, que dominam o labirinto, o seu poder. E, se o labirinto puder ser encarado como a criação de PKD, nada mais justo do que entendê-lo dessa forma, uma vez que foi assim que o autor o criou.
A ideia de PKD pode ser estendida ao mundo em que vivemos, o mesmo em que PKD viveu, ou seja, um mundo que teria sido criado por uma imaginação de outra pessoa, em que tudo o que pensamos ser realidade é na verdade composto de falsas impressões, e apenas as informações vivas, transmitidas de fora, e que podem chegar até nós na forma de visões ou alucinações, é que trariam a verdade, o caminho para fora desse labirinto. A Salvação significa, então, “ser conduzido para fora do labirinto do espaço-tempo onde o servo se tornou senhor”. O Salvador é Valis encarnado em ser humano, a mulher conhecida como Sofia. O nome relembra a Haggia Sofia, ou Santa Sofia, à qual PKD se referiu em O Deus da Fúria, e que é o conhecimento. As noções apresentadas são uma derivação, com alterações significativas, das doutrinas do Gnosticismo, que entendia que a manifestação de Deus ocorria através de uma luz mística – mais ou menos como os feixes de informação de Valis – que atravessava os diferentes níveis de realidade do mundo invisível e misturava-se com a matéria do mundo visível, mundo que, por sua vez, era uma espécie de manifestação do Mal, criada pelo Demiurgo, e não por Deus. Trazer a sabedoria para este mundo significa fazer com que as pessoas percebam que ele não é obra da criação divina, mas de um ser inferior.
A Sofia do livro deveria ser imortal e atuar juntamente com Valis para transmitir a informação pelo mundo, agindo subliminarmente. Mas Sofia morre acidentalmente, atingida por um raio laser. Fat, que havia desaparecido depois que Sofia disse a Phil que ele não existia de fato, volta a aparecer como personagem, ainda em busca do Salvador, entendendo que Sofia não poderia ser essa figura ou não teria sido morta. Os dois personagens se dividem: Fat, partindo numa viagem de busca, e Phil, permanecendo nos EUA e recebendo mensagens cifradas por meio de anúncios de televisão.
Não existe uma solução, pois o mundo continua sob a ação do Mal, da ilusão, e os personagens estão tão confusos quanto no início do livro, ainda procurando respostas, apesar de saberem que o mundo em que vivem não é bem o que imaginavam.
Essas conclusões não surgem por acaso. Além de trabalhar em torno de um tema comum a toda sua obra, e de apresentar noções comuns a algumas religiões do planeta, particularmente o Gnosticismo, a história de Valis tem uma relação direta com a própria vida de PKD. Segundo disseram seus amigos e conforme ele mesmo chegou a dizer em algumas entrevistas, ele realmente passou pela experiência, em 1974, de ter sido contatado por um poder benigno que causou uma profunda mudança em seu comportamento, levando-o a passar o restante de sua vida (PKD faleceu em 1982) tentando entender o que havia acontecido e o que significavam as informações ou revelações que recebeu desse poder que, no livro, recebeu o nome de Valis. Não é o caso de afirmar que o evento tenha levado PKD a escrever esse tipo de livros, uma vez que eles já vinham sendo escritos pelo menos uma década antes e, se esses livros mais antigos não traziam um aspecto religioso e/ou místico tão visível, ainda assim eles estavam presentes e, em alguns casos, identificados.
(THEBLITZ1/ Wikipedia).
A questão da irrealidade do mundo em que vivemos, ou pensamos viver, foi atacada pelo autor desde seus primeiros trabalhos, já então em contato com as noções e visões do mundo influenciadas pelo pensamento hindu. Também não se pode considerar apenas o ponto de vista do uso de drogas, uma acusação frequente feita ao escritor, que poderia ter causado ou levado o autor a esse tipo de visão da realidade. Os pontos de contato com obras escritas por autores sabidamente avessos ao uso de drogas – como no caso de Shikasta, de Doris Lessing – já seria um argumento suficiente para rebater esse posicionamento. Os pontos em comum foram encontrados na própria história da humanidade, de suas religiões e doutrinas místicas, nas mais recentes investigações a respeito da interferência de civilizações extraterrestres em nosso planeta. Mas, sobretudo, na firme e muito bem apoiada convicção de que o mundo visível não é a única realidade possível, e que existem outros níveis de existência, normalmente invisíveis a nossos olhos, mas que sob determinadas circunstâncias, em determinadas ocasiões ou sob a influência de revelações externas, podem ser vislumbrados por qualquer pessoa.
É claro, também, que o acontecimento de 1974, seja lá o que tenha sido, introduziu de forma bem mais contundente os elementos religiosos e místicos: não parece ter sido por acaso que a produção literária de PKD seja em quantidade bem maior antes do que depois dessa data – casualmente ou não, o ano da publicação de Identidade Perdida (Flow My Tears, The Policeman Said), uma história sobre um homem perdido num universo criado artificialmente à sua volta, como o universo de Valis – e praticamente toda voltada ao tema.
