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FICÇÃO PRÉ-HISTÓRICA

ESPECIAIS/VE FICÇÃO PRÉ-HISTÓRICA

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data04/10/2024
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Imagem: Jack Drafahl/ Pixabay.

A relação entre ficção científica e a pré-história humana parece ser um tanto tênue, ainda que o crítico David Langford tenha dito que a ficção pré-histórica tornou-se conectada à ficção científica parcialmente porque H.G. Wells anexou esse território efetivamente com o conto Uma História da Idade da Pedra – Ugh-Lomi e Uya (A Story of the Stone Age, 1897. Em português, Editora Wish/ Sociedade das Relíquias Literárias, 2024. Publicado originalmente na revista britânica Idler). Como o título indica, a história se passa durante a Idade da Pedra, e tem como protagonista central Ugh-Lomi, um “homem das cavernas” que se une à jovem Eudena e mata seu rival, o então líder tribal Uya. O casal parte em exílio e Ugh-Lomi acaba se transformando no primeiro humano a domar e montar um cavalo e a combinar a madeira e a pedra para construir um machado, o que o ajuda a sobreviver aos perigos do mundo e, eventualmente, assumir a posição de líder tribal.
Wells retornaria ao tema em 1921, com o conto O Povo Horrível (The Grisly Folk, 1921. Publicado originalmente na revista britânica The Story-Teller. Em português em H.G. Wells – Ficção Curta Completa Volume II, E-primatur, 2017), dividido entre um conto e um ensaio, apresentando um possível encontro e choque entre humanos modernos e neandertais.
Segundo Langford, as duas histórias de Wells desenvolvem os temas que foram recorrentes nas narrativas do gênero, ou seja, a descoberta e desenvolvimento de armas e de outros utensílios, e o choque entre as diferentes culturas.
Langford cita algumas obras que lidam com os primórdios da humanidade, entre elas o conto The Fallen Star, or the History of a False Religion (1834), de Edward Bulwer-Lytton, publicado na coletânea The Pilgrims of the Rhine. Segundo John Clute, trata-se de uma protoficção científica com um tratamento dos primeiros humanos como exemplos de um processo de evolução.
O mesmo tratamento surge no conto The Romance of the First Radical (1880, publicado originalmente em Fraser’s Magazine, com o título The Romance of the First Radical: A Prehistoric Apologue), de Andrew Lang, também publicado na coletânea In the Wrong Paradise and Other Stories. O conto apresenta o personagem Why-Why, vivendo na Idade do Gelo, que se apaixona por Verva e que tem uma imensa curiosidade, o que o leva a fazer muitos questionamentos à sua tribo.
Na obra Zit and Xoe: Their Early Experience, de Henry Curwen (publicada originalmente em 1885, em Blackwood’s Magazine), dois macacos mais avançados que os demais são forçados a deixar seu grupo e buscar sua evolução.

                                                                                                                                                                    (Bamboo Editorial/ 2014).

A partir de 1892 o escritor belga J.H. Rosny aîné começou a publicar uma série de histórias pré-históricas, das quais a mais conhecida foi A Guerra do Fogo (La Guerre du Feu). O primeiro volume foi Vamiré (Vamireh, 1892), seguido por Eyrimah (1893), Nomai (1897), A Guerra do Fogo (1909), Le Félin Géant (1918) e Helgvor du Fleuve Bleu (1931).

Vamireh, capa de Raoul Serres (Plon/ 1926); Eyrimah (Jules Tallandier/ 1977); Le Félin Géant (Jules Tallandier/ 1977).

O historiador e crítico Adam Roberts diz que, após ter mergulhado na paleontologia, o autor “(...) deu início à recriação de uma história humana mítica, das origens da humanidade à época em que o homem é destronado por uma espécie nova e superior, os ‘ferromagnétaux’ (ferromagnéticos)”. Roberts apresenta uma lista de livros nessa série nos quais inclui A Guerra do Fogo, mas não cita os demais da chamada “saga pré-histórica”.
A Guerra do Fogo situa a história 10 mil anos a.C., em algum lugar do que seria a Europa, em um ambiente repleto de mamutes, tigres dente-de-sabre e outros animais, além de diferentes tipos de humanoides, incluindo os Ulams, neandertais e tribos canibais. A história foi adaptada para o cinema em 1981 e, apesar de algumas alterações no enredo, foi muito bem sucedida (ver comentário aqui).

Capa de Simon Harmon Vedder (Dodo Press/ 2008).

