Matrix e o Mundo de Verdade
Estreando em 1999, Matrix foi considerado um dos filmes mais importantes da nova geração da ficção científica, apresentando uma série de referências religiosas, místicas e esotéricas.
Gilberto Schoereder
Gurdjieff disse que a maioria da população do mundo estava dormindo, de modo que não poderia perceber o que ocorria à sua volta. Essa noção surge em muitas histórias sensacionais de ficção científica – especialmente as de Philip K. Dick – e, no cinema, foi apresentada de forma particularmente bem elaborada em Matrix, filme dirigido pelos irmãos Larry e Andy Wachowski. No ambiente de pesadelo imaginado pelos criadores, a população humana da Terra está literalmente dormindo.
Para quem ainda não conhece o filme, a história segue as aventuras de um grupo de revolucionários que tenta libertar a Terra do domínio das máquinas. Quando a IA (Inteligência Artificial) foi criada pelos humanos, ela se desenvolveu a tal ponto que passou a controlar os seres biológicos, chegando a mantê-los em estado de sono constante, dentro de casulos, para se utilizar de sua energia vital. Para mantê-los vivos, criou para eles um ambiente de realidade virtual, a Matrix (ou matriz), que é apresentada como essa vida que vivemos atualmente, ou seja, tudo o que vivemos é uma mentira introduzida em nossas mentes pelos programas desenvolvidos pelas máquinas inteligentes. Um pequeno grupo despertou de seus casulos e, por meio de seus próprios programas de computador, consegue se introduzir no mundo virtual, tentando despertar outras pessoas. Um dos que devem ser despertados é Neo (Keanu Reeves), considerado aquele que deverá ser capaz de enfrentar e destruir a Matrix.
Um dos pontos mais interessantes do universo de Matrix é, sem dúvida, a grande quantidade e a complexidade de referências religiosas, místicas e esotéricas que podem ser encontradas ao longo da história, a começar pelo nome do personagem Neo, que posteriormente fica sendo conhecido como One; o "novo homem" (neo) e "o escolhido", numa clara alusão à figura do messias que está presente, de formas variadas, em inúmeras religiões do planeta.
Morfeu (Laurence Fishburne) é o líder da revolução, tentando acordar os humanos para a realidade. O nome vem da antiga Grécia, quando Morfeu era o deus dos sonhos; não apenas fornecia os sonhos às pessoas, mas aparecia neles em forma humana. Ele surge no "mundo real" – que, na verdade, é o sonho constante em que vivemos – para tentar despertar-nos para a realidade. A nave utilizada por Morfeu para circular pelos subterrâneos inundados do mundo real chama-se Nabucodonosor, uma referência bíblica ao rei da Babilônia, que teve um sonho interpretado por Daniel.
Trindade
A primeira relação entre o mundo de verdade e o mundo virtual de Neo é feita por Trinity (Carrie-Anne Moss), a Trindade, por seu computador, uma vez que Neo é um hacker famoso. A mensagem que ele recebe na tela de seu computador diz apenas: "Acorde, Neo". É a primeira referência clara, no filme, ao fato de que ele, como os demais habitantes do planeta, está dormindo, incapaz de perceber a realidade.
Em seguida, a mensagem no computador diz para ele seguir o "coelho branco", que surge na figura de uma amiga com uma tatuagem de um coelho no ombro, levando-o até uma boate onde Trinity vai fazer contato com ele. Essa é a primeira referência à obra de Lewis Carroll, Aventuras de Alice no País das Maravilhas (Alice’s Adventures in Wonderland, 1865), ainda que Neo vá fazer uma viagem oposta à da famosa personagem, saindo do mundo do sonho e entrando na realidade.
No apartamento de Neo também surge outra referência ao que está ocorrendo na história, quando ele guarda seu dinheiro dentro de um livro chamado Simulacra & Simulation (simulacro e simulação). Pode ser apenas uma dica de que ele vive num mundo falso (simulacro representa "aparência, imitação, aspecto exterior e enganador, visão sem realidade, espectro, fantasma"), ou uma referência a Philip K. Dick, que utiliza o conceito de simulacros em vários de seus livros, inclusive em Blade Runner e no livro O Tempo dos Simulacros (The Simulacra, 1964).