Em A Invasão Divina, as noções introduzidas em O Deus da Fúria e desenvolvidas com mais profundidade em Valis, chegam ao auge, com uma proposta de solução, o fim da atividade do Mal no planeta. Mas se para algumas pessoas Valis já apresentava um desenvolvimento narrativo complexo, complicado mesmo, aqui as coisas se tornam ainda mais difíceis. A quantidade de citações referentes a passagens de documentos religiosos, de pensamentos filosóficos ou místicos das mais variadas vertentes, realmente dificulta o entendimento do que está se passando. Alguns críticos americanos de PKD entenderam que, ao final de sua vida, ele tinha uma premonição de que iria morrer em breve, o que poderia justificar a forma como o texto foi escrito, quase com pressa; mas não é preciso chegar a tanto (segundo Anthony Peake, em A Vida de Philip K. Dick, o livro foi escrito em duas semanas, e chegou a ter como título Valis Regained, imaginado como uma sequência a Valis).
Capa da edição portuguesa, da coleção Argonauta.
As ideias dão a impressão de estar se acumulando com uma rapidez notável, como se realmente algum artefato externo ao nosso mundo estivesse atulhando a mente do autor com conceitos sem fim, sobrepondo-os de tal forma que se tem a impressão de que nada daquilo que é narrado faz sentido, que jamais o fará, e que terminaremos a leitura sem saber a que ele está se referindo, ainda que isso não aconteça.
Na verdade, nem sempre o que PKD produziu foi bem escrito, e mesmo o mais ardoroso fã do autor – como é o caso aqui – deixará de reconhecer esse fato. Para alguns críticos, a forma de entupir os leitores com informações é apenas uma técnica, com uma finalidade específica, seja a de criar no leitor o mesmo clima, as mesmas sensações experimentadas pelo autor, seja a de confundir para melhor estabelecer a noção de um mundo que vive em constante estado de confusão e mentira, ou simplesmente apresentar uma quantidade inusitada de informações que podem ou não estar em contradição umas com as outras, levando o leitor constantemente de uma verdade a outra, mostrando que o livro é tão irreal quanto o mundo no qual se encontra o leitor, um mundo cujas verdades podem ser tão facilmente destroçadas quanto o são no livro. É difícil definir o que de fato PKD pretendia, ainda mais quando se sabe que alguns de seus livros foram escritos em poucos dias, com um mínimo de cuidado no que diz respeito ao estilo. Seja como for, essa dificuldade apenas amplia a aura de mistério em torno do autor e de suas propostas, e mantém o pensamento básico que formou sua obra: nada é o que parece ser.
Em todo caso, em A Invasão Divina, a presença do Mal no planeta é mais claramente definida. O Demiurgo, que não é citado em Valis, ganha forma e nome, ou nomes. PKD inicia apresentando os personagens Elias e o garoto Emmanuel, o primeiro uma espécie de tutor do rapaz, que sofre de amnésia, ainda que Elias saiba que, em determinado momento, ele recuperará a memória, sabendo então que foi concebido num planeta do sistema CY30-CY30B, que seu pai foi Herb Asher e a mãe Rybys, ela morta num acidente que deixou o pai em estado de suspensão criogênica, na Terra, e que ele próprio cresceu num útero sintético. Tanto Elias quanto Emmanuel sentem que a Terra é uma zona do Mal, ou seja, é a mesma noção à qual estamos nos referindo desde o início deste texto. A relação do jovem Emmanuel com o futuro da Terra começa a transparecer desde cedo. Seu nome significa “Deus está conosco”, mas ele tem um nome que ninguém deveria pronunciar.
Parte das informações transmitidas pelo autor surge por meio de Herb Asher que, apesar de se encontrar em suspensão, imagina que está vivo e de volta ao planeta do sistema CY30, antes de conhecer Rybys, de modo que revive o passado. Mas não é o passado real, porém um passado repleto de interferências do presente, que vão desde a invasão de suas memórias congeladas pela transmissão de uma estação de FM que funciona na proximidade dos Laboratórios Criogênicos S.A., onde ele se encontra, até possíveis mensagens por intermédio de sinais psicotrônicos enviados tanto pela mente de Elias quanto pelo deus Yah que, segundo os nativos do planeta, habitaria uma pequena montanha sobre a qual o domo de Asher teria sido construído. Mas Yah, segundo Rybys, tem origem no hebraico, de halleluyah, ou “louvemos Yah”. Ao mesmo tempo em que trabalha em torno de uma noção constante em sua obra – os diferentes níveis de realidade – PKD usa a situação como um artifício narrativo, introduzindo no passado de Asher informações que ele somente viria a receber mais tarde ou, quem sabe, jamais obteria.