Em 1897, Stanley Waterloo publicou seu The Story of Ab: A Tale of the Time of the Cave Man. Segundo John Clute, o livro apresenta personagens jovens que transformam a cultura pré-histórica inventando artefatos, e trata-se de um dos primeiros romances de antropologia. O autor ainda escreveu um conto de ficção pré-histórica, Christmas, 200,000 B.C., publicado na coletânea The Wolf’s Long Howl (1899), escrito originalmente em 1887.
Em 1899, E.S. Curry publicou seu The No-Din: Romance, History and Science of Pre-Historic Races of America and Other Lands, que segue uma versão alternativa da nossa história ao situar a narrativa cerca de 8 mil anos após o nascimento, ou criação, de Adão, uma época dos patriarcas bíblicos. Existe um continente no Pacífico Sul que é destruído por um cometa, e os sobreviventes espalham-se pelo planeta em aparelhos voadores e colonizam locais como Amurica, Atlantuz e Ophur.
Pouco antes da segunda história de H.G. Wells, o escritor americano Albert Nelson Dennis escreveu, juntamente com J. Clarence Marple, a história Anona of the Moundbuilders: A Story of Many Thousands of Years Ago (1920), imaginando a cultura pré-histórica da América do Norte, conhecida como “mound builders” (construtores de montes”). Os habitantes locais são apresentados com o nome de Ionenese, uma raça com cerca de 2,5 metros de altura, de pele clara e muito atraentes, capazes de domesticar mastodontes, e que têm de se defender constantemente contra “(...) os perversos, pequenos e pretos invasores do fétido sul”, como nos conta John Clute. “Mas Anona”, ele continua, “converte seu povo ao monoteísmo, que leva a melhor contra os intrusos. A história é, talvez, incomum na nudez de suas premissas raciais”.

Um dos maiores escritores norte-americanos, Jack London, também navegou pelo tema dos antepassados humanos em seu Antes de Adão (Before Adam, 1906. Publicado originalmente em Everybody’s Magazine, entre outubro de 1906 e fevereiro de 1907). Segundo o crítico e acadêmico Howard Bruce Franklin, London utilizou o seu tema favorito, o conceito de atavismo, como um instrumento para projetar uma consciência primitiva do passado nos sonhos lúcidos do narrador contemporâneo do livro. O narrador, então, tem sonhos extremamente lúcidos nos quais ele vive uma experiência nos tempos pré-históricos na pele do jovem conhecido como Big-Tooth, ou Dentuço, na tradução brasileira. A ação situa-se em meados do período Pleistoceno.
Em 1910, o escritor inglês Ashton Hilliers publicou The Master-Girl, apresentando a ideia de novos instrumentos sendo inventados, no caso pela jovem Dêh-Yãn, da tribo Little Moons, que desafia sua tribo primitiva para unir-se a um homem de uma tribo rival. A jovem tem uma inteligência acima do normal e acaba liderando a tribo e criando uma espécie de grupo de amazonas.

(Boni & Liveright/ 1920/ 1921).

Na linha de histórias em um cenário pré-histórico para um público juvenil, um autor que se destacou foi George Langford, um paleontologista amador que publicou dois livros do gênero: Pic The Weapon-Maker (1920) e Kutnar, Son of Pic (1921). As histórias situam-se 25 mil anos no passado e mostram os personagens enfrentando as vicissitudes da época, criando novos artefatos e armas, enfrentando animais e, em alguns casos, como explica John Clute, apresentando o que parece ser algum tipo de relacionamento telepático com mamutes.

Og - Son of Fire, capa de Jack Murray (Abela Publishing/ 2020); Og - Boy of Battle, capa de Charles Livingston Bull (Dodd, Mead & Co./ 1925); Og of the Cave People (Dodd, Mead & Co./ 1935); Og, Son of Og (Dodd, Mead & Co./ 1965).

