Uma das variações mais interessantes de histórias envolvendo demônios, ou o próprio Capetão, é a que imagina que a presença do Diabo na Terra não é algo recente, e até pode ter relação com os primórdios das sociedades humanas, e até mesmo com a presença de alienígenas entre nós.
Um exemplo excelente desse tipo de história é a série Quatermass and the Pit, produção inglesa da BBC apresentada entre dezembro de 1958 e janeiro de 1959. Criada por Nigel Kneale, é a terceira história envolvendo o professor Bernard Quatermass – as duas primeiras foram The Quatermass Experiment (1953) e Quatermass II (1955). Elas seriam adaptadas para o cinema como Terror Que Mata (The Quatermass Experiment, 1955), Usina de Monstros (Quatermass II, 1957) e Uma Sepultura na Eternidade (Quatermass and the Pit, 1967). O personagem ainda reapareceu em 1979, na minissérie Quatermass (também chamada Quatermass IV e Quatermass Conclusion, esta última uma versão condensada para ser apresentada como um filme para TV, no exterior), e no filme para TV, The Quatermass Experiment (2005).
A versão para TV de Quatermass and the Pit (BBC).
A história Quatermass and the Pit também foi publicada como livro em 1960. Eu cheguei a assistir aos outros dois filmes e vi a versão condensada de The Quatermass Conclusion, por sinal muito ruim, e não tenho dúvida de que Quatermass and the Pit é de longe o melhor momento da série.
O escritor Stephen Laws, comentando o livro em Horror: 100 Best Books, apresenta a história como um dos trabalhos mais influentes do terror moderno, com efeitos em filmes como Força Sinistra (Lifeforce, 1985), dirigido por Tobe Hooper, e Príncipe das Sombras (Prince of Darkness, 1987), dirigido por John Carpenter, além de livros como Os Estranhos (The Tommyknockers, 1987), de Stephen King.
Em Força Sinistra a influência é palpável nas cenas finais de destruição e alucinação nas ruas de Londres, que remetem ao filme de 1967. Em Príncipe das Sombras, John Carpenter assina o roteiro com o pseudônimo Martin Quatermass (o filme é comentado na matéria O Anticristo).
(Arrow Books).
Stephen Laws diz que o texto, ainda hoje, é um exemplo para quem quer escrever “terror sobrenatural”, um texto fantástico, mas “escrito de forma tão realista que é extraordinariamente convincente”; os eventos são construídos com cuidado, cada um sustentando o próximo, cada pista levando a outra. “O aspecto mais original da história de Kneale”, diz Laws, “é o fato de que os marcianos da Antiguidade semelhantes a duendes são, na verdade, os duendes e demônios da memória racial de nosso passado supersticioso e mítico”.
Os cientistas descobrem os corpos dos marcianos, em Uma Sepultura na Eternidade (Hammer Films).
A tradução para o português funcionou; “pit” significa, no caso, “poço”; a palavra também é usada em inglês para sepultura de animais. Mas os marcianos e sua nave são descobertos num poço que está sendo escavado no metrô de Londres. Stephen Laws lembra que o significado do título da história é percebido integralmente apenas gradualmente; o poço refere-se não apenas ao local em que o objeto foi encontrado, mas mais especificamente ao próprio “Poço do Inferno”. Segundo Laws, “Os próprios personagens têm dificuldade em aceitar a situação. Mas enquanto os tradicionais eventos assustadores são introduzidos nessa situação moderna (1959) e os personagens são forçados, pelo peso das evidências, a aceitar as terríveis implicações, o leitor/ espectador também aceita. A empatia do leitor/ espectador com esses personagens realísticos é forte, resultando na ‘suspensão da descrença’”. E essa “suspensão da descrença” é um dos elementos essenciais na construção de uma história fantástica, seja de terror, ficção científica ou fantasia; caso contrário o leitor ou espectador de um filme não consegue “entrar” na história.
Andrew Keir, como o professor Quatermass, examinando um corpo marciano, em Uma Sepultura na Eternidade.
Para Stephen Laws, hoje seria fácil desprezar a história como um produto de seu tempo, datado. Porém, ele diz, numa tendência de terror cada vez mais visceral a partir dos anos 1980, examinar a escrita de Kneale e a forma pela qual ele obtém os efeitos desejados fornece direções valiosas de como tecer uma história de forma a aterrorizar as pessoas.
A materialização da imagem de um marciano/demônio, em Uma Sepultura na Eternidade.
E ainda, Laws escreve que “Se Quatermass Experiment tratava do ‘homem transformado em monstro’, e Quatermass II do ‘monstro transformado em homem’, Quatermass and the Pit pode ser resumido como ‘o homem era o monstro o tempo todo’. E o último tema é o que surge em algumas das melhores ficções de terror escritas hoje. Como Quatermass descobre, os piores demônios são aqueles que se escondem nos recessos mais profundos da mente humana”.