Capa da primeira edição (Timescape Books/ Simon & Schuster. Ilustração de Rowena Morrill).
É por meio da aparição de Elias na reconstituição de Asher que se sabe que Yah é o responsável pela gravidez de Rybys. A doença que a aflige é um estratagema de Yah para permitir que ela entre na Terra, uma vez que as pessoas que emigraram para CY30 estão impedidas de retornar à Terra, a não ser em casos de doença incurável. Asher deveria, simplesmente, fazer-se passar pelo pai da criança que está para nascer. A verdade é que, após a derrota dos judeus para os romanos em Massada, Iavé foi separado do mundo, desfazendo as esperanças dos homens. Ao abandonar a Terra, Deus foi encaminhado para o sistema estelar CY30, enquanto em torno da Terra estabeleceu-se a zona do Mal, capaz de mantê-lo afastado. A missão de Rybys, então, é a de carregar Deus através dessa zona do Mal, e introduzi-lo na Terra, onde ele deverá, então, combater o Adversário. Yah, ou Deus, previu tudo antes mesmo da derrota em Massada, antes da destruição do Templo, e preparou-se para corrigir a situação. Ao contrário do que se imagina no mundo, Deus não entrou na história no século 1, mas sim abandonou a história, uma vez que a missão de Cristo foi um fracasso, o que nos remete ao que fora proposto em O Deus da Fúria.
Emmanuel passa por um processo de aprendizado ou, mais apropriadamente, de recuperação da memória, no qual uma série de eventos e pessoas têm participação ativa, e nada é tão simples como aparenta. Ele vai para uma escola onde conhece uma garotinha, Zina, que lhe diz que ela é “aquela que sabe”, e que vai saber das coisas para ele, até que ele possa se lembrar. É ela quem lhe diz a palavra que deverá funcionar como um estímulo desinibidor: Hayah, de onde deriva o próprio Nome Divino. Ele chega a lembrar-se quem é, por um instante, mas volta a se esquecer. É como ocorria com aqueles enviados de Canopus, em Shikasta, os que nasciam na Terra, mas sucumbiam às energias negativas do planeta e se esqueciam de quem eram e da missão que tinham de cumprir, com a diferença de que, agora, é o próprio Deus que se esqueceu. Além do que, Deus tem de estar em plena posse de suas faculdades, caso contrário poderá ser derrotado mais uma vez, antes mesmo de iniciar o combate com o Adversário que domina o planeta, e que provavelmente se esconde atrás de organizações terrestres como a Igreja Católico-Islâmica, ou o Legado Científico, vistos por Emmanuel como as duas cabeças da Besta.
O jovem Deus é levado a realizar experiências como a transformação hermética, através das quais pode reconhecer melhor o mundo que o rodeia. Utilizando a fórmula de Hermes Trismegisto – “a verdade é ser o que está acima como o que está abaixo, e o que está abaixo como o que está acima, para consumar os milagres da coisa única” – ele compreende que ocupa o universo inteiro, que em seu cérebro, o microcosmo, ou o que está abaixo, ele continha o macrocosmo, ou o que está acima. Mas, ainda assim, continua sem conseguir pronunciar seu nome. A jovem Zina também lhe dá uma placa-computador com a qual pode se comunicar, e que se diz ter sido criada “bem antes da criação”. Nessa placa surgem diversas palavras, inclusive Valis, fazendo a ligação imediata com o livro anterior, mais uma vez sendo apresentado como um satélite artificial que projeta um holograma, que todos tomam por realidade.
(Vintage).
Assim como o Bem utiliza Valis como um artifício para combater o Mal, este também tem suas armas. A Igreja Islâmica-Cristã, tida como um dos braços da Besta, também manipula a realidade e tenta de todas as formas impedir o acesso das pessoas à informação. PKD introduz a noção da Bíblia holográfica, que seria “expressa em camadas a diferentes profundidades, cada camada relativa a uma época”, de modo que sua estrutura formasse um “cosmo tridimensional possível de ser observado de qualquer ângulo e assim lido”. As mensagens extraídas dessa leitura variavam, então, de acordo com a inclinação do eixo de observação, e os conhecimentos mudavam sem cessar. A Igreja proibia a transmutação da Bíblia em hologramas de cores codificadas (cada qual representando um aspecto: o vermelho sempre representava o Pai; o azul, o Filho; dourado, o Espírito Santo; o verde, a nova vida dos eleitos; violeta, as lamentações; marrom, o sofrimento eterno; branco, a cor da luz; e o preto, Os Poderes das Trevas, da morte e do pecado). “Se alguém aprendesse como fazê-lo, poderia ajustar gradualmente o eixo temporal, o eixo da verdadeira profundidade, de modo que camadas sucessivas se sobrepusessem e uma mensagem vertical – uma nova mensagem – poderia ser conhecida. Desse modo, a pessoa entraria em diálogo com a Escritura, que se tornaria viva”. O caso é que, se a Escritura se libertasse da Igreja, tornando-se um organismo consciente que jamais se repetiria, o monopólio desapareceria, a verdade seria conhecida, e o Mal não deseja isso de forma alguma.
