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UTOPIAS E TRANSFORMAÇÕES

ESPECIAIS/VE NA ILHA

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data04/08/2015
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Entre outras coisas, as ilhas também são o cenário ideal para a elaboração de utopias, distopias e histórias de superação e transformação interior.
Mapa da ilha Utopia, elaborado por Abraham Ortelius (c. 1595).

Em 1516 surgia o livro A Utopia, de Sir Thomas More (1478-1535) – ou, com seu título completo, Sobre o melhor estado de uma república e sobre a nova ilha Utopia – mesclando ficção, política e filosofia.
Aborda todos os aspectos da vida na ilha imaginária, incluindo os aspectos religioso, social e político, pretendendo não apenas apresentar o que poderia ser uma sociedade ideal, mas ao mesmo tempo criticando as sociedades então existentes na Europa. Alguns estudiosos afirmam que Utopia pode ser visto como uma sátira. O problema é que muitos aspectos apresentados no livro aparentemente são opostos às crenças de Thomas More.
Seja como for, com o tempo, o nome “utopia” passou a ser utilizado para descrever, não o ideal a ser atingido, mas o ideal inatingível, algo visto como uma fantasia impossível de ser alcançada.

                                                                                                                                                                                                                                                                                Página inicial de Nova Atlântida, na edição de 1628.

Mais de um século após, surgiu Nova Atlântida (New Atlantis, 1627), trabalho incompleto de Francis Bacon (1561-1626), igualmente procurando oferecer uma descrição do que seria uma sociedade perfeita. E, como em Utopia, ele situou sua sociedade em uma ilha, Bensalém, descoberta pela tripulação de um navio que se perdeu no Oceano Pacífico, em algum ponto a oeste do Peru. No livro Dicionário de Lugares Imaginários, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi (Companhia das Letras), é dito que se localizava na região das Ilhas Salomão, ou seja, muuuito a oeste do Peru, mais próximo da Austrália.
O centro do reino, sua instituição mais importante, é a Casa de Salomão, fundada pelo rei Solamona, e que tem como objetivo o conhecimento das causas e movimentos secretos das coisas; em suma, um centro de estudos científicos que teria levado ao desenvolvimento de submarinos e máquinas voadoras, além das pesquisas em óptica, energia e comunicações, essas últimas antecipando a invenção de Graham Bell. Também desenvolveram conhecimento e aplicações no que se poderia chamar de genética, conseguindo grandes avanços e derrotar doenças como o câncer.

Nas costas da Venezuela, próxima à desembocadura do rio Orinoco, situa-se uma das ilhas mais famosas de todos os tempos, aquela na qual se desenvolve a história Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe, talvez, ou muito provavelmente, a mais influente história de náufragos de todos os tempos, servindo como referência a praticamente tudo o que veio depois.
É quase impossível falar sobre uma ou mais pessoas perdidas numa ilha sem citar Robinson Crusoé, que chegou à ilha, também chamada Speranza, no dia 30 de setembro de 1659, segundo a inscrição que ele gravou numa estaca de madeira, em seu primeiro acampamento.
Um dos contrastes visíveis apresentados na história é entre a sociedade dita civilizada em que o náufrago vivia e as condições precárias em que se vê na ilha. Na versão mais recente da história, Náufrago (Cast Away, 2000), com Tom Hanks, esse contraste é acentuado, talvez porque a sociedade em que o náufrago vive é ainda mais avançada tecnologicamente do que a de Robinson Crusoé, e hoje estamos ainda mais distantes de conhecer e saber aplicar alguns procedimentos básicos de sobrevivência, como o simples ato de fazer fogo.

                                                                                                     Crusoé salva Sexta-feira dos canibais (ilustração de Carl Offterdinger).

Vários críticos, entre eles o escritor James Joyce, entendem o livro de Defoe como uma crítica ao colonialismo britânico, e os exemplos disso estendem-se por toda a história, com Crusoé tentando transformar seu novo lar numa réplica do estilo de vida britânico, inclusive denominando a ilha uma colônia; para não falar do relacionamento com Sexta-feira, exatamente como o de dominador e dominado, mestre e servo.
As interpretações, é claro, não param por aí, estendendo-se aos aspectos religioso e moral da vida, evidenciados e ampliados pela situação de isolamento.
A imensa quantidade de versões, adaptações e sequências à história de Danie Defoe – seja qual for a qualidade dos trabalhos – chegou a originar um novo termo, “robinsonade”, hoje já em desuso.

Outro marco da literatura mundial é a sátira As Viagens de Gulliver (Gulliver’s Travels, 1726), de Jonathan Swift, curiosamente muitas vezes apontado entre os antecessores da ficção científica, ainda que esteja mais para a fantasia.