Alguns críticos entendem que a série original é melhor do que o filme de 1967.
Outra história que envolve a presença ancestral do demônio entre nós é The Deathbird (1974), de Harlan Ellison, vencedora dos prêmios Hugo e Locus, publicada em 1975 na coletânea Deathbird Stories.
Infelizmente, Harlan Ellison é um autor pouquíssimo conhecido e ainda menos publicado em língua portuguesa.
Ele apresenta Deus como Ialdabaoth, ou “The Mad One” (O Louco), que assumiu o controle da Terra milhões de anos atrás. Ialdabaoth é conhecido na filosofia grega como Demiurgo e é figura central do Gnosticismo, como o criador do mundo material.
O escritor e ator David Loftus, conhecedor da obra de Harlan Ellison, disse que a premissa da história é: “e se a Serpente fosse o verdadeiro herói do Livro do Gênese, mas foi ferrado na hora de contar a história porque Deus assumiu o departamento de relações públicas?” Assim, ele continua explicando que o mundo está chegando ao fim e Nathan Stack, a última encarnação de uma longa linhagem de humanos que retrocede ao marido de Lilith, é revivido pela Serpente para realizar uma jornada à montanha onde Deus vive, para confrontá-lo e fazê-lo pagar por todas as mentiras e sofrimentos terrestres.
A Serpente atende pelo nome de Dira, e é o último membro da raça que originalmente criou a Terra, deixado aqui para contar aos humanos a verdade sobre o deus deles. Só que as coisas não saíram do jeito que pretendiam, e a história acabou registrando Dira como sendo o demônio.
O escritor Craig Spector disse (em Horror: 100 Best Books) que a história de Harlan Ellison foi a primeira, em sua vida, a sugerir, claro como o dia, que talvez tenhamos sido trapaceados e ludibriados o tempo todo, que Deus estava mentindo e a Serpente foi uma vítima de publicidade enganosa.
E realça que a história assume posturas radicais tanto na estrutura narrativa quanto no conceito. Mais ou menos o mesmo que fala David Loftus, para quem a história é uma obra de arte pós-moderna, “uma colagem de estilos e ideias que podem ou não se combinar, mas de modo inegável oferece algo que o leitor nunca viu antes”.
É uma pena que as editoras brasileiras não tenham publicado mais obras de Harlan Ellison, um dos escritores de ficção científica, fantasia e terror mais prolíficos do planeta, e também entre os melhores.
Esse conceito de que a história da Serpente pode não ser exatamente a que nós estamos acostumados a ouvir também surge no livro O Apócrifo do Diabo, de John A. De Vito. Eu entrevistei o autor em 2005, para a revista Sexto Sentido, e o resultado e mais informações sobre a obra podem ser lidos aqui.
Uma versão bem inferior do tema foi apresentada no livro Fantasmas (Phantoms, 1983), de Dean R. Koontz, um escritor bastante conhecido e com vários best-sellers na linha da ficção científica e terror, alguns bons, outros bem ruinzinhos.
A presença ancestral não é exatamente o diabo ou um demônio, mas pode ser visto como tal, uma vez que se trata de uma entidade que se encontra na Terra desde antes dos seres humanos e que é tida como a responsável pelo desaparecimento dos dinossauros. A proposta tem ligação com as ideias de H.P. Lovecraft (ver "O Mal e o Terror Absolutos") sobre a presença de alienígenas no passado do planeta, e também com os livros A Coisa, de Stephen King, e Cerimônias Satânicas, de T.E.D. Klein (ambos comentados a seguir). É uma tradição de histórias que remonta pelo menos ao século 19, com a obra de Arthur Machen, um dos inspiradores de Lovecraft.
O ser em questão não é apresentado como alienígena, e habita os subterrâneos de uma pequena cidade dos EUA, tem proporções incomensuráveis, pode assumir a forma que bem entender, além de conseguir reproduzir os sons de todos os seres vivos; assim, ele pode criar extensões de si mesmo, reproduzindo seres humanos, como fantasmas. Esse ser alimenta-se dos humanos ao longo de toda nossa história, sem que tenhamos conhecimento disso, e nossa sorte é que ele passa longos períodos sem se alimentar. Claro que existe um cientista que consegue imaginar uma forma de, finalmente, combater e liquidar a criatura.
Não é dos melhores livros de Dean Koontz, mas é razoável, com o clima de terror e suspense sendo mantido até o final. Traz uma semelhança com A Coisa, de Stephen King, mas não consegue se aproximar da qualidade do trabalho de King.
Ben Affleck e Liev Schreiber, em Fantasmas (Dimension Films/ Miramax).