Também participa desse jogo do poder e de esconder a realidade o Legado Científico, cujo símbolo é a foice e o martelo, utilizando espionagens sutis, ou nem tanto, e jogadas ardilosas para conquistar os jovens. Por exemplo, a figura de Linda Fox, uma cantora que os colonos – e Herb Asher, especialmente – ouviam nos planetas distantes, surge como mais uma peça no jogo, uma vez que ela deve decidir por um lado ou por outro, portanto, causando forte impacto nos fãs e levando-os junto com ela para o lado escolhido. Só que, como parte do esquema do Mal, ela também não é real, mas algo fabricado. O sistema I.A. – Informação Artificial – planejou tudo, inventando-a, dizendo-lhe o que deveria cantar e como, fazendo as mixagens e arranjos das músicas. O IA, também chamado de Burrão, interpretava as necessidades emocionais dos colonos, encontrando a fórmula para satisfazê-las, de tal forma que, quando essas necessidades mudavam, Linda Fox também mudava.
Nesse mundo de ilusões, a própria Igreja é afetada, ainda que funcione como uma extensão do Mal, também conhecido como Belial. A Igreja obtém do computador IA a informação sobre as pessoas que passaram pela imigração trazendo um monstro no ventre de Rybys, e acreditam que se trata do Adversário que está chegando à Terra para a sétima e última batalha com Deus. A maneira do Mal confundir as pessoas é fazê-las acreditar que é outra coisa, é espalhar a desinformação, e nem mesmo seu computador pode escapar dessa situação.
A noção que Emmanuel tem da vida na Terra é muito parecida, quase igual, àquela apresentada por Doris Lessing na série Canopus em Argos. Para ele, todos na Terra, ou o Reino Inferior, são prisioneiros, e “a maior tragédia é que não sabem disso; pensam que são livres porque nunca tiveram liberdade e não entendem o que é ela”. Como ocorre com a Igreja, não conhecem a quem servem, uma vez que o Mal tem essa capacidade de fazer com que não apenas a aparência das coisas seja deturpada, mas o próprio entendimento das pessoas. É a noção cristã tradicional do demônio como aquele que oferece recompensas como forma de atrair, chamar para as delícias do mundo material, para que a verdadeira visão do universo seja toldada.
Capa da primeira publicação inglesa (Corgi Books).
A ideia de servir ao Mal vem do fato de que esse Mal está, de alguma forma, alimentado-se dos humanos da Terra, sugando suas energias negativas, ao mesmo tempo em que fornece todas as condições para que os próprios humanos renovem, constantemente, o suprimento dessa energia. A ideia do Mal agindo na Terra não teria muito sentido para as pessoas se não pudesse ser entendido dessa forma. O Mal apenas pelo mal, pelo poder, por um capricho ou um sentimento que seria mais apropriado ou característico de um ser humano ? Trata-se, na verdade, de alimentação, de sobrevivência em detrimento de outros seres vivos. Como no livro já citado de Colin Wilson, Parasitas da Mente, o Mal se alimenta ao mesmo tempo em que impede que os humanos tenham o conhecimento real do que está acontecendo, simplesmente porque conhecer a verdade da situação significaria, no mínimo, uma resistência muito maior à retirada de energia, uma tentativa mais decisiva no sentido de tentar impedir esse fluxo na direção do Mal, ou da entidade parasita.
A situação com PKD parece ser mais terrível: com Colin Wilson, o Mal se interpõe entre os humanos e a fonte de energia, alimentando-se livremente, e fazendo com que as mentes humanas adormeçam, numa forma de hipnose ou ilusão individual; com Doris Lessing, o Mal simplesmente aproveita-se do que sobra, numa espécie de rapina, e fomenta as ações que levam ao Mal; mas aqui ele estabelece uma nova verdade, constrói um mundo inteiro ilusório, fornece uma falsa impressão de liberdade, faz com que esqueçam o que já foram e o que poderiam ser e, ainda por cima, diz aos humanos que estão lutando contra o Adversário. Esse é, na verdade, o grande adversário, de certa forma, completamente enlouquecido, uma vez que sua atuação é autofágica. A guerra entre Bem e Mal é pela própria sobrevivência do universo, uma vez que a vitória de Belial significa a não-existência, inclusive a dele próprio, já que também foi criado por Deus.
