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REVENDO SÉRIES: BATTLESTAR GALACTICA

Séries de TV

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data10/05/2022
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Um dos seriados mais comentados da ficção científica, abordando uma variedade imensa de temas.

Outro dia estava procurando alguma coisa para assistir no Prime Video, e vi que a série Battlestar Galactica – a de 2004, não a original de 1978 – estaria disponível apenas até o dia 11 de maio. Resolvi rever, só para ter a certeza de que era tão boa quanto eu achei na época. Começando pela minissérie que iniciou a aventura e seguindo pelas quatro temporadas.
Não me decepcionei e, mais do que isso, reparei em detalhes que já tinha esquecido – isso acontece com quem nasceu na década de 1950.

A frota humana fugitiva, liderada pela Battlestar Galactica (British Sky Broadcasting/ David Eick Productions/ NBC Universal Television/ R&D TV/ Stanford Pictures/ Universal Media Studios).

A série é, frequentemente, apresentada como uma ficção científica militarista, o que certamente está correto. Para quem ainda não conhece a história, ela narra a guerra dos humanos contra os cylons, os robôs construídos pelos próprios humanos, e a quase destruição da humanidade, seguida por uma fuga desesperada dos poucos sobreviventes em busca de um planeta mítico no qual poderiam refazer suas vidas.
Mas existem vários outros aspectos que podem ser observados e que contribuíram para que o seriado fosse considerado entre os melhores de FC em todos os tempos.

                                                                          Edward James Olmos e Mary McDonnell.

Pelo lado técnico, é claro que os efeitos especiais e visuais têm grande importância, com grandes cenas de batalhas espaciais, apresentadas de forma bastante realista, ou pelo menos o suficiente para que o público seja levado para dentro dos eventos. Também no lado técnico, a série traz excelentes interpretações de atores e atrizes. E as dezenas de premiações e indicações a premiações dão um indicativo de como esses aspectos foram bem trabalhados; edição de som, figurinos, roteiros, fotografia e direção são alguns dos trabalhos que também foram lembrados em premiações importantes como o Emmy, o TCA (Television Critics Award), o Wrtiters Guild of America, e os específicos da FC, Hugo, Nebula e Saturn.

Os raiders, naves inteligentes dos cylons.

No entanto, o que mais chamou minha atenção foram os temas desenvolvidos ao longo das temporadas, com o microcosmo formado pelos sobreviventes representando todas as virtudes e mazelas dos humanos e sua sociedade.
Na época, inúmeros críticos e veículos de comunicação importantes levantaram o paralelo entre os temas abordados e eventos recentes ligados à guerra contra o terrorismo, incluindo religiões fundamentalistas, células terroristas adormecidas – como no caso dos cylons com aparência humana e que só tomam conhecimento de não serem humanos quando são despertados, de uma forma um tanto nebulosa, para realizar atos de terrorismo a bordo das naves fugitivas. Até mesmo os ataques suicidas surgem quando os humanos estão sob o comando dos cylons em um planeta que encontram no caminho até a “terra prometida”; só que, dessa vez, os atacantes são os humanos, atando bombas em seus corpos para explodir tanto cylons quanto humanos colaboracionistas.
Os humanos das Doze Colônias de Kobol são, em sua maioria, politeístas, enquanto os cylons que assumiram aparência e comportamentos humanos são monoteístas. Mas mesmo entre os cylons surge uma divisão entre os que têm fé e os ateus, que não aceitam o conceito da existência de um deus, ou de que existe um plano geral para o universo, previamente traçado, o qual até mesmo os cylons devem seguir.

Os pilotos dos vipers da Galactica, esgotados pelas batalhas constantes.