A história foi adaptada para o cinema como Fantasmas (Phantoms, 1988), com direção de Joe Chapelle – que teve uma carreira mais intensa como produtor e diretor de seriados da TV – com roteiro do próprio Koontz, e tem no elenco nada menos do que Peter O’Toole, como o cientista responsável pela tentativa de destruir a criatura, e ainda Ben Affleck, ainda em início de carreira, e Liev Schreiber (o astro de Ray Donovan) como um dos policiais que acaba sendo uma extensão da criatura.
Bem mais interessante é Cerimônias Satânicas (The Ceremonies, 1984. Editora Nova Fronteira), de T.E.D. Klein, obra que, infelizmente, não foi relançada no Brasil. É um dos melhores livros de terror já publicados por aqui.
Klein, que aqui se inspirou no trabalho do escritor galês Arthur Machen (1863-1947), foi editor da revista Twilight Zone (o nome inglês do nosso Além da Imaginação), uma das mais importantes publicações do gênero horror e fantasia, e desde o início de sua carreira literária conseguiu se colocar ao lado dos grandes nomes do gênero.
Para Cerimônias Satânicas ele se inspirou na história O Povo Branco (The White People. No Brasil, publicada no livro Arthur Machen – O Mestre do Oculto, Editora Clock Tower), de Machen. Klein criou um interessante paralelo ao centrar a narração numa pequena cidade religiosa, um reduto conservador semelhante às comunidades amish, a apenas alguns quilômetros de Nova York. Por vezes, seus habitantes julgam poderem ver as luzes “maléficas” da grande metrópole, ao longe, como uma eterna tentação. A cidade vem até eles na forma do jovem Jeremy Freirs, professor que realiza um trabalho sobre o romance gótico, o que o obriga a ler O Povo Branco.
Vários capítulos são abertos com citações do livro de Machen, assim como grande parte da narração é feita pelo diário do professor, repetindo a narração do livro de Machen, feita pelo diário de uma menina que é instruída nas tradições secretas de Gales.
As citações não param por aí. Klein introduz e repete os nomes das divindades citadas por Machen, algumas delas conhecidas dos mais antigos habitantes de Gilead, a cidade onde se encontra: os dhols, voolas, e as cerimônias brancas, verdes e vermelhas, que dão o nome ao livro. E, seguindo uma espécie de tradição da moderna literatura de horror derivada da mente criadora de Lovecraft, a existência de “livros especiais” – modificadores da natureza humana – torna-se elemento primordial no enredo. Vários escritores criaram livros malditos para acompanhar o Necronomicon, inventado por Lovecraft, e Klein transforma o próprio livro de Machen num dos “livros malditos”.
A atualização, em Klein, se dá por meio da narração bastante sensual e em ritmo cinematográfico, com cortes rápidos e repentinos, semelhantes aos utilizados por Stephen King. Encaminha a ação para um final apoteótico no qual o Mal assume sua forma terrena e o confronto ocorre. Cerimônias Satânicas enquadra-se, sem dúvida, entre as grandes obras do gênero na atualidade e, apesar das mais de 600 páginas, é para ser lido de um só fôlego.
Ele também faz referência ao “terror cósmico” citado por Lovecraft, às forças do Mal representadas por seres não terrestres de idades incalculáveis que não apenas habitam o planeta, mas praticamente o compõem, ocultando-se no subsolo e transmitindo suas forças a todas as coisas vivas, subvertendo-as com pensamentos alienígenas.
Esse é outro livro que aparece comentado em Horror: 100 Best Books, com texto do escritor Thomas F. Monteleone, no qual ele afirma que a obra merece o reconhecimento como um “clássico moderno”. Ele diz que o livro é cuidadosamente trabalhado, distinguindo-se nas áreas de caracterização, estilo e enredo. “Klein assume um ritmo lento ao introduzir e detalhar os principais personagens em seu livro. Aqui não tem rascunhos ou rótulos convenientes – você precisa conhecer cada um a fundo e de forma a acreditar neles. Os protagonistas se tornam amigos queridos e agradáveis, e o vilão lentamente assume um manto de uma maravilhosa desprezibilidade”.
Segundo Monteleone, a beleza desse processo gradual é obtida por meio de um estilo e uma estrutura que adicionam camadas sobre camadas de percepção na história. “De forma constante, Klein informa o leitor sobre a enormidade do mal esperando para engolfar nosso mundo, mas ele omite o suficiente para manter as coisas enigmáticas, desconhecidas. Durante muito tempo, você sabe que alguma coisa terrível está para acontecer, mas nunca fica sabendo os detalhes”.