Zina, que tem a função de ajudar Emmanuel a recuperar sua memória, também tem planos para impedir que o mundo seja destruído por Deus, ainda que deseje que seja salvo da maldição sob a qual se encontra. PKD estabelece entre os dois personagens um complicado e nem sempre muito claro jogo, uma espécie de aposta, por meio da qual Zina pretende esclarecer melhor a situação do mundo e a função de Deus, e a dela mesma, nesse mundo. Por intermédio de um estratagema, ela o leva a ver o mundo não como um mundo mau, mas repleto de coisas e pessoas boas, que devem ser preservadas. Consegue, assim, fazer com que Emmanuel suspenda o grande e terrível dia, numa referência clara ao apocalipse citado na Bíblia, ou o final dos tempos de que tanto se fala nos meios místicos e esotéricos. Zina também tem capacidade para criar ilusões, e cria um mundo imaginário em torno de Herb Asher, como parte do complicado plano para fazer com que Emmanuel veja a verdade e recupere suas memórias. O próprio Elias chega a temer que ela mesma seja o Adversário, uma vez que possue essa capacidade de iludir e já que nada no mundo de ilusões pode ser tido como absolutamente certo. Mas o Adversário, Belial, encontra-se preso numa jaula de um zoológico, disfarçado como um exemplo de vida extraterrestre.
Quando esse confronto entre os dois chega a uma solução, Zina esclarece a Deus quem ela é na verdade. Ela é a Torá, e ele não pode fazer nada ao universo sem consultá-la, nem contra sua opinião, uma vez que ele mesmo assim decidiu quando a criou, no início. Mas ela também é mais do que isso, uma vez que usa vários véus: é Diana, a rainha das fadas; é Pallas Atena, o espírito da guerra justa; é Hagia Sophia, a Sabedoria Sagrada, é a Torá, a fórmula e o diagrama do universo; é Malkuth, da Cabala, o último sefiroth, o décimo sefiroth, da Árvore da Vida. Na Cabala, os sefiroth são as forças motrizes do universo e levam o homem a agir. A Árvore da Vida mostra as relações entre eles, desde o divino até o homem, indicando o caminho da manifestação divina, assim como o caminho inverso, ou seja, como o homem pode atingir a divindade. O último sefiroth, Malkuth, representa a Terra, a matéria e o corpo físico, mas também é a união dos demais sefiroth e pode ser visto como a totalidade do reino de Deus.
A Árvore da Vida cabalística, com os nomes dos sefiroth em hebraico (baseado em ilustração de The Bahir: An ancient Kabbalistic, texto atribuído ao Rabbi Nehuniah ben HaKana, século primeiro, 1979. Samuel Weiser, New York).
Zina lhe diz que era parte dele e estavam juntos novamente, e tudo o que Deus deveria fazer era dizer o nome dela, já que “denominar é saber”. E ela é Sekhina, a presença imanente que nunca deixou o mundo, ou a presença divina no mundo, o lado feminino de Deus, e encontra-se em exílio, imersa na matéria densa. Por isso se diz que uma parte de Deus está separada de Deus. Com a união dos dois, cumpre-se o objetivo da Cabala, que é o de reestabelecer a integridade de Deus.
Segundo a apresentação da situação por PKD, quando aconteceu a queda primordial, a Divindade se dividiu numa parte transcendente separada do mundo, chamada “en sof”, e outra, imanente, que permaneceu com o mundo decaído. Doris Lessing introduziu uma noção semelhante em Shikasta, ao referir-se ao “sowf” – que certamente recebeu esse nome não por acaso – apresentada como a “substância do sentimento de comunhão”, ou o ar rico e saudável com o qual Canopus alimentava Shikasta. O que fazia os homens diferentes dos outros animais era justamente o conhecimento do sowf. Quando os seres humanos passam a compartilhar o sowf, eles como que acordam, ganham consciência, percebendo o que tinham feito de errado, como pensavam e viam a vida de forma absolutamente errônea. Mais uma vez, é aquela visão das pessoas como se estivessem dormindo, até que entram em contato com as forças básicas do universo, com o conhecimento que lhes traz a visão da realidade por trás dos véus da ilusão.
A batalha final ocorre após Belial ter sido libertado de sua jaula no zoológico, e espalha-se pelo mundo; está em toda parte, propiciando a morte do espírito nas pessoas. Emmanuel e Zina unem-se numa “sizígia macrocósmica”, abandonando seus corpos físicos, de modo que seu corpo será o mundo e, sua mente, a mente do mundo, como havia sido previsto no início. Deus retornou à unidade e infiltra-se no mundo para derrotar o Adversário pela última vez. Quando este é destruído, de certa forma recupera sua forma original, e seus restos são vistos como algo luminoso que se tivesse quebrado. Ele volta a ter a aparência de antes da queda, a estrela matutina, a mais brilhante dos céus. Os humanos percebem que todos podem vir a ser como ele era uma vez; que, em sua destruição, Belial recuperou parte de sua beleza original. A possibilidade de salvação está aberta a todos os seres humanos.
