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OS CLÁSSICOS

ESPECIAIS/VE UTOPIAS E DISTOPIAS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data17/12/2018
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É impossível falar sobre ficção científica sem citar Júlio Verne e H. G. Wells, e não é diferente quando o tema diz respeito às histórias utópicas e distópicas. E, é claro, eles estão entre os maiores autores clássicos do gênero em todos os tempos.

Fotografia de Júlio Verne (Félix Nadar, c. 1878).

Adam Roberts diz que os dois continuam sendo “(...) de modo compreensível, os dois escritores mais famosos da ficção científica na história do gênero”. John Clute disse que os dois geralmente são vistos como os fundadores da ficção científica, ainda que nenhum deles tenha reivindicado essa posição, assim como não reivindicaram terem dado origem a um novo gênero. Ainda assim, eles desenvolveram alguns dos temas que se tornaram centrais na ficção científica desenvolvida no século 20.
E tanto John Clute quanto Adam Roberts lembram que, apesar de os nomes de Verne e Wells estarem quase sempre ligados quando se fala da história do gênero, eles não apenas jamais se encontraram como pertenciam a gerações distintas: Júlio Verne tinha 38 anos quando H.G. Wells nasceu.
Um dos primeiros livros de Verne foi Paris no Século XX (Paris au XXe siècle, 1863. Editora Ática), escrito no mesmo ano de Cinco Semanas em um Balão, porém somente descoberto em 1989, uma vez que seu editor, Pierre-Jules Hetzel, rejeitou a obra, considerando que Verne tinha assumido uma “tarefa impossível”. Ele e Hetzel formaram uma dupla imbatível nos anos seguintes, mas a visão distópica de Verne ficou na gaveta por mais de um século.
O livro mostra a Paris do ano 1960, totalmente voltada para os negócios e para a tecnologia, mas sem qualquer interesse pelas artes ou pelas relações pessoais. Nesse ambiente destaca-se o jovem Michel Dufrénoy, interessado em literatura, porém obrigado a um trabalho que não gosta, uma vez que sequer consegue encontrar os livros que gostaria de ler; as livrarias só vendem obras sobre tecnologia.
Sua situação muda quando conhece um tio que vinha sendo escondido dele pela família, considerado uma ovelha-negra por se interessar por arte. Michel e algumas poucas pessoas formam um grupo com interesses semelhantes, mas os eventos seguintes são terríveis. Toda a Europa passa por um inverno terrível que destrói a agricultura e espalha a fome pelo continente. Alguns pesquisadores da fc chegaram a afirmar que uma das razões para Hetzel ter rejeitado o livro foi seu tom deprimente, com um final em que Michel, sem emprego e faminto, delira pelas ruas de Paris, imaginando-se perseguido pelo “Demônio Eletricidade”.

 

Frontispício de Os 500 Milhões da Begum (Ilustração de Léon Benett, 1879).

