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OS BONS MUTANTES

ESPECIAIS/VE CORPOS ALTERADOS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data22/03/2021
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Em meio a várias histórias com abordagens desfavoráveis aos mutantes, muitas seguiram na direção oposta.

Ilustração de Bruce Pennington.

Como lembrou Brian Stableford, e já mencionamos na primeira matéria, “A explosão da bomba atômica em 1945 foi um grande estimulo aos temas mutacionais na ficção científica, ainda que suas mais loucas extravagâncias tenham começado a desaparecer, pelo menos na ficção científica escrita”. Essas extravagâncias ficaram para o cinema do gênero, e “A visão antiga do romance mutacional, apresentando metamorfoses monstruosas, tornou-se a base para uma abundância de filmes de fc nos anos 1950. A irradiação de várias criaturas as expandiu para proporções gigantescas, e a inundação só parou porque o suprimento de possíveis candidatos era limitado”.
Como também já indicamos na primeira matéria, vários desses filmes podem ser vistos na matéria Gigantes Atômicos e Outros Monstros.

O Incrível Homem Que Encolheu (Universal).

E nessa enxurrada de filmes – alguns péssimos, outros muito bons – destaca-se certamente um em que a irradiação atômica teve o efeito contrário, diminuindo ao invés de aumentar. O Incrível Homem que Encolheu (The Incredible Shrinking Man, 1957), dirigido por Jack Arnold, tornou-se um dos clássicos do gênero.
Quando o filme foi lançado, Jack Arnold já era visto como um dos principais diretores do gênero em sua época devido aos seus filmes Veio do Espaço (It Came From Outer Space, 1953/ link sem más intenções) e O Monstro da Lagoa Negra (The Creature From the Black Lagoon, 1954).
Contando com efeitos especiais baratos, mas extremamente criativos, ele conseguiu dar um banho no especialista em seres diminutos ou gigantescos da época, o diretor Bert I. Gordon. Uma das razões, além do fato de Jack Arnold ser um diretor mais competente, mais hábil e com melhor domínio das técnicas narrativas, foi que Arnold contou com a história e roteiro de Richard Matheson, um dos grandes escritores de ficção científica, fantasia e terror, e roteirista frequente da série Além da Imaginação (The Twilight Zone).
Claro que, para quem está acostumado com os efeitos visuais atuais, os efeitos do filme de Arnold – dirigidos por Clifford Stine, um dos fotógrafos de Spartacus – podem parecer modestos. Na verdade, grande parte das imagens de diminuição do personagem central foi obtida com a utilização de móveis gigantescos. Ainda assim, o resultado é excelente, e apesar de os efeitos serem fundamentais para o sucesso do filme, Arnold jamais se deixou levar pelo aspecto visual, compondo o filme em torno da narrativa de Matheson, mostrando a crescente desorientação e terror do personagem.
O crítico Phil Hardy também destaca o aspecto narrativo do filme. “Um dos grandes filmes de ansiedade dos anos 1950”, ele diz, “O Incrível Homem que Encolheu é muito mais do que uma coleção de efeitos especiais excelentes. O roteiro de Matheson capta perfeitamente a paranoia desenfreada na América da Guerra Fria com a vida do herói, seu casamento e esperanças literalmente desmoronam à sua volta enquanto ele encolhe até o esquecimento”.
Baird Searles, em seu Films of Science Fiction and Fantasy, também comentou o aspecto dos efeitos especiais. “Um filme que começou como mais um construído em torno dos efeitos especiais”, ele diz, “O Incrível Homem que Encolheu tornou-se algo mais nas mãos do escritor Richard Matheson”.
Peter Nicholls e John Brosnan escreveram que o filme é um dos poucos verdadeiros clássicos dos anos 1950, com o roteiro maduro de Matheson sendo inteligentemente tratado por Arnold; e os efeitos especiais de Clifford Stine são “um paradigma de como essas coisas devem ser feitas”.
O filme é baseado no livro de Matheson, O Incrível Homem que Encolheu (The Shrinking Man, 1956. Editora Novo Século, 2010), cujos direitos ele só concordou em negociar com a condição de escrever o roteiro e evitar o ocorrido com seu livro Eu Sou a Lenda (I Am Legend, 1954), filmado em 1964 em produção ítalo-americana com o título O Último Homem Sobre a Terra (L’Ultimo Uomo Della Terra); Matheson havia escrito um roteiro em 1957 para a famosa produtora inglesa Hammer, mas o filme não foi realizado e o roteiro finalmente foi mutilado para a produção de 1964.