Assim, PKD finalizou sua história sobre o cerco do Mal ao planeta Terra. As cenas finais de A Invasão Divina são bastante confusas, especialmente para quem se perdeu em meio a tantas referências a documentos religiosos como a Torá e a Bíblia, mas reflete perfeitamente o pensamento do autor no que se refere à confusão estabelecida no mundo.
Uma diferença que talvez se possa estabelecer entre essa aproximação ao tema e a proposta de Doris Lessing, é que o representante do Bem de PKD está tão confuso quanto os demais seres viventes, o que impossibilitaria que a história – ou as histórias, levando-se em conta os dois livros precedentes – fosse elaborada de outra forma. Os representantes do Bem de Doris Lessing – mesmo que, às vezes, sofram com a perda de memória e desviem-se de suas missões originais – têm uma visão muito mais clara do que está ocorrendo no universo e, em especial, na Terra. Eles conseguem analisar a situação do planeta e a sua própria com tamanha lucidez que conseguem elaborar relatórios complexos. Assim como Malkuth, ou Sekhina, encontra-se na Terra, eles também mantêm seus enviados aqui, igualmente “imersos na matéria”, mas os que permanecem de fora, Canopus, têm pleno conhecimento da situação: sabem quando começou o problema, quando vai terminar e o que deve ser feito até lá. A confusão, a dor e a perda são quase que exclusivamente dos humanos.
PKD ou Doris Lessing não inauguraram esse tipo de aproximação religiosa a temas da ficção científica. No entanto, a visão gnóstico-cabalística da atuação do Mal na Terra, ou da forma como atuaria o Bem, poderia causar arrepios num escritor como C.S. Lewis, que sempre preferiu uma aproximação mais pura ao Cristianismo, como pode ser visto na trilogia composta por Além do Planeta Silencioso (Out of the Silent Planet, 1938), Perelandra (Perelandra, 1943) e Uma Força Medonha (That Hideous Strenght, 1945).
A ideia é basicamente a mesma, mas CSL apresentou o que muitos críticos chamaram de uma visão religiosa e moralista da Terra, também dominada por um espírito, ou deus, que perdeu o sentido real das coisas e mantém o planeta sem comunicação com os espíritos que presidem os demais planetas. A Terra é vista como um planeta decaído, mas o autor não propôs que as forças do Bem estariam tentando abrir uma brecha nas defesas do planeta. O planeta silencioso do título é justamente a Terra, uma vez que ela não se comunica com os demais, fato que o personagem central, Ransom, fica sabendo ao chegar a Marte e encontrar seres espirituais que, a princípio, ele vê como verdadeiros monstros, mas que acaba por comparar a anjos. Ao entrar em contato com a forma de viver e pensar desses “anjos”, ele começa a colocar em dúvida toda a organização da sociedade terrestre, com sua imensa carga de violência e horrores. Marte, também chamado Malacandra pelos locais, é governado ou dirigido espiritualmente por um Oyarsa, um ser que se movimenta mais rápido que a luz, e que possue enviados chamados eldila, praticamente invisíveis e muito próximos do conceito cristão dos anjos.
A Terra, ou Thulcandra, não possui um Oyarsa. Ainda que sempre reste a possibilidade de se interpretar os Oyarsa e os demais seres como alienígenas extremamente desenvolvidos, não resta qualquer dúvida sobre o caráter de alegoria religiosa da obra. Maleldil e o Maléfico são apresentados como duas entidades superiores que se encontram em luta, ou pelo menos que estiveram em luta durante muito tempo. Dizem a Ransom que o Oyarsa da Terra tornou-se corrupto, muitos anos antes da vida surgir no planeta, e ele quis conspurcar outros mundos, sendo impedido por meio de grandes batalhas. Maleldil deu instruções aos demais para que o fizessem “recuar até ao firmamento de onde tinha vindo, fazendo-o prisioneiro no seu próprio mundo” e, em Thulcandra, Maleldil e o Maléfico travaram lutas terríveis.
Vê-se, portanto, que aqui não se trata de tentar penetrar num planeta dominado pelo Mal, mas de impedi-lo de sair e espalhar-se pelos demais planetas. Tanto na visão de Doris Lessing quanto na de PKD, a Terra não era vista como o Mal em si, ou os seres humanos que a habitam não são apresentados como representantes do Mal, mas como seres ameaçados pela perda do contato com o universo, com a energia, sowf, ou qualquer nome que se queira dar.
