OUTROS MUNDOS
Mundos paralelos ou mundos alternativos? Aparentemente, eles são a mesma coisa. Só que não exatamente. Acho que se poderia dizer que todo mundo alternativo é um mundo paralelo, mas nem todo mundo paralelo é um mundo alternativo. Também podemos utilizar as expressões “universos paralelos” e “universos alternativos”, mas nesse caso não muda nada.
A proximidade dos termos pode complicar a classificação para algumas pessoas, mas eles são tão legitimamente separados que a The Science Fiction Encyclopedia apresenta dois verbetes distintos para falar sobre alternate worlds e parallel worlds.
(FreeImages.com/ Chris H.).
Nessa enciclopédia, Brian Stableford diz que “um mundo paralelo é outro universo situado ‘ao lado’ do nosso”, de tal forma que estaria numa quarta dimensão espacial, “da mesma forma que dois universos bidimensionais podem estar situados juntos, como páginas em um livro tridimensional”. Ele continua explicando que esses mundos paralelos frequentemente são apresentados como “outras dimensões” e que, ainda que, nesse sentido, seja possível que universos inteiros estejam colocados lado a lado, o interesse das histórias geralmente é mais limitado, com o foco em Terras paralelas. A relação entre os dois temas irmãos é explicado por Stableford ao dizer que o conceito de mundo paralelo “forma uma estrutura funcional para a noção dos mundos alternativos históricos”.
Assim, fica fácil entender um mundo alternativo como “uma imagem da Terra como ela poderia ser”, segundo Stableford, a partir de certas mudanças hipotéticas na história.
E as histórias de mundos paralelos e alternativos tanto podem ter seus enredos fechados em seus próprios mundos como podem propiciar interações entre esses mundos e o nosso.
(Capa: Charles Schneeman)
O sensacional escritor Brian Aldiss – também historiador e crítico de ficção científica – lembra (em The Visual Encyclopedia of Science Fiction, no verbete “Future and Alternative Histories”) que os últimos mil anos estão repletos do que se pode chamar de momentos decisivos (turning points), que podem ser utilizados nas histórias de ficção científica no que, às vezes, é chamado de “Jonbar Hinge”. O termo é proveniente do livro The Legion of Time, de Jack Williamson (originalmente publicado como seriado na revista Astounding Science Fiction, em 1938; depois, como volume único, em 1952). Diz respeito à ação do personagem John Barr, que pode escolher entre dois caminhos; um deles levará à formação de uma sociedade utópica chamada Jonbar; o outro levará à formação de um estado tirânico. Assim, o termo passou a significar um evento ou momento decisivo na história que pode alterar todos os eventos futuros.
Isso vale para as histórias de mundos alternativos, mas também para as histórias de viagens no tempo; Aldiss cita o livro A Luz e as Trevas (Lest Darkness Fall, 1941), de Lyon Sprague De Camp, um de seus favoritos, “ainda que não seja exatamente história alternativa”.
(Capa: Richard Powers. Ballantine Books, 1953)
Aldiss escrevia sobre o assunto em 1976/1977, e dizia que as histórias de mundos alternativos estavam crescendo na preferência dos leitores, talvez devido aos três mais brilhantes exemplos de obras: E Tudo o Tempo Levou (Bring the Jubilee, 1953), de Ward Moore; O Homem do Castelo Alto (The Man in the High Castle, 1962), de Philip K. Dick; e A Transatlantic Tunnel, Hurrah! (1972; depois republicado com o título Tunnel Through the Deeps), de Harry Harrison. Aldiss entendia que esse subgênero poderia ganhar ainda mais popularidade devido à sua capacidade de entreter e fazer os leitores refletirem. Por utilizar a ironia mais do que a capacidade de maravilhar o leitor, para Aldiss é uma forma de ficção científica mais sofisticada do que as histórias interplanetárias. “Excepcionalmente”, ele escreveu, “é um ramo da ficção científica que evoluiu de uma disciplina que não a ciência: a história. O que pode ou não refletir a forma pela qual o Ocidente, em anos recentes, se tornou progressivamente desiludido com os frutos da ciência. Ou pode refletir a forma como nos tornamos progressivamente conscientes da casualidade em nossas vidas”. O próprio Brian Aldiss foi responsável por um dos mais notáveis exercícios literários envolvendo a possibilidade de universos paralelos, no sensacional Relatório Sobre a Probabilidade A.
