Apesar de ser um dos escritores mais importantes da ficção científica, Samuel R. Delany não teve muitos trabalhos publicados no Brasil, o que torna esse volume duplo com Estrela Imperial e Babel-17 ainda mais importante.
Os dois livros de Samuel R. Delany foram publicados originalmente em 1966 e, desde o início, o autor queria que fossem publicados juntos, em um único volume, o que só foi acontecer em uma reedição de 2001, e que agora a Morro Branco Editora reproduz.
Estrela Imperial já publicado no Brasil em 1971, com o título Metagaláxia, e agora ganha uma tradução melhor do que a anterior. Com pouco mais de 100 páginas, a história de Delany tem uma estrutura narrativa circular, narrando uma aventura que, aparentemente, não tem início ou fim, ainda que o narrador afirme que terá, eventualmente. O narrador é Joia, um tritoviano cristalizado que junta-se ao jovem Cometa Jo, que por sua vez recebe a incumbência de levar uma mensagem para a Estrela Imperial. Ele não sabe qual é a mensagem, jamais saiu de Rhys, o satélite onde mora, não faz a menor ideia do que seja ou onde fica a Estrela Imperial, mas ainda assim embarca em uma viagem que mudará sua vida e, presumivelmente, o universo.
A missão envolve a libertação dos LLL, seres com imensa capacidade de realização, mas que são mantidos como escravos. Segundo uma das personagens, eles “São a vergonha e a tragédia do universo multiplexo. Ninguém pode ser livre até eles estarem livres. Enquanto forem comprados e vendidos, qualquer homem poderá ser comprado e vendido... se o preço for alto o bastante”.
Ao mesmo tempo em que lida como questões como a escravidão e o preconceito, Delany também constrói o chamado “romance de formação”, um bildungsroman, uma história na qual o personagem Cometa Jo passa por uma transformação, aprendendo e crescendo moral e eticamente.
O livro é fantástico e delicioso, além de muitas vezes engraçado. Os personagens estão na história desde sempre, ao que parece, e o universo é o próprio livro e, ao mesmo tempo, a linguagem. Um dos personagens, com quem Cometa Jo entra em contato, é Moli, um “multiplexo onipresente linguístico”, que anteriormente era o escritor Muels Aronlyde, conhecido como o escritor mais antigo, e cujo nome é um anagrama de Samuel R. Delany, o autor real do livro e, portanto, o escritor mais antigo, o próprio centro do império de onde partem as realidades e ao qual Cometa Jo deve chegar.
O fato de Joia ter consciência múltipla e poder ver as coisas de diferentes pontos de vista é um artifício hábil para a narrativa, uma vez que seu ponto de vista pode ser até mesmo o do escritor Delany.
É um livro espetacular.
Em Babel-17, Delany apresenta uma história na qual a linguagem é a principal personagem. O livro ganhou o Prêmio Nebula de Melhor Romance em 1967 – juntamente com Flores Para Algernon (Flowers for Algernon. Editora Aleph), de Daniel Keyes.
A ação situa-se em um futuro em que a humanidade está às voltas com o Invasor, um inimigo alienígena que nunca é detalhado, enfrentando inúmeras dificuldades para manter seus domínios. A personagem Rydra Wong, a mais famosa poetisa conhecida, reverenciada tanto pelos humanos quanto pelo Invasor, recebe a missão de tentar entender o que é e desvendar os segredos de Babel-17, aparentemente uma linguagem introduzida pelo Invasor e que ameaça ainda mais os humanos, levando-os a ações violentas contra seus próprios domínios. Rydra também está de alguma forma relacionada com Muels Aronlyde, o personagem do livro anterior.
Rydra Wong é bem mais do que uma poetisa, conhecendo o submundo da sociedade terrestre muito bem, especialista em artes marciais e capitã capaz de governar uma nave espacial como ninguém. Para realizar sua missão, ela reúne sua tripulação, pois precisa visitar alguns locais bem distantes, e durante a viagem continua estudando e aprofundando-se cada vez mais em Babel-17, modificando seu ponto de vista e forma de observar e entender os eventos.
A linguagem Babel-17 não utiliza o pronome “eu” ou qualquer forma de referir-se à própria pessoa, o que altera significativamente a maneira de se relacionar com o mundo e com as demais pessoas. A ideia é baseada na hipótese Sapir-Whorf, desenvolvida pelos linguistas Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, também conhecida como relativismo linguístico. Segundo esse conceito, a estrutura de uma linguagem afeta a visão de mundo ou a cognição das pessoas que a falam; assim, as percepções das pessoas são relativas à linguagem que falam.
Além do enredo principal do livro, Delany apresenta um recorte bem interessante da sociedade, representado principalmente pelos funcionários da Alfândega e do Transporte, em atividades que tem muito ou tudo a ver com a situação de guerra em que a humanidade se encontra. As alterações corporais às quais as pessoas se submetem são impressionantes, às vezes feitas apenas a título de embelezamento, segundo os padrões da época, outras vezes como forma de melhorar ou ampliar o desempenho em seu trabalho. E, para ajudar a dirigir as naves espaciais, às vezes utilizam o Setor de Desincorporação, mais especificamente o Necrotério, já que qualquer suicida que “desincorporar através dos canais normais do Necrotério pode ser chamado de volta”. E ainda usam pessoas “desincorporadas”, como fantasmas, já que alguns trabalhos nas naves não podem ser realizados por pessoas vivas.
O livro é uma beleza, ainda que nem sempre muito fácil de acompanhar, especialmente quando Rydra Wong se aprofunda no entendimento de Babel-17. Mas sempre vale a pena ler Samuel R. Delany.
OUTRAS LINGUAGENS
A linguagem também é protagonista importante em outras histórias de ficção científica, como no conto de Ted Chiang, de 1998, que originou o filme A Chegada (Arrival, 2016. Ver mais na matéria Sem Más Intenções).
Antes disso, a linguista e escritora Suzette Haden Elgin escreveu Native Tongue (1984), livro no qual apresenta uma sociedade futura distópica em que as mulheres perderam seus direitos e, como forma de resistência, criam uma nova linguagem. A linguagem, chamada Láadan, foi criada por Elgin em 1982 como forma de testar a hipótese Sapir-Whorf, procurando determinar se uma linguagem voltada para expressar o ponto de vista das mulheres poderia moldar uma cultura. O livro originou outros dois: The Judas Rose (1987) e Earthsong (1993).
O livro Embassytown (2011), de China Miéville, também lida com o tema, entre outros, ao apresentar alienígenas cuja linguagem poucas pessoas conseguem falar, uma vez que exige que duas palavras sejam pronunciadas ao mesmo tempo, e é uma linguagem que não permite mentiras ou especulações, refletindo tanto o estado mental quanto a percepção da realidade de quem a fala.
A linguagem também tem uma participação no excelente Nevasca (Snow Crash, 1992), de Neal Stephenson. E tem um papel ainda mais central e importante em As Linguagens de Pao (The Languages of Pao, 1958), de Jack Vance.