O escritor americano Irving Crump escreveu uma série livros com aventuras pré-históricas voltadas para o público jovem, além de alguns contos publicados na revista Boy’s Life. John Clute e David Langford disseram que, apesar da visão sombria que H.G. Wells apresentou dos neandertais, eles chegaram a ser apresentados como heróis por vários autores, entre eles Irving Crump, com seu personagem Og. As histórias situam-se na Europa há 50 mil anos, e o personagem central descobre como criar o fogo, além de enfrentar os perigos da época, incluindo vários animais. E, segundo os críticos, o personagem comporta-se com dignidade louvável ao longo das histórias.
O primeiro livro foi Og – Son of Fire (1921, originalmente na revista Boy’s Life; depois em livro, em 1936); Og – Boy of Battle (1924-1925, na Boy’s Life); Og of the Cave People (1933-1935, na Boy’s Life; em livro, em 1935); Og, Son of Og (1954-1959, na Boy’s Life; ampliado para livro em 1965). Outras cinco histórias foram publicadas na Boy’s Life entre 1935 e 1936, e não chegaram a ser publicadas em livro.
Como Clute e Langford ressaltam, e como ocorria com muitas obras da época, pode-se perceber descrições racistas de uma tribo apresentada como “preta e inerentemente inferior”.

(D. Appleton & Co./ 1927).

Parece que personagens criando artefatos que modificam o mundo eram uma constante na ficção pré-histórica. É o que volta a acontecer, por exemplo, em Tam of the Fire Cave (1927), de Howard R. Garis, que traz a vida do jovem Tam, impedido de participar das expedições de caça de sua tribo por ter problemas físicos. Assim, o jovem passa seu tempo na Caverna de Fogo do título original, pensando em melhores formas de seu povo obter comida e cozinhar os alimentos, e é assim que salva a tribo em uma época de dificuldades.

                                                                                                                              Capa de Armstrong Sperry (Wm. H. Wise & Co./ 1928).

Em alguns livros, os “inventores” acabam não sendo muito bem vistos por sua tribo, como é o caso do personagem Carnack, em Carnack – The Life Bringer: The Story of a Dawn Man Told by Himself (1928), de Oliver Marble Gale. Segundo John Clute, Carnack às vezes lembra Tarzan, e sua vida é narrada por ele mesmo, como diz o subtítulo do livro, enfrentando as dificuldades da vida pré-histórica e até mesmo desenvolvendo uma compreensão espiritual do universo. No entanto, as inovações que tenta introduzir não são bem aceitas por seu grupo, e ele e sua esposa acabam sendo exilados, em cenas que, segundo John Clute, evocam explicitamente Adão e Eva.

Darkness and the Deep, capa de Robert E. Schulz (Pyramid Books/ 1960); The Golden Rooms, capa de Robert Maguire (Pyramid Books/ 1960); Intimations of Eve, capa de Jack Thurston (Pyramid Books/ 1961); Adam and the Serpent (Pyramid Books/ 1961); The Divine Passion (Pyramid Books/ 1961).

O escritor norte-americano Vardis Fisher elaborou uma série de 12 livros chamada Testament of Man que, segundo explica John Clute, abarca toda a história humana, sendo de interesse à ficção científica os primeiros cinco volumes, que o crítico classifica como ficção científica pré-histórica. São eles: Darkness and the Deep (1943); The Golden Rooms (1944); Intimations of Eve (1946); Adam and the Serpent (1947); The Divine Passion (1948). Os dois últimos “(...) concentram-se em uma mudança gradual de um mundo matriarcal para um patriarcal que (ele discute nos volumes posteriores da sequência) continua a distorcer a empreitada humana”.

O conceito de ficção pré-histórica abre um amplo terreno para especulação, às vezes levada ao extremo, como no caso do filme Um Milhão de Anos Antes de Cristo (One Million B.C., 1940. Também com o título O Despertar do Mundo), com Victor Mature e Carole Landis. E, apesar da boa recepção do público e da crítica na época, a história comete erros cronológicos absurdos ao situar, no mesmo ambiente, seres humanos primitivos e animais extintos milhões de anos antes. Mature interpreta (por assim dizer) Tumak, da tribo das rochas, inimiga da tribo das conchas, à qual pertence Loana (Landis), e os dois se apaixonam.
O filme originou uma refilmagem, Mil Séculos Antes de Cristo (One Million Years B.C., 1966), mais famoso pela presença de Raquel Welch do que pelos efeitos de Ray Harryhausen.

                     Laurette Luez, Allan Nixon e Mara Lynn, em Mulheres Pré-Históricas (Alliance Productions).