Quando Trinity conversa com Neo, refere-se à pergunta que impulsiona a todos: o que é a Matrix? O que é uma procura de todas as religiões e filosofias, expressa não exatamente nessa pergunta, mas numa série de questionamentos, tais como: quem somos?; de onde viemos?; para onde vamos?; Deus existe?; o que é a realidade?; para onde vamos depois da morte?
E, como ocorre com as pessoas que perseguem uma verdade para suas vidas, Neo se vê diante de uma série de escolhas. Primeiro, seguir ou não o "coelho". Depois, quando é avisado de que deve fugir para não ser preso pelos agentes da Matrix, tem a opção de enfrentar uma escapada perigosa ou ser apanhado. Mais tarde, quando finalmente se encontra com Morfeu, este lhe oferece a escolha final: escolher entre tomar a pílula vermelha – que o levará definitivamente ao mundo real – ou a pílula azul, que o manterá "dormindo" no mundo virtual, junto com os milhões de habitantes do planeta. Essa é a segunda referência a Lewis Carroll e as aventuras de Alice que, no livro citado, come um pedaço de bolo para ficar pequena ou grande.
Escravos
Morfeu diz a Neo que a Matrix está em toda parte – como Deus está. É um mundo que foi criado para que não víssemos a verdade. E a verdade, ele continua, é que somos escravos. "Como todo mundo, você nasceu numa prisão que você não consegue cheirar, sentir ou tocar. Uma prisão para sua mente".
Encontramos uma série de referências a pensamentos religiosos, e eles formam o centro da história. Podemos lembrar da concepção indiana do "véu de Maya", que encobre a realidade e não nos permite acessar plenamente as informações a respeito do mundo. Igualmente, podemos falar nas cidades espirituais citadas no Espiritismo, às quais algumas pessoas conseguem ter acesso como se, por alguns instantes, saíssem dessa realidade que foi "construída" para nós. É o mundo além do mundo, para o qual a maioria da população espera ir após a morte; ou aquela que visitamos nos sonhos e nas chamadas projeções astrais; e mesmo nas viagens de drogas – e a pílula que Neo toma também pode ser considerada por esse ponto de vista –, nas meditações e tantas outras técnicas desenvolvidas e utilizadas com o objetivo de transcender a "materialidade" deste mundo, para ultrapassar a barreira que, supostamente, nos impede de ver o que se encontra além das aparências.
Não é uma noção recente, e já foi utilizada anteriormente na ficção científica. Talvez a maior referência nesse sentido seja, mais uma vez, o escritor Philip K. Dick, especialmente com seus livros O Mistério de Valis (Valis, 1981) e A Invasão Divina (The Divine Invasion, 1981), além do livro que escreveu em colaboração com Roger Zelazny, O Deus da Fúria (Deus Irae, 1876). Neles, Dick propõe que o mundo não foi elaborado por Deus, mas por seu rival, e que Deus está tentando "entrar" no mundo de todas as maneiras, para nos salvar.
Os gnósticos – cuja religião começou a se desenvolver especialmente na Alexandria, a partir do século 3 a.C. – também faziam referência à construção do mundo que, segundo diziam, não seria obra de Deus, mas do Demiurgo. Portanto, estaríamos equivocados tanto no que diz respeito à autoria de nossas existências quanto ao objetivo delas. Philip K. Dick conhecia esse ponto de vista e, sem dúvida, adaptou-o às suas histórias, e os criadores de Matrix certamente também conheciam essas ideias.
Do Outro Lado do Espelho
Na "passagem" de Neo para o mundo real, surge outra referência a Lewis Carroll, dessa vez do livro Do Outro Lado do Espelho (Through the Looking Glass and What Alice Found There, 1871). Depois de tomar a pílula, olha para o espelho e percebe que ele está se liquefazendo; depois, invade e toma conta de seu corpo. Ele toca no espelho e o "atravessa" rumo ao mundo real. Seu despertar é dentro da água, no casulo onde seu corpo era mantido.