Monteleone também entende que o que marca mais profundamente a obra como sendo especial é seu enredo, com as referências históricas e literárias ao trabalho de Arthur Machen dando à história um sentido autêntico, uma legitimidade. “A ideia de uma estrutura cíclica para catástrofe e resolução apocalíptica”, escreve ele, “ainda que não seja nova na ficção de terror, ganha novos significados na história de Klein. Apesar de existirem ressonâncias com os Mitos de Cthulhu, de Lovecraft, e mesmo com a Bíblia, também existem referências a outros sistemas de crença e pontos de vista do mundo mais secretos. Klein cria uma concepção de mundo que engloba os termos mais simples de Bem Absoluto e Mal Absoluto, mas ele também sugere um horrivelmente completo conjunto de regras que governam o universo enquanto ele se move alegre e ruidosamente em direção ao seu destino final”. Também diz que o livro fornece um sentido de inevitabilidade, o qual sugere que o Mal nunca é totalmente derrotado.
A capacidade de desenvolver os personagens e a trama lentamente, sem forçar a barra, também é uma característica das melhores histórias de Stephen King, e é exatamente isso o que ele faz em A Coisa (It, 1986). Como em seus momentos mais marcantes, Stephen King apresenta detalhes minuciosos dos relacionamentos, sem perder o ritmo da narrativa. Nessas histórias, nada, ou praticamente nada, é supérfluo; as informações necessárias para o bom entendimento e desenvolvimento da história surgem com abundância, mas no momento certo, compondo aos poucos o ambiente necessário para os acontecimentos.
Em A Coisa, essa procura pela minúcia e pelo desenvolvimento preciso dos personagens é um ponto fundamental para a história funcionar, para atingir o leitor. Provavelmente, foi nesse livro que o autor conseguiu reproduzir com mais fidelidade o ponto de vista das crianças – talvez só comparado ao conto O Corpo (The Body), do livro Quatro Estações (Different Seasons, 1982), levado ao cinema com o excelente Conta Comigo (Stand by Me, 1986), dirigido por Rob Reiner. E isso foi absolutamente necessário, uma vez que ele conta a história de um grupo de amigo que se inicia na cidade de Derry, em 1958, e termina no mesmo local, em 1985. Sete crianças com problemas únicos, que muita gente grande teria imensas dificuldades para enfrentar, mas que por meio de sua associação que atinge momentos quase mágicos, eles conseguem superar. Ou quase. Sua amizade se desenvolve para cumprir a missão de combater o mal que vive nas entranhas da cidade, e que pode ser visto como o Mal, com maiúscula mesmo, ou o que se chama A Coisa, por falta de melhor definição.
Capa da primeira edição (Viking/ Ilustração de Bob Giusti).
Tudo indica que A Coisa é um ser que chegou à Terra em épocas incalculáveis, penetrando no fundo da terra e esperando o surgimento dos seres humanos que irão alimentá-la, especialmente com seus temores. O ser já é aterrorizante apenas se pensarmos na paciência com que elabora e espera que seus planos se concretizem. Ela fica adormecida por centenas de anos e acorda para iniciar seu banquete maléfico, e para realizar o que pretende, o ser pode assumir diferentes identidades – em particular a de um palhaço – mas igualmente penetrar nos locais mais íntimos das mentes humanas, descobrindo seus segredos e seus medos, e transformando-se para corromper e conquistar suas presas.
A história tem uma ligação com os mitos criados por H.P. Lovecraft, imaginando um Mal de idade absurda, vindo de fora do planeta e sem quaisquer restrições morais para atingir seus objetivos.
Próximo ao final, grandioso, um dos personagens não aguenta, diante do que está vendo acontecer à sua frente, e grita: “Que efeitos especiais filhos da mãe. Steven Spielberg não ia dar nem pra saída”.
(Lorimar Television/ Warner Bros. Television).
Bom, não foi com Spielberg, mas A Coisa chegou à televisão, numa minissérie produzida pela rede ABC em 1990, com direção de Tommy Lee Wallace, e os efeitos realmente não deram nem pra saída. Na verdade, a série não chegou a emplacar, recebendo críticas variadas que foram de “medíocre” a “excelente”. Falhou em manter o ritmo do livro e desenvolver melhor os personagens; era necessário que a razão da formação da associação das crianças fosse apresentada aos poucos, ao longo da história de cada personagem e de seus problemas. Também não conseguiu manter o sentido de como a infância e juventude de cada um deles – e com consequências em suas vidas adultas – vai sendo drenada pelo conhecimento de algo grande demais para ser encarado e, ao mesmo tempo, terrível demais para ser mantido escondido. No Brasil, recebeu o “fantástico” título de It: Uma Obra-Prima do Medo.
A Coisa foi para o cinema em 2017. A direção é de Andrés Muschietti, o mesmo do terror Mama (Mama, 2013). Foi programado para ser produzido em duas partes, de modo que o primeiro filme só mostra a história das crianças, e não o retorno dos adultos.