Imagem: Sarah Richter/ Pixabay.
Os filmes – e alguns livros também – que se enquadram na subcategoria da ficção científica e do terror conhecida como “vingança da natureza” tornaram-se bastante comuns principalmente nos anos 1970.
Não consegui encontrar uma referência exata de como e quando o termo surgiu, ou quem o inventou, mas ele se tornou popular entre os críticos e estudiosos do gênero.
Na verdade, algumas classificações nesse sentido estenderam-se para o passado, incluindo alguns filmes das décadas de 1940 e 1950, em particular aqueles que apresentavam seres que se desenvolviam até atingir proporções gigantescas, em sua maioria devido a experiências atômicas. Aqui, não vamos falar muito desses últimos filmes, porque já foram abordados anteriormente no especial Alguns Monstros, nas matérias Gigantes Atômicos e Outros Monstros e Alguns Filmes Com Monstros Mutantes. Mas certamente ainda sobraram alguns animais que causaram problemas à humanidade por terem sido afetados por algum tipo de atividade humana.
Às vezes, pode parecer uma categorização demasiadamente aberta a interpretações, podendo confundir-se com outras, como a dos filmes de monstros, como citado acima. Mas o que permanece em comum nesses filmes é que animais – e, às vezes, plantas – das mais variadas espécies ameaçam a humanidade ou parte dela, de forma consciente ou inconsciente, transformados indiretamente pela ação humana no ambiente em que vivem, transformados diretamente pela ação humana em seus corpos, ou simplesmente sem qualquer motivo aparente.
Tippi Hedren, em Os Pássaros (Alfred J. Hitchcock Productions/ Universal Pictures).
Um exemplo desse último tipo é o clássico Os Pássaros (The Birds, 1963), de Alfred Hitchcock. Aliás, alguns críticos entendem que o filme de Hitchcock foi o grande impulsionador das produções do gênero.
Ao falar sobre o tema em The Encyclopedia of Science Fiction, os críticos Peter Nicholls e David Langford colocam o tema “vingança da natureza” como uma subcategoria do tema mais amplo “filmes de monstros”. Dessa forma, eles dizem que “Na maioria dos casos, o monstro representa uma punição à humanidade; por interferir na natureza, corrompendo o meio ambiente ou criando armas desprezíveis”. Muitos dos filmes na linha “vingança da natureza”, senão todos, podem se encaixar perfeitamente nessa definição.
Eles ainda dizem que “O monstro deve ocupar nosso mundo – um mundo em que causa e efeito são importantes, e os fenômenos normalmente têm explicações – e não um mundo de fantasia; por essa razão, os filmes de monstros podem ser corretamente definidos como ficção científica. No entanto, o monstro não é um ocupante natural do nosso mundo e, nesse sentido, os filmes de monstros aproximam-se da condição de fantasia. Até mesmo as supostamente triviais formigas-soldado de A Selva Nua (The Naked Jungle, 1954) são bastante exageradas quando comparadas com a realidade”.
Nicholls e Langford dizem ainda que, se o filme de monstro tem uma moral definitiva, é sobre a fragilidade da “Idade da Razão na qual nós supostamente vivemos. A irracionalidade espreita na escuridão que nos cerca, logo além da luz das nossas fogueiras, e pode irromper. (...) Uma das qualidades interessantes dos filmes de monstros é que qualquer tentativa de solucionar seus significados quase sempre revela uma crítica à presunção de ‘civilização’ – de fato, um questionamento da própria natureza da civilização. Assim, um dos nossos aparentemente mais imaturos gêneros, levanta algumas das questões mais irrespondíveis do nosso mundo”.
Charlton Heston e Eleanor Parker, em cartaz de A Selva Nua (Paramount Pictures).
O filme citado, A Selva Nua, é certamente um bom exemplo de um dos primeiros filmes do gênero “vingança da natureza”. E, se não considerarmos na lista os filmes de “monstros atômicos”, provavelmente foi mesmo “o” primeiro do gênero. Foi dirigido por Byron Haskin, com produção de George Pal, que já vinha dos sucessos de Destino à Lua, Colisão de Planetas e A Guerra dos Mundos. Foi baseado no conto Leiningens Kampf mit den Ameisen (1937), do escritor austríaco Carl Stephenson (1893-1983).