A situação de Neo é semelhante à das revelações dos profetas bíblicos, algumas das quais relatadas nos chamados textos apócrifos; ele se vê literalmente levado a outro mundo, vendo coisas "impossíveis", como se fossem visões. A analogia de Neo como o "novo homem" fica ainda mais clara quando ele renasce para o mundo real, até mesmo rompendo seu "cordão umbilical" que, no caso, eram as ligações existentes em seu corpo com as máquinas que usavam sua energia vital.
Já a bordo da Nabucodonosor, Neo começa seu treinamento para poder interagir com o mundo criado pela Matrix. É uma referência às iniciações pelas quais passam os "escolhidos" em diversas religiões, geralmente com o auxílio de um mestre ou guru. Nesse caso, é o próprio Morfeu que quer ensiná-lo a "libertar sua mente" e ver o mundo como ele é, ou seja, como ilusão. Dessa forma, ele poderá não apenas interagir com o ambiente, mas alterá-lo, atuar de forma a ultrapassar as leis da física que supostamente regem o mundo virtual.
As cenas de luta e de ação ficaram famosas pelas técnicas utilizadas, mas elas podem ser entendidas como algo mais do que isso. Ao reconhecer que o mundo é ilusão, que a mente pode tudo, Neo pode agir como, por exemplo, os homens santos da Índia, dos quais se diz que podiam se deslocar de um local a outro instantaneamente (teleporte), ou que não sentiam o frio, mesmo nos locais mais gélidos do Himalaia. Também são referência as histórias dos santos da Igreja Católica, capazes de levitar e realizar outros milagres. É como se as leis conhecidas da física não tivessem efeito sobre essas pessoas, uma vez que elas são capazes de ir além da aparência do mundo.
Para chegar a esse ponto, é preciso se livrar do medo, das dúvidas, da descrença. Estamos, portanto, falando de algo que, se não é, está muito próximo da fé. Enquanto Neo não acredita que ele é o "escolhido", ele não consegue realizar sua tarefa de forma adequada.
Jardim do Éden
Até Judas está representado no filme, no personagem Cypher (Joe Pantoliano). Ele entrega Morfeu e seus amigos ao agente Smith (Hugo Weaving), a serviço da Matrix, e não o faz por 40 dinheiros, mas pela possibilidade de ser reintegrado ao mundo falso, de receber de volta uma vida de ilusão que ele entende ser melhor do que a realidade que está vivendo; segundo ele, o mundo virtual é mais material do que a realidade.
Com Morfeu preso, o agente Smith lhe diz que a primeira vez em que a Matrix foi programada, ela criou um mundo que deveria ser perfeito, em que seriam ser felizes. O mundo virtual foi desenhado para ser o mundo humano perfeito, no qual ninguém sofreria. Mas, continua o agente Smith, foi um desastre, uma vez que os humanos não aceitaram o programa, de modo que ele teve de ser redesenhado, e o resultado foi o mundo cheio de problemas e sofrimentos que conhecemos.
É uma referência bem clara ao Jardim do Éden, ao Paraíso, um local do qual a humanidade guarda uma memória ancestral. O conhecimento do Bem e do Mal levou à expulsão do Paraíso. O conhecimento do que é a Matrix leva à exclusão do mundo criado por ela, o paraíso artificial. De certa forma, a pessoa é levada para o inferno em que se transformou a Terra dominada pelas máquinas.
A questão do conhecimento pode ser importante e pode ser outra referência aos livros de Philip K. Dick. Em O Deus da Fúria, ele levanta a possibilidade de que a frase de Jesus Cristo na cruz, "Perdoai-os, Pai, eles não sabem o que fazem", seria uma referência ao não-conhecimento, ou seja, ao fato de que os habitantes da Terra não sabiam que o planeta estava dominado pelo Mal. Da mesma forma, os habitantes do mundo não têm o conhecimento de que o mundo em que vivem é uma ilusão criada pelo Mal, as máquinas. Cabe ao enviado, ao escolhido, fazer com que elas percebam a realidade.
O agente Smith mata Neo, mas ele volta a viver, em outra referência a Jesus Cristo e à ressurreição. Ao renascer, Neo passa a ver a Matrix em todos os seus componentes, em todos seus detalhes, e realmente consegue controlar os acontecimentos e alterar essa realidade. Ele se transforma no salvador e está pronto para levar sua mensagem para o resto do mundo.