Robert Silverberg, outro grande nome do gênero, escreveu que se a ficção científica é uma literatura de possibilidades infinitas, o subgênero da ficção que lida com linhas de tempo alternativas deve ser uma de suas divisões com as possibilidades mais infinitas. Claro que não existe mais ou menos infinito, mas Silverberg forçou a linguagem de propósito. E essas possibilidades infinitas nos levam às explicações do astrofísico e escritor John Gribbin sobre os universos paralelos, em seu livro Tempo: O Profundo Mistério do Universo (Timewarps, 1979. Francisco Alves Editora, 1981).
(FreeImages.com/ Gabriella Fabbri)
Gribbin entende que a primeira história de universo alternativo plenamente elaborada é Legion of Time, de Jack Williamson, citada anteriormente. “A história em si é horrível”, ele escreve, “dessas que seguem seu curso meio ‘a torto e a direito’, mas o conceito de ‘o que aconteceria se’, por trás dela, foi suficientemente marcante para que Harry Harrison (...) se referisse a ela numa palestra de 1975”.
(Capa:Richard Angerman. Fantasy Press, 1952).
Harrison disse que “Se todas as decisões que tomamos afetam o futuro, então deve haver um número infinito de futuros. No conceito de rio do tempo o futuro é imutável. Se, de manhã a caminho do trabalho, resolvemos tomar o ônibus ao invés de ir de metrô e morremos num acidente de ônibus, então aquela morte estava predestinada. Mas se o tempo possui ramificações inúmeras, então há dois futuros – um em que morremos no acidente e outro em que continuamos vivendo, tendo viajado de metro”.
Gribbin lembra que, na verdade, no livro de Williamson faltou o “salto conceitual”, ou seja, “a perspectiva de que todas as possibilidades infinitas abertas para o progresso futuro do mundo podem ser igualmente reais, produzindo uma série infinita de universos em tudo tão reais quanto o ‘nosso’ Universo e existentes, de certa forma, ‘paralelamente’ ao nosso”.
Gwyneth Paltrow, em De Caso com o Acaso (Intermedia Films/ Mirage Enterprises/ Miramax/ Paramount Pictures).
O exemplo citado por Harrison pode ser visto, quase literalmente, no filme De Caso com o Acaso (Sliding Doors, 1998), dirigido por Peter Howitt, com Gwyneth Paltrow. Ela interpreta a relações públicas de uma empresa de Londres. Um dia, após ter sido demitida da empresa na qual detestava trabalhar, ela vai para casa e tenta pegar o metrô, perdendo o trem por alguns segundos. A partir desse ponto o filme se divide, mostrando dois universos paralelos; aquele em que ela não pega o metrô, e outra linha de ação na qual ela consegue entrar no trem. A vida dela segue de duas formas totalmente diferentes a partir de um simples momento.
(Pan Européenne)
Outro filme que apresenta um conceito semelhante é Sr. Ninguém (Mr. Nobody, 2009), uma produção multinacional de Canadá, Bélgica, França, Alemanha, Estados Unidos e Inglaterra, com direção de Jaco Van Dormael. O filme intrigante tem como ponto de partida as memórias de Nemo Nobody (Jared Leto), um homem com 118 anos de idade, o homem mais velho do planeta e o último dos mortais, uma vez que, no ano de 2092, a humanidade já conseguiu desenvolver uma técnica de rejuvenescimento. Ele está internado num local indefinido, sendo constantemente televisado para todo o planeta, já que é uma grande atração como o último humano a morrer.
Ao tentar recuperar as memórias de sua existência, a história nos leva para três possíveis e diferentes linhas de vida, com trechos de sua vida sendo narrados aos nove anos de idade, aos 15 e aos 34, com vidas diferentes a partir de uma escolha que ele pode ou não ter feito quando tinha nove anos.
O diretor disse que se trata de uma abordagem sobre as quase infinitas, ou infinitas, possibilidades que cada pessoa tem em sua vida, com cada momento de decisão abrindo caminho para toda uma nova trajetória, não necessariamente melhor ou pior. E, nesse aspecto, trata-se de um filme bem melhor e mais interessante do que De Caso Com o Acaso. O diretor Jaco Van Dormael confirmou sua capacidade criativa com o belíssimo e louquíssimo O Novíssimo Testamento (Le Tout Nouveau Testament, 2015).
Assim, podemos muito bem entender o pensamento de Robert Silverberg acerca das infinitas possibilidades das histórias sobre universos paralelos e alternativos, uma vez que cada escolha de capa pessoa seria capaz de criar uma nova linha de ação, uma nova linha de tempo, ou seja, um novo universo.