Não consigo me lembrar com detalhes da série original, mas sei que o criador do programa, Glen A. Larson, era membro da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, cujos integrantes são popularmente conhecidos como mórmons, e disse que incorporou alguns elementos de sua crença no panorama geral da série, relacionando o Comandante Adama com Moisés, conduzindo as tribos perdidas em direção à Terra Prometida, e sendo perseguido pelos egípcios, no caso, os cylons.
Mas na nova versão a presença da religião é avassaladora. De fato, ela direciona os principais eventos, tanto pelo lado dos humanos quanto dos cylons. A ideia original do comandante Adama é contra-atacar os cylons, mas a decisão de fugir e procurar a décima terceira colônia é tomada pela nova presidente com base em escrituras sagradas e em informações vagas sobre o caminho a percorrer.
O comandante Adama da nova versão (Edward James Olmos) não é Moisés, e nem teve a intenção de liderar os cerca de 50 mil sobreviventes. Ele apenas queria continuar a guerra, que ele certamente perderia. A presidente Laura Roslin (Mary McDonnell) acaba seguindo pelo lado religioso, acreditando que as escrituras que se referem à existência da décima terceira colônia são verdadeiras, e contêm informações que podem ser interpretadas para conduzir as naves pela galáxia. Parte de suas revelações surge quando ela está tomando um medicamento alternativo poderoso contra câncer e que provocam visões, ou alucinações, dependendo do ponto de vista.

James Callis, como Gaius Baltar, e sua amante cylon Número Seis (Tricia Helfer).

Um dos personagens centrais é o dr. Gaius Baltar (James Callis), um cientista brilhante e responsável pelo sistema de defesa das Doze Colônias de Kobol, mas também se torna o responsável, ainda que sem saber, pelo ataque arrasador dos cylons. A cylon Número Seis infiltra-se da sociedade de Caprica e se torna amante de Baltar, obtendo acesso ao sistema de defesa. Mas como os cylons com forma humana também ganharam os sentimentos humanos, ela se apaixona por ele, e quando Caprica é destruída pelo ataque nuclear dos cylons, ela, de alguma forma, consegue salvar Baltar. Parece quase um milagre.
Já a bordo das naves em fuga, Baltar começa a ter visões de Número Seis, que conversa constantemente com ele, dando conselhos sobre a melhor forma de agir e falando sobre a religião monoteísta que ela segue. Tudo indica que a visão é provocada apenas pela mente atormentada pela culpa de Baltar, ainda que em algum momento seja sugerida a possibilidade de que ela seja uma espécie de anjo.
Os cylons podem renascer, ou seja, quando seus corpos são destruídos, suas consciências são transportadas inteiramente para um novo corpo, mantido em uma nave específica para tal, e renascem com todas suas memórias intactas. É dessa forma que Número Seis pode ressurgir na história e é mantida prisioneira na Galactica. E, mais que isso, em determinado momento ela também começa a ter visões de um anjo/avatar com a aparência de Gaius Baltar, e ambos começam a perceber que suas visões são mais do que alucinações, ainda que apenas eles possam vê-las.

Starbuck, tentando resolver parte do enigma que os levará à Terra, com o comandante Adama, a presidente Roslin e Apollo.

A sensacional personagem Kara “Starbuck” Thrace (Katee Sackhoff) também passa por um momento místico/religioso importante na história. Ela é a mais habilidosa piloto dos vipers, as naves de combate a bordo da Galactica e, aparentemente, ela morre em uma missão. Mas ela retorna um tempo depois, sem saber muito bem o que aconteceu e por que todos achavam que ela estava morta. E retorna dizendo que conseguiu chegar à Terra, o planeta tão procurado pelos humanos.
Quando humanos e cylons conseguem chegar à Terra, percebem que o planeta está completamente destruído, com cadáveres humanos e de robôs, indicando que ali, como na Doze Colônia, ocorreu uma guerra arrasadora entre as duas espécies. Nesse planeta Terra, Starbuck encontra sua nave destroçada, e seu cadáver dentro dela, indicando que ela não é exatamente humana.
Após uma série de eventos catastróficos para ambas as raças, incluindo uma guerra civil entre os cylons, eles chegam a um planeta acessível, no qual já vive uma raça humanoide que eles descobrem ter o mesmo DNA dos humanos, ainda que estejam em um estado primitivo de desenvolvimento e sequer tenham uma linguagem articulada. E resolvem chamar esse planeta de Terra, em homenagem à Terra original que encontraram devastada.
Em algum momento após sua chegada ao novo planeta, os personagens se perguntam qual seria a probabilidade de que duas raças idênticas se desenvolvessem em pontos tão distantes da galáxia, ao que os anjos/avatares respondem com sarcasmo: “Sim. Qual seria a coincidência?”