         Ilustração de As Viagens de Gulliver, "Gulliver em Brobdingnag" (Richard Redgrave).

O personagem central é o cirurgião Lemuel Gulliver, que se vê isolado em sociedades estranhas após um naufrágio. Nas duas passagens ou “viagens” mais conhecidas ele chega à ilha de Lillipute e à península de Brobdingnag; na primeira, ele é um gigante em meio aos anões; na segunda, é o oposto. Gulliver também viaja à ilha de Laputa, flutuando no ar e habitada por cientistas. É exatamente essa passagem da história, em Laputa, que é apontada como referência aos antecedentes da ficção científica, e é ali que Swift fala a respeito da existência dos satélites de Marte.


Gulliver descobre Laputa, a ilha flutuante (ilustração de J.J. Grandville).

Muitas vezes, o livro de Swift é visto como um contraponto ao de Daniel Defoe, que acreditava na capacidade do ser humano, enquanto Swift é um crítico feroz da sociedade de sua época e, até certo ponto, inclusive da ciência; os cientistas que habitam a ilha flutuante de Laputa atingiram imensos avanços tecnológicos, mas não sabem muito bem o que fazer com eles, de modo que suas descobertas não têm qualquer aplicação prática.

                                                                                              Cartaz de Viagens de Gulliver ( Paramount, 1939).

As Viagens de Gulliver está entre os livros mais influentes da história da literatura, integrando o imaginário popular em todo o planeta, com as imagens desenvolvidas por Swift para as sociedades apresentadas sendo ainda mais difundidas quando começaram a ser levadas para o cinema e para a televisão, a começar com o desenho animado Viagens de Gulliver (1939), de Max Fleischer (responsável pelas animações Betty Boop, Popeye e Superman), estendendo-se até o recente As Viagens de Gulliver (Gulliver’s Travels, 2010), com Jack Black; é verdade que muitas, ou quase todas as adaptações para o cinema não apresentaram as críticas ácidas de Swift, mas o filme com Jack Black é uma das adaptações mais toscas da história original que se tem conhecimento.

Apesar de As Viagens de Gulliver ser considerado por alguns como um dos predecessores da ficção científica, o gênero só começou a ser definido com Frankenstein, de Mary Shelley, em 1818. E mais claramente com os dois grandes nomes que surgiram no final do século 19: Júlio Verne e H. G. Wells. E entre os inúmeros clássicos que eles elaboraram, dois livros lidam diretamente com a ilha.

Mapa da ilha misteriosa, ou Ilha Lincoln, na edição francesa (1875).

Em 1874, Jules Verne publicou A Ilha Misteriosa (L’Île Mystérieuse), que mais uma vez apresenta o Capitão Nemo e o submarino Nautilus, de Vinte Mil Léguas Submarinas (1870). A ilha do título é o local secreto onde o capitão mantém sua base e à qual chegam cinco americanos, soldados nortistas que, durante a Guerra Civil americana escapam da prisão usando um balão. Após passarem por uma tempestade, são jogados na ilha e passam por uma série de situações inexplicáveis, que não parecem naturais, sendo ajudados por uma presença que desconhecem. Também têm de enfrentar um grupo de piratas que chega à ilha, querendo transformá-la em seu refúgio; seu navio é destruído misteriosamente por uma explosão.
Claro que a "presença misteriosa" é o próprio Capitão Nemo, que conseguiu escapar da destruição no livro anterior, mas que está chegando ao final de sua vida. O livro segue o estilo característico de Júlio Verne, com muita ação, o que fez com que fosse um dos favoritos para adaptações para o cinema, com pelo menos nove produções desde 1929.

A ilha de H.G. Wells surgiu em 1896, com o sensacional A Ilha do Dr. Moreau (The Island of Dr. Moreau; no Brasil, publicado também com o título A Ilha das Almas Selvagens, em 1962), um dos clássicos da ficção científica e uma referência para uma série de obras que lidaram com o tema da engenharia genética, ainda que no livro seja utilizado o termo vivissecção para explicar as experiências que o Dr. Moreau realiza em sua ilha.
O inglês Edward Prendick chega à ilha após seu navio naufragar e ele ser resgatado. No local, começa a perceber que algumas experiências estão sendo realizadas por Moreau e encontra pessoas que parecem humanas, mas que têm semelhanças com porcos. Na verdade, o cientista está tentando criar híbridos, fazendo com que animais passem a ter comportamento humano.
Alguns dos temas tratados na obra foram abordados fartamente na literatura de ficção científica, e continuam a ser ainda hoje, em particular a capacidade do ser humano em interferir com a natureza, alterando os eventos, geralmente com consequências desastrosas.