(FreeImages.com/ Sebastian Swande)
Brian Stableford disse que “a noção de outros mundos paralelos ao nosso próprio – e, ocasionalmente conectados a ele para possibilitar certos tipos de relacionamento – é uma das ideias especulativas mais antigas da literatura e das lendas. Aparece de muitas formas – a ‘terra das fadas’ e ‘o plano astral’ dos espiritualistas sendo dois dos principais arquétipos – refletindo os dois padrões míticos relacionados à noção. Em um padrão, um humano comum é transportado a uma terra de fantasia onde ele passa por aventuras e pode encontrar o amor e realização além do que encontraria na Terra. No segundo padrão, uma comunicação ou uma visita de outro mundo afeta a vida de um homem desse mundo, muitas vezes machucando-o ou o destruindo”.
Segundo Stableford, as duas formas sobreviveram e tiveram sucesso na moderna ficção de fantasia, modelando subgêneros. E ambas propagaram-se na ficção científica de tal forma que “esses dois padrões foram primeiramente responsáveis por estabelecer um continuum entre a ficção científica e a fantasia mitológica que torna impossível estabelecer uma definição clara das duas formas”.
Para Stableford, o primeiro padrão, basicamente utilizado nas histórias de fadas, historicamente é estendido para a ficção científica por meio dos trabalhos de A. Merritt, Edgar Rice Burroughs e outros escritores que escreviam para as revistas chamadas pulp, antes do surgimento da Amazing Stories. Ele cita como exemplo o livro Blind Spot, de Austin Hall e Homer Eon Flint, originalmente publicado em 1921, em seis partes, na revista Argosy, e posteriormente em livro (1951). Para Stableford, a história apresenta uma tentativa mais ousada de manipular ideias científicas do que as apresentadas tanto por Merritt quanto por Edgar Rice Burroughs. A história refere-se à existência de um portal interdimensional ligando dois mundos, e a dificuldade citada por Stableford em situar no campo da ficção científica e da fantasia fica bem clara quando lemos as críticas e resenhas sobre o livro, uns apresentando-o como um dos clássicos do início da ficção científica, outros como uma história de fantasia.
(Capa: Earle Bergey)
O pesquisador também cita os primeiros trabalhos de Jack Williamson como tendo sido bastante influenciados pela obra de Merritt; e o escritor Henry Kuttner também escreveu vários livros seguindo esse padrão, em particular The Dark World (publicado inicialmente em 1946, na revista Startling Stories; em 1954, na revista Fantastic Story; em livro, em 1965). Na história, o personagem central atravessa um portal para um mundo paralelo, dividindo seu corpo com uma versão alternativa dele mesmo; nesse mundo paralelo, dominado pela magia, desenvolve-se um conflito entre os seguidores dele e um grupo antagonista.
(Capa:Frank R. Paul)
Os escritores Edmond Hamilton e Murray Leinster são apontados por Brian Stableford entre os primeiros a utilizar a ideia dos mundos paralelos mais objetivamente voltada para a ficção científica, em particular nas histórias Locked Worlds (1929), de Hamilton, e The Fifth-Dimensional Catapult (1931). No entanto, diz Stableford, a ideia básica pseudocientífica já estava presente nas histórias Un Autre Monde (1895), de J.H. Rosny aîné – pseudônimo do escritor belga Joseph Henri Honoré Boex, mais conhecido por seu A Guerra do Fogo (La Guerre du Feu, 1909) – e nos trabalhos de H. G. Wells, The Remarkable Case of Davidson’s Eyes (1895) e The Plattner Story (1896); na primeira história, o personagem ganha a habilidade de ver outra dimensão; na segunda, um homem é levado a um mundo da quarta dimensão e descobre que ele é habitado pelos mortos da Terra, que renascem ali em corpos semelhantes aos de girinos.
Quanto ao segundo padrão, de criaturas de um mundo paralelo que invadem o nosso mundo, Stableford entende que ele é básico para as histórias de fantasmas e de terror em geral, citando como exemplos as obras de H.P. Lovecraft e de Frank Belknap Long.
Quando entramos no reino das histórias de fantasia, as definições de mundos alternativos podem ficar um pouco mais confusas. Em The Encyclopedia of Fantasy, John Clute diz que qualquer “mundo secundário” “outro mundo” ou “país das maravilhas” pode ser visto como um mundo alternativo. O termo “mundo secundário” foi criado por J.R.R. Tolkien em seu ensaio Sobre Histórias de Fadas (On Fairy Tales, 1939. Conrad Editora) para definir um tipo específico de “outro mundo”, um espaço ou mundo autônomo que não está ligado à realidade mundana, que é impossível segundo o senso comum, e que tem coerência interna.
John Clute diz que a diferença entre as definições para a fantasia e para a ficção científica são simples, mas cruciais. Ele segue a definição que já apresentamos, de Brian Stableford, de um mundo alternativo como uma imagem da Terra como ela “poderia ser” a partir de certas alterações na história. John Clute diz que, na fantasia, um mundo alternativo é uma descrição de nosso mundo como poderia ter sido.