Ao contrário da maior parte das histórias de fc da época, com CSL a ciência é apresentada definitivamente como um mal. Na verdade, faz parte da alegoria, definida como uma das armas do Maléfico para desequilibrar a vida na Terra e tirar das pessoas o conhecimento real das coisas. Ainda que se aproxime das noções desenvolvidas pela fc principalmente a partir dos anos 1960, quando o papel da ciência no desenvolvimento da sociedade foi, de certa forma, desmitificado, a visão moralista afasta CSL dos escritores dos anos 1960. A ideia mais apavorante que parece surgir da trilogia de Lewis é a de que os oyarsa, ou os deuses, não se importam com o que os seres da Terra possam estar sofrendo nas mãos do Maléfico, como se a vinda de Cristo tivesse sido o suficiente para nos colocar nos eixos. Dali para a frente, ou fazemos o que está certo ou nos ferramos no dia do juízo final.
(Scribner)
Essa simplicidade na resolução das questões religiosas e místicas dos seres humanos é simplesmente inaceitável em autores como PKD, Lessing ou Simak que, mesmo quando vêem os malefícios que a ciência pode causar, não aceitam uma postura tão restrita. A obra desses autores é profundamente marcada pelas mais variadas teorias científicas, assim como por diversas e diferentes manifestações religiosas e místicas, o que resultou numa visão menos unidimensional. A impressão que a narrativa de CSL transmite é quase a de que os terrestres seriam culpados pela queda do oyarsa do planeta, de certa forma também sendo responsabilizados por seus atos. Mas é uma ideia que poderia muito bem ser vista de forma oposta, com Maleldil e os demais Oyarsa sendo considerados tão maléficos quanto o Maléfico, ao prenderem-no em nosso meio.
Talvez essas noções estejam relacionadas com o conceito de merecimento do Paraíso, ou o contato com o divino, noção que está ausente nos livros dos demais autores. Tanto PKD quanto Doris Lessing não se referem a essa necessidade do merecimento da salvação, mas apresentam o problema como algo praticamente externo às nossas vontades. Quando os terrestres sucumbem ao Mal, é porque isso é inevitável diante das circunstâncias. O Mal se instalou no planeta, cercou-o, impede a entrada do Bem, apesar das inúmeras e frequentes tentativas, e faz o que bem entende nesse ambiente que controla; com maior rigor na visão de PKD, e com menor na de DL, mas, ainda assim, controla.
Capa da primeira edição (Ilustração de Harold Jones).
Tudo isso está de acordo com o que os críticos e estudiosos da obra de CSL afirmam a respeito da constante apologia cristã radical que ele apresenta, não apenas nos livros de fc, mas em livros de fantasia para crianças, pelos quais é mais conhecido. A diferença maior talvez resida nesse fato, uma vez que PKD e DL preferem discutir questões em vez de apresentar soluções fechadas, definitivas, para questões envolvendo religiosidade.
No livro seguinte, Perelandra, mais uma vez Ransom está envolvido na ação, dessa vez em Vênus, ou Perelandra, como os seres nativos o chamam. Se a alegoria/apologia religiosa era visível no livro anterior, aqui é ainda mais clara. Ransom encontra uma jovem verde que é apresentada como uma espécie de Eva desse mundo, vivendo sem qualquer sentimento de culpa e sem quaisquer necessidades, como se Vênus fosse uma reedição do paraíso terrestre citado na Bíblia. Essa Eva foi proibida por Maleldil de se estabelecer em terra, de modo que vive em ilhas flutuantes, também claramente reeditando a Eva terrestre, que não podia comer de determinado fruto. E, em torno dessa proibição original é que irá se desenvolver a luta entre o Bem e o Mal. Como o Maléfico convenceu Eva a comer o fruto na Terra, estabelecendo assim seu próprio reino, agora ele tenta conquistar Vênus convencendo-a a habitar a terra firme. O Mal chega ao planeta personificado ou encarnado em Weston, o mesmo cientista que causou enormes problemas na aventura anterior, em Marte. Algo se apossou dele e inicia longos diálogos com a mulher, tentando-a com uma forma de vida como a que existe na Terra, procurando despertar seu interesse e ensinando-a a respeito das coisas e recompensas materiais que irá obter se decidir-se a romper a proibição de Maleldil.
Ransom acompanha esses diálogos, tentando intervir e minimizar o Mal, mas percebe que a noção da luta, do combate entre o Bem e o Mal, pode não ser simplesmente uma metáfora, mas algo real, de modo que toma a decisão de lutar fisicamente com o que ele chama de “não homem”, que está encarnado no corpo do cientista, entendendo que, se o corpo morrer, o Mal não terá onde se apoiar e perderá a batalha.