Aqui, Phil Hardy diz que Matheson e o diretor Arnold “articulam brilhantemente a transformação do familiar em malévolo”.
Grant Williams interpreta Scott Carey, um homem que é atingido por uma nuvem radioativa enquanto descansava com a esposa num barco. Por alguma razão, somente ele é afetado, e o efeito é devastador: ele começa a diminuir, literalmente. Sua vida vai sendo destroçada aos poucos, a começar por seu relacionamento com a esposa, quando ele percebe que não existe cura para seu mal.
Ele resolve escrever um diário sobre o pesadelo que está enfrentando e chega a imaginar que pode ganhar uma fortuna com a publicação de sua experiência única. Mas a verdade é que vive em uma mistura de incredulidade e amargura que aumentam na proporção inversa em que seu corpo diminui.
A parte final do filme é uma aventura excelente, com Carey descobrindo como sobreviver em um mundo totalmente novo. Ele é deixado sozinho na casa quando a esposa vai embora, imaginando que ele foi comido pelo gato. Ele cai no porão e, impossibilitado de subir as escadas, passa a enfrentar as dificuldades daquele universo anteriormente tão familiar, a maior delas uma aranha com três vezes o seu tamanho.
Mais do que a ação muito bem planejada dessa parte final, o interessante é que nessa dificuldade é que o personagem se reencontra, redescobrindo sua força e sua humanidade, percebendo que ainda tem e sempre terá uma função no universo.
Quando sua diminuição atinge o ponto em que o permite passar através das grades que separam o porão do jardim, ele já está transformado, não é mais uma criatura constantemente ameaçada, cínica e egoísta, mas alguém que vê à sua frente um universo de possibilidades infinitas, repleto de novas descobertas e experiências.
De uma forma geral, o filme de Arnold é incluído em uma série de produções da época que tem como base a energia nuclear, mas certamente ele se sobressai em seu questionamento de como o progresso pode afetar a humanidade, especialmente devido ao texto impecável de Matheson. Carey é apresentado como vítima, envolvido em uma situação que “alguém” criou. É um homem absolutamente comum e, como tal, pode sofrer quaisquer danos e entrar para as estatísticas.
Ele se torna importante quando, ao mesmo tempo em que perde o pequeno porém seguro controle que possuía sobre seu mundo, passa a criticá-lo e lutar para reaver o controle, repensando sua vida e seu relacionamento com o universo, percebendo que a vida e a inteligência não cessam, não importando o tamanho que ele tenha. O final, segundo Richard Matheson, representa uma continuidade entre o micro e o macroscópico, com a selva em que se transformou a grama do jardim dando lugar às estrelas e galáxias.
Uma beleza de filme, que sobrevive e mantém sua força original, apesar do tempo. Phil Hardy diz que a força do filme está no fato de que, ao contrário de outros filmes de miniaturizações, ele não é meramente uma história de aventura exótica, mas além disso, ele nos força a ver a vida da perspectiva do personagem central.
O livro foi escrito seguindo uma estrutura diferente, não linear, e apesar de o filme ter se tornado mais conhecido, também é reverenciado por alguns críticos como uma das grandes obras de Richard Matheson. O editor e crítico David Pringle, por exemplo, incluiu o livro em seu Modern Fantasy: The 100 Best Novels (1988). Segundo ele, devemos esquecer a nuvem radioativa que coloca o herói em seu curso inexorável de diminuição; “(...) não é nada além de um pretexto sci-fi superficial para aquilo que é fundamentalmente uma poderosa fantasia psicológica. Apreciem os detalhes domésticos fiéis que se seguem, enquanto o protagonista descobre que ele não é mais um homem para sua esposa e, eventualmente, torna-se um inseto que corre debaixo de seus pés”.
Enquanto diminui cada vez mais de tamanho, a esposa de Scott Carey se torna uma figura materna. “No entanto”, diz Pringle, “Carey não perdeu seus desejos sexuais adultos”, mas sua esposa rejeita suas tentativas de fazer sexo. “Eventualmente, ele é tão minúsculo que é capaz de escalar uma teia de aranha e mais uma vez escapar para grande ar livre. Lá ele encontra um sentido de paz entre as estrelas: ele aprende a aceitar seu destino, enquanto diminui para o interior de novos mundos de encantamento e possibilidades”.