Ele diz que se uma obra apresenta a alteração de algum evento específico, a partir do qual se desenvolve uma nova versão da história – como a vitória da armada espanhola em 1588, a vitória do sul na guerra civil norte-americana, ou a vitória de Hitler – então estamos lidando com uma história de ficção científica. Mas se a obra apresenta uma versão diferente da história da Terra “sem discutir a diferença” – as diferenças favoritas, segundo Clute, incluem a presença da magia, ou deuses que participam ativamente, ou a Atlântida, ou mundos perdidos, entre outras – então a história pode ser considerada fantasia.
John Clute, assim como outros críticos e historiadores do gênero, entram em detalhes que complicam ainda mais a questão de relacionar uma história em um ou outro critério. Ele cita, por exemplo, as histórias de realidades alternativas. “Há uma diferença sutil”, ele explica, “entre as histórias de mundos alternativos e de realidades alternativas. O conto de mundo alternativo descreve um mundo que está relacionado ao nosso, mas diferente por uma ou outra razão. O conto de realidade alternativa entende que existem outras realidades que podem ou não serem acessíveis ou interagir com a nossa (ainda que, geralmente, essas realidades são acessíveis e interagem, porque geralmente esse é o centro do conto), mas que não têm dependência histórica e podem ser totalmente diferentes da nossa”.
(FreeImages.com/ Barun Patro)
Em The Visual Encyclopedia of Science Fiction, os mundos paralelos são comentados no verbete “Lost and Parallel Worlds”, ou seja, mais ou menos unindo o tema com o dos mundos perdidos que, segundo a definição de John Clute apresentada acima, estariam incluídos nas histórias de fantasia. Não existe um consenso e, muitas vezes, os critérios são subjetivos.
Escrevendo na abertura desse verbete, o escritor de ficção científica Robert Sheckley disse que tanto os mundos perdidos quanto os mundos paralelos podem ser considerados variações do tema dos mundos desconhecidos ou alienígenas. Em outras palavras, seria uma visão ainda mais ampla do tema. “Um dos grandes temas da ficção científica está envolvido aqui”, ele diz, que é sair da realidade diária e realizar uma jornada a algum lugar estranho, exótico, excitante, “onde há trabalho importante a ser feito e decisões vitais a serem tomadas”.
Sheckley entende que existem similaridades e diferenças entre os mundos perdidos e paralelos, mas também entende que “elas não são fáceis de serem determinadas”. Ainda assim, tenta estabelecer algumas regras práticas: a maioria dos mundos paralelos também são mundos perdidos; eles são perdidos até que alguém os encontre, ou até que eles nos encontrem; alguns mundos perdidos também são mundos paralelos; mundos perdidos geralmente são únicos, enquanto mundos paralelos oferecem uma escolha entre muitos; mundos perdidos geralmente são difíceis de serem alcançados, o que envolve uma viagem espacial ou seu equivalente, enquanto um mundo paralelo tende a ser um local ao qual você pode chegar simplesmente caminhando através de um espelho ou seu equivalente.
Com muito bom humor, Sheckley dá um exemplo da divisão entre os dois temas: “Com a finalidade de orientação, se você se encontrar numa paisagem vaporosa do Devoniano e perceber que um dragão está prestes a devorar uma linda garota, indubitavelmente você está num mundo perdido. Seu problema é salvar a garota e, então, viver feliz para sempre com ela. Mas se, por outro lado, você se encontrar no Piccadilly Circus, em Londres, e perceber que uma linda garota está andando com um dragão numa guia de plástico, descendo a Regent Street, e que ninguém se espanta, a não ser você, então você está num mundo paralelo e seus problemas são completamente diferentes”.
Acho que já deu para perceber que o tema é complexo. Nas matérias a seguir, vamos apresentar vários tipos de histórias de mundos paralelos e alternativos, na literatura, no cinema e na televisão, sem tentar seguir à risca as definições fornecidas pelos escritores, críticos e historiadores do gênero. Assim, uma ou outra história apresentada pode fugir de uma ou outra definição. Não importa muito, uma vez que os estudos a respeito do tema servem mais para pensarmos a respeito do assunto do que para categorizarmos de forma rígida um gênero (e subgênero) que, por natureza, é bastante aberto a interpretações e diferentes pontos de vista.
Também não vou comentar o subgênero relativamente recente que ficou conhecido como steampunk, cujas histórias certamente se enquadram na definição de mundos alternativos, mas que, de certa forma, já se estabeleceu como um subgênero à parte.