Traz Charlton Heston como Christopher Leiningen, o proprietário de uma imensa plantação na América do Sul – provavelmente no Brasil, já que no conto é assim – e vê sua propriedade ser ameaçada, ao mesmo tempo em que chega ao local a mulher com quem casou por procuração, e que não conhecia (Eleanor Parker). A ameaça são as formigas de correição que se dirigem ao local, chamadas marabuntas, destruindo tudo o que encontram pelo caminho. Enquanto outros proprietários abandonam a região, ele resolve ficar e defender sua propriedade da melhor forma possível, criando poços de água em torno, e até um poço com petróleo para queimar as formigas.
As formigas dirigindo-se para a plantação e devorando tudo pelo caminho.
O crítico Michael Weldon disse que a maior parte do filme consiste em Heston rejeitando sua esposa – que era uma viúva, e não uma virgem, como ele queria – “mas as cenas de sua plantação sendo invadida por milhões de formigas fazem deste um dos melhores filmes de ataque de insetos de todos os tempos”. O crítico John Stanley é outro que também não gostou muito das cenas iniciais com o casal se estranhando; depois que as formigas atacam, “aquelas pequenas carnívoras devoradoras vão te assustar muito, enquanto homens são comidos vivos”.
As marabuntas voltaram a atacar, certamente não as mesmas, em 1998, no filme Formigas Assassinas (Legion of Fire: Killer Ants!), também apresentado com o título Marabunta, com direção de Jim Charleston e George Manasse. Fez parte de uma série de produções dos anos 1990 que reviveram, não com muito sucesso, o tema “vingança da natureza”. Nesse caso, as marabuntas ressurgem no Alasca, levadas em uma carga de madeira da América do Sul, e conseguem sobreviver e se desenvolver porque o solo é aquecido pela atividade de um vulcão. E, é claro, logo começam a atacar aos milhões, levando o pânico a uma pequena cidade. O xerife da cidade é Mitch Pileggi, o Skinner da série Arquivo X, e o filme não vai a lugar algum, ou pelo menos a nenhum lugar interessante.
Segundo Peter Nicholls e David Langford, a estrutura dos filmes de monstros normalmente apresenta algumas convenções em sua narrativa: tem um início pacífico; depois, as primeiras insinuações de que algo está errado; vislumbres do monstro; a descrença dos primeiros relatos; ataques de ferocidade crescente, nos quais o monstro é completamente revelado; e a luta contra o monstro e sua destruição. “Também”, eles completam, “frequentemente tem a revelação, nas últimas cenas, de que existem mais monstros incubados”.
Tippi Hedren, sendo atacada na cabine telefônica, em Os Pássaros.
O filme Os Pássaros foge um pouco dessa estrutura, ainda que siga várias das convenções. Claro que o título já é uma indicação de que o “monstro”, no caso, são os pássaros, mas o filme tem um início pacífico e as primeiras insinuações de que algo está errado, assim como a descrença dos primeiros relatos – o que pode ser comprovado na cena da lanchonete, logo após um ataque à personagem Melanie Daniels (Tippi Hedren) –, seguindo com os ataques cada vez mais violentos dos pássaros e a tentativa de lutar contra eles. Mas, aqui, o monstro não é destruído.
Algumas pessoas estranham o fato de Os Pássaros geralmente ser considerado um filme de ficção científica, mas os críticos têm bons argumentos nesse sentido. Peter Nicholls diz que “Ainda que seja bem mais sofisticado do que o normal, esse filme famoso pertence oficial e classicamente ao gênero dos filmes de monstros, nos quais a fragilidade da hegemonia humana sobre a natureza e o mundo é convencionalmente representada por uma paisagem tranquila devastada, sem aviso, por uma fúria monstruosa e inexplicável. O filme não é estritamente ficção científica, uma vez que, de forma interessante, ele não procura nem oferece qualquer explicação racional para o que ocorre em termos de uma intromissão científica, radiação atômica ou qualquer outra coisa. Mas sua metáfora central acerca do ‘controle humano contra desordem natural’ não apenas é fundamental para a ficção científica, como historicamente foi um ponto focal do gênero como catalisador de uma série de filmes ‘vingança da natureza’ ao longo das duas décadas seguintes”.
Phil Hardy, em The Encyclopedia of Science Fiction Movies, vai em uma direção semelhante, lembrando que “Ainda que nenhuma explicação, científica ou outra, seja proposta para os ataques dos pássaros”, ele considera o filme FC devido a sua enorme influência em filmes de ficção científica subsequentes, com seu sucesso fazendo com que os filmes de “vingança da natureza” dos anos 1970 também tivessem sucesso, ainda que sempre com qualidade inferior ao filme de Hitchcock.