Abaixo: Capa de Mitchell Hooks (Gold Medal Books/ Fawcett Publications, 1956); capa de Dean Morrissey (Nelson Doubleday/ SFBC, 1988); capa de Donato Giancola (Tor, 2001).

Capa de William Timmins ilustrando a história The Mule, de Isaac Asimov (1945).

As histórias apresentando abordagens favoráveis aos mutantes não aconteceram apenas com Slan, comentado na matéria anterior. Brian Stableford e David Langford citam também como exemplos as histórias Universe (1941), de Robert A. Heinlein, publicada na revista Astounding Science Fiction, e Fundação e Império (Foundation and Empire, 1945-1952), de Isaac Asimov, parte da famosa trilogia Fundação na qual aparece o mutante O Mulo. O conto de Heinlein tem como ingrediente principal a chamada “nave geracional”, mas apresenta um mutante com duas cabeças que é personagem central na trama.
O mutante de Fundação e Império, capaz de controlar a mente das pessoas, não tem exatamente uma abordagem favorável; na verdade, ele é o vilão. Mas Stableford diz que “(...) no fim das contas, ele é apresentado como uma figura de considerável emoção”.
Depois de Slan, A.E. van Vogt retornaria ao tema dos mutantes em alguns de seus livros, ainda que em histórias de menor importância. Foi assim com Império do Átomo (Empire of the Atom, 1956), outro livro formado a partir de várias histórias originalmente publicadas na revista Astounding Science Fiction entre maio de 1946 e dezembro de 1947, como parte do ciclo que foi chamado “Clane” (com as histórias: A Son Is Born; Child of the Gods; Hand of the Gods; Home of the Gods; The Barbarian). O nome da série vem do personagem central, Clane, que nasce de uma família nobre como um mutante, uma vez que sua mãe foi exposta à radiação. Ao contrário de outros bebês nascidos mutantes, ele é mantido vivo como parte de uma experiência conduzida pelos “sacerdotes do átomo”, que atuam nos templos do Deus Átomo. Clane cresce para tornar-se uma espécie de herói, com suas aventuras tendo prosseguimento na história The Wizard of Linn, originalmente publicada em três partes, em 1950, na revista Astounding Science Fiction (e em livro, em 1962).

Abaixo: Capa de Ray Feibush (New English Library, 1975); capa de Jack Faragasso (Macfadden Books, 1966); capa de Bruce Pennington (Manor Books, 1976); capa de William Timmins ilustrando a história Home of the Gods (1947).

Capa de Gray Morrow ilustrando as histórias The Silkie (1964) e Silkies in Space (1966).