A primeira Terra, destruída.

Os humanos resolvem se estabelecer no planeta, desistir de sua tecnologia e recomeçar suas vidas, inclusive com uma criança que é meio cylon, meio humana. E nessa nova Terra, Starbuck também fala suas últimas palavras ao seu amigo, o comandante Lee “Apollo” Adama (Jamie Bamber), antes de desaparecer no ar, provavelmente como um anjo ou avatar enviado para ajudar os humanos a encontrarem um novo lar.
Nas cenas finais, 150 mil anos se passaram, e os anjos Número Seis e Baltar andam pela moderna cidade de Nova York, observando como a tecnologia evoluiu na sociedade, com o surgimento dos primeiros robôs, e comentando como a história se repete.
Em determinado momento, Baltar faz um comentário a respeito da vontade de Deus, ao que Número Seis responde dizendo: “Você sabe que ele não gosta de ser chamado assim”. Uma indicação clara de que existe uma inteligência, ou um poder, uma força, agindo no universo e direcionando os eventos, como direcionou humanos e cylons.
Com esse final, Battlestar Galactica também se apresenta como uma história semelhante ao conceito de que, em tempos passados, seres extraterrestres chegaram à Terra e influenciaram diretamente o desenvolvimento de várias culturas humanas.

A partir da esquerda: James Callis, Tricia Helfer, Michael Hogan, Mary McDonnell, Edward James Olmos, Jamie Bamber, Aaron Douglas, Grace Park e Katee Sackhoff.

Ao contrário da série original, no geral, a nova versão foi muito bem recebida pela crítica, e não é para menos. As personagens são excelentes; ninguém é totalmente bom ou totalmente mau. As pessoas têm falhas e virtudes como todo mundo, e nos momentos de tensão essas características surgem com mais nitidez. São personagens atormentados pelas perdas pessoais e pela incalculável perda coletiva. Sem falar no peso que carregam como os últimos sobreviventes de toda a raça e a necessidade de dar continuidade à humanidade.
No entanto, nada disso impede que os ódios, os preconceitos, o desejo de poder e as mentiras tenham sido deixados para trás. E, como sempre acontece com os humanos, essas falhas de caráter, de personalidade ou apenas de interpretação incorreta dos fatos, leva a confrontos internos que podem conduzir a raça a destruir a si mesma. E o mesmo ocorre com os cylons, cada vez mais semelhantes aos humanos, a ponto de terem preconceito contra os cylons que não têm forma humana.
Pelo lado negativo, as críticas mais mordazes quase sempre citam a morte e ressurreição de Starbuck, e o fato de o final ser uma espécie de “deus ex machina”, simplesmente introduzindo a ideia de que um ser superior interferiu e direcionou toda a história. Um dos críticos mais severos à forma como o final foi elaborado foi o escritor George R.R. Martin, comentando que um final do tipo “Foi Deus quem fez isso” é um final “de merda”. E isso de alguém que não conseguiu terminar sua saga As Crônicas de Gelo e Fogo.
Não dá para dizer que a série é perfeita, e muita gente certamente preferia um final diferente, mas parece que todos os eventos até então indicavam a atuação de uma força maior guiando os eventos, e esse aspecto religioso/místico é essencial na trama.
E o fato é que funciona. Será interessante se o Prime Video voltar a disponibilizar a série.