Tippi Hedren e Rod Taylor, encontrando-se na loja de animais.
Baseado em conto da escritora Daphne du Maurier (no Brasil, publicado no livro Beija-me Outra Vez, Desconhecido), o filme originou inúmeras interpretações, quase sempre envolvendo a tensão sexual entre a personagem central Melanie Daniels e o advogado Mitch Brenner (Rod Taylor) e sua relação com os ataques dos pássaros. E, de fato, os estranhos ataques começam em Bodega Bay após a chegada de Melanie, como se ela estivesse provocando uma alteração na situação calma e estabilizada, ainda que tensa, nas relações locais, especialmente entre Mitch, sua irmã muito mais jovem Cathy (Veronica Cartwright), a ex-namorada Annie Hayworth (Suzanne Pleshette) e sua mãe viúva Lydia (Jessica Tandy), com quem ele mantém uma relação muito próxima.
Veronica Cartwright, Jessica Tandy e Suzanne Pleshette .
Vários momentos do filme foram interpretados pelos críticos como metáforas, como os momentos em que Melanie fica presa em uma cabine telefônica sendo atacada pelos pássaros, e novamente é atacada no sótão da casa. Peter Nicholls disse que sua chegada à cidade aparentemente precipita os ataques dos pássaros e, mais tarde, ela mesma é representada como um pássaro na gaiola. Phil Hardy utiliza as mesmas imagens e frases para dizer que ela literalmente se torna um pássaro na gaiola. Hardy diz ainda que esse é o filme mais sombrio de Hitchcock, mostrando a repentina erupção de emoções nas vidas dos principais personagens, paixões escondidas, proibidas e reprimidas que, até então, eles tinham evitado expressar.
Rod Taylor, tentando chegar ao carro, em meio aos pássaros.
“Certamente”, diz Hardy, “a complexidade técnica dos efeitos especiais do filme” – planejados por Hitchcock e criados por Lawrence A. Hampton e Ub Iwerks, este último um dos primeiros colegas de Walt Disney e co-criador do Mickey Mouse – “em sua perfeição formal, produz uma frieza que é totalmente assustadora. Dessa perspectiva, os pássaros são vistos mais como uma correlação objetiva da arbitrariedade da vida, mantida à distância pelo comportamento civilizado – virtualmente todos os personagens secundários são emocionalmente mortos – até que Hedren, sem mais nem menos, chega a Bodage Bay e inicia a prolongada provocação de Pleshette, Taylor e Tandy que desencadeia o caos de emoções humanas na cidade e uma punição especial a ela mesma com os horríveis ataques pessoais”.
A famosa cena final, com a família abandonando a casa, enquanto os pássaros aguardam.
Em Horrors: A History of Horror Movies (1984), os autores Tom Hutchinson e Roy Pickard dizem que “Antes de 1963, o comportamento irracional e mutação de animais tinha sido atribuídos à bomba, radiação e simplesmente interferência científica”, e Hitchcock mudou isso ao não oferecer qualquer explicação, deixando ao público a tarefa de concluir, ou não, o que estava acontecendo. Segundo os autores, depois da estreia do filme Hitchcock teria dito, delicadamente, que estava interessado em fazer o filme porque era um filme de terror. “O terror vem de uma região diferente, isso é tudo. Não é ficção científica de forma alguma”, teria dito o diretor. Os autores dizem que Evan Hunter, o roteirista do filme, foi mais direto, afirmando que “Nós estávamos tentando assustar muito as pessoas. Ponto”.
Hutchinson e Pickard citam mais uma vez Hitchcock, que disse: “Pássaros dão excelentes vilões. Afinal, eles têm sido colocados em gaiolas, caçados e enfiados em fornos por séculos. É apenas natural que eles devessem se defender. Se alguma vez você comeu uma coxa de peru, engaiolou um canário ou foi caçar patos, Os Pássaros vai lhe dar algo para pensar. Se você é o tipo de pessoa que vai a uma tourada e torce pelo touro, você vai amar Os Pássaros”.
Os dois críticos têm um ponto de vista bem claro sobre o final do filme, um dos mais enigmáticos do gênero, entendendo que é a falha principal da obra. No entanto, ele parece perfeito, dando a entender que nada foi resolvido, e que a ameaça paira no ar – sem trocadilhos – e que os seres humanos ainda podem ser atacados no futuro.
O que é certo é que Os Pássaros abriu o caminho para praticamente todas as produções na linha “vingança da natureza” que inundaram as telas, especialmente a partir dos anos 1970.