Em Os Super-Homens (The Silkie, 1969), mais uma vez os mutantes têm parte na ação. O livro também foi composto por várias histórias, a primeira publicada originalmente como uma noveleta na revista If (1964); a segunda, Silkies in Space, na mesma revista, em 1966; a terceira, Enemy of the Silkies, na mesma revista, em 1967. E, em A Batalha da Eternidade (The Battle of Forever, 1971), mutantes de várias espécies surgem em um ambiente futuro. John Clute disse que o livro foi, talvez, o esforço mais sustentado de van Vogt em sua chamada “segunda onda” de livros, apresentando um humano melhorado que deixa a fortaleza na qual sua espécie vivia em reclusão por imenso período de tempo, iniciando uma odisseia através de um mundo e uma galáxia decadente, batalhando contra alienígenas e, eventualmente, ganhando a estatura de um super-homem. “Comparado aos fixups da década anterior, a história tem bom ritmo e emocionalmente coerente, ainda que o fluxo onírico de eventos e imagens estimulantes é prejudicado por um sentido de autoconsciência”.

Abaixo: Capa de Jack Gaughan (Ace Books, 1969); capa de Wayne Barlowe (DAW Books, 1982); capa de John Schoenherr (Ace Books, 1971); capa de Bruce Pennington (New English Library, 1973).

 

Brian Stableford e David Langford também ressaltam o fato de que os mutantes eram utilizados como metáfora. “Frequentemente”, eles dizem, “populações de mutantes perseguidos foram usados como uma metáfora para minorias oprimidas na vida real. A explosão da bomba atômica em 1945 deu um grande estímulo ao romance mutacional e, ainda que as variáveis mais extremas do conceito tornaram-se mais escassas na ficção científica escrita, a logicamente absurda noção de grupos de mutantes semelhantes surgindo simultaneamente como resultado de acidentes nucleares continuou sendo um lugar comum. Histórias pós-apocalípticas frequentemente apresentam várias subespécies de mutantes, e com frequência mostram os sobreviventes ‘normais’ da guerra atômica perseguindo os mutantes”.

Capa sem crédito ao artista (Panther, 1964).

Eles citam alguns exemplos de histórias semelhantes, como é o caso de Fugindo do Caos (Twilight World, 1961), de Poul Anderson, que surgiu de histórias publicadas originalmente em 1947 na revista Astounding Science Fiction; a primeira história, Tomorrow’s Children, foi escrita em parceria com F.N. Waldrop; a segunda foi Chain of Logic; e para o livro publicado em 1961, foram acrescentados Children of Fortune e Epilogue. A primeira história, Tomorrow’s Children, apresenta um mundo arrasado pela guerra nuclear e repleto de mutantes, humanos e animais, com 75% dos nascimentos sendo de mutantes, dos quais a maioria não apenas sobrevive, mas é capaz de se reproduzir. Alguns cientistas tomam a decisão de rastrear e esterilizar as mutações e seus pais, entendendo que assim irão frear as mutações e preservar o estoque genético dos humanos não afetados. No entanto, a tarefa é abandonada quando percebem que de nada irá adiantar, uma vez que a radiação irá permanecer por mais 150 anos e, no futuro, os humanos “normais” serão a minoria.
Também são citados como exemplos de minorias perseguidas as que surgem nos livros As Crisálidas (The Chrysalids, 1955. Também publicado com o título Os Mutantes. Ver também a matéria Religião e Controle), de John Wyndham.

                                                                             Capa de Peter Elson (Orbit, 1993).

E o clássico Um Cântico para Leibowitz (A Canticle for Leibowitz, 1959. Ver também aqui, e na matéria Novas Religiões), de Walter M. Miller Jr. Em seu livro A Verdadeira História da Ficção Científica, Adam Roberts diz que o livro de Miller Jr. “(...) também se apoia em inúmeros aspectos mágicos dos acontecimentos”, entre eles o surgimento de um mutante: “Quando as bombas caem pela segunda vez, um mutante, que cresce como uma cabeça no ombro de uma mulher, parece ganhar vida. O elemento mágico não é meramente jogado no livro pela afinidade ao bizarro; funciona antes como um endosso do sobrenatural, da presença de Deus em um mundo que fora arruinado pela bomba atômica, por sociedades bem seculares e racionais”. O livro também traz os chamados “filhos do Papa”, seres mutantes descendentes das vítimas da irradiação provocada pelas bombas.