Certamente alguns produtores viram nesse filão uma boa oportunidade e lançaram alguns filmes bem ruinzinhos, como Mulheres Pré-Históricas (Prehistoric Women, 1950), dirigido por Gregg G. Tallas. A história apresenta as mulheres pré-históricas do título, que formam sua própria tribo e odeiam os homens, os quais capturam apenas com a finalidade de procriação. Um dos homens, que parece ter inteligência acima dos demais, consegue escapar, descobre como fazer fogo, é recapturado e usa seu conhecimento para lidar com uma criatura pré-histórica semelhante a um dragão. Eventualmente, ele acaba se unindo com a rainha e eles formam uma tribo mais equilibrada.
A produtora inglesa Hammer, que havia feito sucesso com Raquel Welch, viu que era uma boa ideia colocar mulheres gostosas em roupas sumárias na pré-história e ameaçá-las com animais que já estavam extintos muito antes dos humanos se desenvolverem, e assim criou Quando os Dinossauros Dominavam a Terra (When Dinosaurs Ruled the Earth, 1969), dirigido por Val Guest. Segundo se diz, a história foi baseada em um esboço desenvolvido pelo sensacional escritor de ficção científica J.G. Ballard, mas foi tão modificada que causou um atrito com o escritor. Para o papel central escolheram a playmate Victoria Vetri e, segundo algumas fontes, o filme tinha algumas cenas de sexo que foram censuradas antes da exibição nos cinemas.

Um choque de culturas é mais uma vez apresentado em Os Herdeiros (The Inheritors, 1955), do escritor inglês William Golding. É seu segundo romance, logo após o bem sucedido Senhor das Moscas (Lord of the Flies, 1954). Segundo David Langford, o livro foi escrito em parte como uma reação ao conto O Povo Horrível, de H.G. Wells, “(...) vendo, por meio dos olhos de um neandertal, o triunfo moralmente ambíguo do homem de Cro-Magnon. O abismo entre as culturas antiga e nova é desenvolvido com força considerável, até alucinatória, do ponto de vista do neandertal”.
A história apresenta um pequeno grupo de neandertais, deixando suas habitações de inverno no litoral em direção às montanhas, e no caminho vão encontrando sinais de mudança no ambiente e, posteriormente, encontram uma nova raça, com tecnologias mais desenvolvidas que eles não compreendem, e eventualmente são diretamente afetados pelas ações dessa raça, supostamente os ancestrais dos modernos seres humanos.
Golding apresenta os neandertais como uma raça simples, porém com sua própria cultura e, aparentemente, com uma certa capacidade de se comunicar mentalmente, utilizando um vocabulário limitado, mas com grande conhecimento do ambiente em que vivem.
No último capítulo, o autor modificou o ponto de vista narrativo para mostrar que a nova raça de humanos que começa a dominar seu ambiente via os neandertais como seres perigosos e que precisavam ser combatidos.
O livro foi publicado ainda antes de Golding ser reverenciado por Senhor das Moscas, e recebeu críticas excelentes. Segundo o crítico Mark Blake, da revista Louder, a história de Golding foi uma das inspirações de Tony Banks para compor a música A Trick of the Tail, do Genesis.

                                        A primeira edição no Brasil, com capa de Geoff Taylor (Ed. Record), e a edição da Best Seller.

A partir de 1980, com Ayla, a Filha das Cavernas (The Clan of the Cave Bear), a escritora norte-americana Jean M. Auel iniciou uma série bem sucedida de livros, ainda que nem sempre bem recebidos pela crítica, apresentando a personagem Ayla, uma Cro-Magnon que, no início de sua aventura tem cinco anos de idade, quando um terremoto mata sua família. Depois de vagar sem rumo e sozinha e quase ser morta, é resgatada por um grupo de neandertais.
Eventualmente, ela é adotada pela mulher que é uma espécie de xamã do seu clã, apesar de pertencer ao que eles chamam de “os Outros” e serem inimigos. Ao crescer, as diferenças entre eles se tornam mais evidentes e Ayla acaba rompendo com várias tradições e tabus da tribo neandertal, o que leva a situações extremas e seu desligamento.
A história teve sequência com as obras: O Vale dos Cavalos (The Valley of the Horses, 1982); Os Caçadores de Mamutes (The Mammoth Hunters, 1985); Planície de Passagem (The Plains of Passage, 1990); O Abrigo de Pedra (The Shelters of Stone, 2002); A Terra das Cavernas Pintadas (The Land of Painted Caves, 2011).
Segundo David Langford, os livros de Jean M. Auel acabaram se tornando a referência da ficção pré-histórica no final do século 20.

Os Caçadores de Mamutes, capa de Larry Rostant (Best Seller); Planície de Passagem, capa de Hiroko (Ed. Record); O Abrigo de Pedra, capa de Larry Rostant (Best Seller).