Não são poucos os críticos que entendem que CSL leva sua metáfora longe demais, especialmente na comparação inequívoca com a ciência. Não foi por acaso que ele elaborou uma caricatura considerada grotesca de H.G. Wells, no terceiro livro da série, Uma Força Medonha. Mas trata-se, basicamente, e mais uma vez, de uma visão unidimensional da ciência. A obsessão furiosa de Weston, já mostrada no primeiro livro, não é propriamente a de um cientista, mas a de um louco disposto a destruir toda uma raça, desde que isso favoreça a raça humana e permita que ela ocupe novos mundos. Aqui, o cientista e, portanto, a ciência, é visto como o ponto de entrada do Mal, o caminho através do qual ele se insinua no mundo.
Os autores modernos de fc, especialmente a partir dos anos 1960, separaram mais as noções da ciência e seus objetivos primordiais, do uso político da ciência e tecnologia, evitando essa visão unidimensional. O próprio H.G. Wells, atacado tão furiosamente por CSL como o arauto de uma nova época científica, soube muito bem separar as coisas, o que pode ser facilmente percebido por quem tenha lido, por exemplo, O Homem Invisível, para citar apenas um de seus livros. Com relação à raça humana, CSL continua mantendo uma postura dualista, assim como sua visão religiosa, com Weston representando os interesses ruins e Ransom os bons, ciência e espiritualidade como possibilidades absolutamente opostas, sem considerar os meios termos e as demais implicações da complexa estrutura psicológica dos seres humanos e da estrutura social terrestre.
Seria possível, talvez, até mesmo ver um ponto positivo na postura de CSL no que diz respeito ao contato da civilização terrestre com outras civilizações alienígenas, no sentido do que poderia ocorrer de ruim em outro planeta e outra civilização quando fosse colocada em contato direto com essa forma de utilizar a ciência e o poder para fins políticos e/ou militares. É um tema que foi bastante explorado pela fc nos anos 1960, quando as chamadas ciências humanas começaram a ser mais utilizadas como fonte de inspiração para as histórias, inclusive em alguns clássicos do gênero. Na verdade, alguns estudiosos da obra de CSL consideram que ele é bastante considerado por muitos fãs e alguns críticos de fc – a ponto do livro Além do Planeta Silencioso surgir em várias listagens dos melhores de todos os tempos – principalmente com o renascimento do interesse por sua obra surgido nos anos 1960, devido aos ataques dirigidos ao governo com relação à indiferença manifestada pelos problemas ecológicos do planeta, que surgem com mais evidência no livro Uma Força Medonha. Mas para grande parte dos críticos, essa postura ecológica é muito pouco para ressaltar a obra do autor – pelo menos nesse nível tão elevado – sempre bastante radical e reacionária, contrária a qualquer tipo de modernismo e, portanto, avessa à fc. Peter Nicholls, organizador da excelente The Science Fiction Encyclopedia, apresenta um exemplo típico dessa postura numa frase de CSL, quando ele falava a respeito da poesia medieval e afirmou que “... então veio a Renascença, e arruinou tudo”.
Com relação à visão religiosa, outro grande problema em suas concepções parece residir no fato de colocar os seres humanos, em qualquer planeta que estejam, como o rebanho dos oyarsa e de Maleldil, sem qualquer possibilidade de escolha. Sustenta essa posição apresentando a situação com absoluta naturalidade, ou seja, as pessoas não se revoltam por pertencer a Maleldil, porque sem a influência do Maléfico elas não sentem a necessidade de se revoltar. São felizes, e as coisas são o que são. Não há qualquer discussão em torno desse ponto, e a dúvida só surge quando o Mal se insinua em suas mentes, propondo as questões, propondo o debate e, portanto, a rebeldia. O conhecimento é visto como o Mal, seguindo a visão mais estreita, radical e reacionária possível dos ensinamentos da Bíblia. Tanto Doris Lessing quanto PKD conseguiram obter um efeito muito mais abrangente e uma estrutura mais aberta sem abrir mão da escolha dos indivíduos, o que, afinal de contas, é uma característica marcante da personalidade humana.
(Macmillan)
Torna-se difícil para um leitor moderno de fc aceitar a posição dos humanos apresentados como membros de um rebanho, aceitando a vida com tudo o que ela pode trazer de bem e mal sem qualquer tipo de consideração intelectual. CSL não abre brechas para o Bem e o Mal, apresentando-os como absolutos, sem meio termo. Ou se está de um lado ou de outro, e nem sequer se vê a possibilidade do Mal ser destruído por ele mesmo, como ocorre em Shikasta, por exemplo, quando Shammat tem suas forças diminuídas por estar durante tanto tempo se alimentando das energias negativas do planeta, ainda que seja justamente essa energia que o sustenta; ou como ocorre em PKD, quando o Mal pode destruir a si mesmo se conseguir vencer o Bem definitivamente. O próprio Deus de PKD pode se esquecer de quem é e do que deve fazer, sem por isso transformar-se no Maléfico.