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Depois do Fim do Mundo

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data20/04/2010
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A Estrada e O Livro de Eli apresentam visões diferentes para o fim do mundo

Depois do Fim do Mundo

A Estrada e O Livro de Eli

De tempos em tempos, por razões nunca bem explicadas, alguns filmes começam a abordar temas semelhantes, e a bola da vez, parece, é o fim do mundo. De novo.
No ano passado fomos inundados com as baboseiras apocalípticas de 2012, o horrendo filme de Roland Emmerich. Este ano, as coisas estão um pouco melhores. Por enquanto.
Dois filmes chegaram recentemente ao Brasil: O Livro de Eli (Columbia/ Sony), que estreou em março; e A Estrada (Paris Filmes), em abril. Mas não se preocupem, porque nenhum dos dois mostra as ondas e terremotos avassaladores de 2012, mesmo porque focam sua atenção no período posterior à desgraça que se abateu sobre o planeta.
Trata-se de um tema frequente na literatura de ficção científica, e que já originou alguns bons e outros ótimos livros, como é o caso de Um Cântico Para Leibowitz (de Walter M. Miller Jr.), Eu Sou a Lenda (de Richard Matheson), Heróis e Bandidos (de Angela Carter), Memórias de Um Sobrevivente (de Doris Lessing), Oryx e Crake (de Margaret Atwood), O Palácio dos Pervertidos (de Tim Powers), e vamos ficar por aqui, pois a lista é grande.
No caso das duas estreias, apesar de alguns pontos em comum, os filmes são completamente diferentes. A começar pelos custos e expectativas. A Estrada custou quatro vezes menos do que O Livro de Eli, que traz o superastro Denzel Washington no papel principal. Na semana de estreia, Eli ficou em segundo lugar, atrás apenas de Avatar. Era para ser um blockbuster e, se não foi, chegou perto.
A Estrada é baseado no livro de Cormac McCarthy, um dos melhores escritores norte-americanos da atualidade. O livro é também um dos grandes momentos do gênero, ganhador do Prêmio Pulitzer de 2007. Não era para ser blockbuster, mesmo porque a história não se presta a isso. Traz Viggo Mortensen numa atuação soberba, assim como Kodi Smit-McPhee, o jovem que interpreta seu filho. Charlize Theron interpreta a mãe.
Os heróis dos dois filmes perambulam por um mundo destruído e, se é possível dizer isso, o mundo de A Estrada está "mais destruído" do que o de Eli, no qual ainda se mantêm grupos mais ou menos organizados, o que favorece a construção do ambiente de "faroeste no futuro", comum a muitos filmes da ficção científica dos anos 1980, quase sempre inferiores a este.
Não quer dizer que O Livro de Eli seja um grande filme. Não é. O personagem Eli é praticamente um evangelizador, levando a palavra de Cristo a um mundo arrebentado e cuja reorganização é complicada pela atuação de uma "gangue do mal", liderada por Gary Oldman, sempre à vontade nos papéis de vilão.
A cidade que Oldman controla é, sem tirar nem pôr, uma recriação das cidades dos filmes de faroeste controladas por sujeitos malvados, à qual chega "o estranho". A dicotomia se instala com facilidade. Eli representa as possibilidades, a transformação, aprendendo com os erros do passado, mas ainda assim mantendo uma postura que lembra o antigo mundo destruído. Numa passagem do filme, o próprio Eli dá a entender que o fim do mundo "pode" ter sido causado pela religião. Do outro lado, Carnegie, o personagem de Oldman, que fazer tudo de novo, seguindo o mesmo caminho que levou o mundo à guerra e ao estado em que se encontra. Eli carrega a esperança num livro e num modo de viver, de encarar as coisas e os relacionamentos. Mas seus métodos são os mesmos do mundo antigo.
Em A Estrada, a situação é outra. Os personagens sequer têm nomes; perderam até a identidade, num mundo em que quase não se vêem pessoas, e a maioria dos poucos sobreviventes de uma catástrofe não explicada transformaram-se em canibais devido à falta de alimento.
Mortensen, o pai, carrega a esperança, não de transformações ou reconstrução, mas apenas de continuidade, da melhor forma possível. E não se trata da esperança para a humanidade, mas apenas para seu filho. Ele mesmo se exclui do futuro, sabendo que não fará parte dele. Não acredita em mais nada para si, mas mantém viva a esperança de que possa ser diferente para seu filho. É por isso que repete para o menino que ele deve continuar a carregar a chama dentro de si. Devem continuar a procurar "os caras do bem", como eles. Não basta sobreviver; é preciso continuar vivo e, ao mesmo tempo, ser um "cara do bem", carregar a chama dentro de si, caso contrário a sobrevivência nada significa.
Não parece exagero dizer que O Livro de Eli é um filme cristão, porque tudo gira em torno da Bíblia. Eli vive lendo o livro, citando passagens, e a ideia que permanece é a de que o ponto fundamental do "renascimento" da civilização é a recriação da religião, praticamente queimada durante a destruição do mundo. Mas não uma religião qualquer; tem de ser a cristã, a mesma que, segundo se diz, foi parte fundamental da destruição.
A fé de Eli é externa, centrada num Deus que poderá trazer algo de bom aos seres humanos, apesar do que aconteceu.
A fé do pai em A Estrada é interna; é a crença de que as pessoas boas ainda existem, mesmo que o mundo não exista mais. Seu deus é outro. Numa passagem do filme, ele diz que seu deus é seu filho, o que restou de humanidade e inocência numa sociedade que está se autodevorando.

A ESTRADA (The Road)
2009/ EUA (Dimension Films/ 2929 Prod./Chockstone Pic./Road Rebel)
Direção: John Hillcoat
Produção: Paula Mae Schwartz/ Steve Schwartz/ Nick Wechsler
Roteiro: Joe Penhall (do livro de Cormac McCarthy)
Fotografia: Javier Aguirresarobe
Efeitos visuais: Crazy Horse Effects/ DIVE/ Invisible Pictures/ Space Monkey/ The Layersmith Digital
Música: Nick Cave/ Warren Ellis
Com Viggo Mortensen, Kodi Smit-McPhee, Robert Duvall, Guy Pearce, Charlize Theron, Molly Parker.
111m/cor
PARIS FILMES


O LIVRO DE ELI (The Book of Eli)
2010/ EUA (Alcon Entert./ Silver Pictures)
Direção: The Hughes Brothers (Albert e Allen Hughes)
Produção: Joel Silver/ David Valdes/ Denzel Washington/ Broderick Johnson/ Andrew A. Kosove
Roteiro: Gary Whitta
Fotografia: Don Burgess
Efeitos visuais: Hammerhead Prod./ Hatch Prod./ Hydralux/ Lidar Guys/ Lola Visual Effects/ Luma Pic./ Soho VFX
Música: Aticus Ross/ Leopold Ross/ Claudia Sarne
Com Denzel Washington, Gary Oldman, Mila Kunis, Ray Stevenson, Jennifer Beals, Evan Jones.
118m/ cor
SONY PICTURES