Outro livro de Verne apresenta duas sociedades, uma utópica, outra distópica. Trata-se de Os 500 Milhões da Begum (Les Cinq cents millions de la Bégum, 1879. Ed. Hemus). Brian Stableford ressalta a oposição existente entre as duas cidades da história, Frankville (France-Ville, ou Cidade da França) e Stahlstadt, a Cidade do Aço. Segundo ele, os detalhes dos dois estados são vagos e totalmente sem importância. “A oposição”, diz Stableford, “é realmente entre o idealismo utópico, encarnado na visão de Frankville, e as forças da natureza humana que são suas inimigas – a ambição e o militarismo – encarnado na visão de Stahlstadt”.
A Begum do título é uma nobre milionária indiana – na verdade, begum é um título aristocrático – que ao morrer deixa como herança 500 milhões de francos a dois herdeiros. Um deles é o físico francês Dr. Sarrasin, que tem grandes preocupações com as condições sanitárias da Europa e decide construir uma cidade-modelo utópica no Oregon, nos Estados Unidos. O outro é o cientista alemão dr. Schultze, racista e com tendências militaristas, que resolve usar o dinheiro para construir sua própria cidade, voltada basicamente para a construção de armas mais poderosas e com a intenção de destruir a cidade de Sarrasin.
É comum atribuir-se a Verne inúmeras antecipações do futuro, e no caso desse livro não é diferente, por exemplo, com uma espécie de “guerra química” preparada pelo dr. Schultze. E mais, com uma antecipação do nazismo, uma vez que Schultze também falava da pureza da raça e pensava na dominação mundial que se seguiria à destruição de seu oponente. Os críticos também entendem que a história segue na esteira da Guerra Franco-Prussiana de 1870, quando a França foi derrotada e teve alguns de seus territórios ocupados. De fato, um dos personagens centrais do livro, Marcel Bruckmann, é um nativo da Alsácia, território francês anexado ao império germânico ao final da guerra.
Segundo Adam Roberts, “Com certeza, o libelo da novela contra a relevância alemã parece significativo. Mas o livro funciona com muito mais nitidez como comentário sobre a tradição utópica em si”. Para ele, a dicotomia “cidade boa-cidade má” parece sem consistência em termos conceituais. “Mas como metatexto utópico”, diz Roberts, “o livro está repleto de ideias penetrantes sobre a relação entre dois diferentes modelos de idealismo utópico: o pastoral e o autoritário”.
Ainda que normalmente não seja associado ao ciclo de histórias utópicas, algumas fontes também consideram o livro A Ilha de Hélice (L'Île à hélice, 1895) como integrante das histórias utópicas. A obra faz parte do ciclo de “Viagens Extraordinárias” de Verne e, em The Visual Encyclopedia of Science Fiction, é dito que esse é um dos livros – como em Os 500 Milhões da Begum – em que Júlio Verne percebe as atitudes conflituosas de homens quando confrontados com a “época das máquinas” e a noção de evolução. A história imagina uma ilha utópica flutuando, construída pelo homem, à qual vão parar quatro músicos que viajavam de São Francisco a San Diego; eles acabam sendo contratados para concertos na ilha, que se dirige a uma viagem pelo Pacífico Sul, e se vêm em meio a uma disputa política entre os habitantes de lados opostos da ilha.

 

                                                                         Fotografia de H. G. Wells (George Charles Beresford, 1920).

Os críticos costumam destacar a relação que as utopias e distopias de H.G. Wells têm com as ideias socialistas. Em The Visual Encyclopedia of Science Fiction é dito que muitos críticos apontam para o fato de que suas histórias refletem uma falta de fé nas camadas sociais cujas causas ele parece se interessar. Brian Stableford diz que “H.G. Wells nunca foi capaz de acreditar no socialismo proletário, mas apenas no socialismo criado e imposto por uma intelligentsia benevolente”.
Adam Roberts relaciona essa postura de Wells às condições da sociedade inglesa em sua época. “Um dos fatores básicos que moldaram a vida de Wells, e portanto sua ficção, é algo difícil de transmitir aos que não experimentaram as complexidades peculiares e envolventes do sistema de classes inglês”. Wells situava-se num meio termo: não era da classe média, mas não era pobre. Graças a muito estudo, conseguiu se tornar professor estagiário e ganhar uma bolsa para a Normal School of Science, que não tinha status universitário, mas contava com a presença do biólogo e darwinista Thomas Huxley, avô do escritor Aldous Huxley, autor do clássico distópico, Admirável Mundo Novo. Nessas condições, para Roberts “Embora tanto o humanismo científico de Huxley quanto seu vigoroso proselitismo pela teoria da evolução sejam muito evidentes na obra de Wells, eles medeiam uma animosidade social mais profunda. Em uma meritocracia, um indivíduo com os talentos de Wells teria ascendido com facilidade, mas a Grã-Bretanha nas décadas de 1880 e 1890 não era uma meritocracia. A mobilidade social de Wells foi conquistada a duras penas, deixando-o com uma percepção da luta social que se harmonizava com sua compreensão das teorias de Darwin e do potencial do discurso da ‘ciência’, útil para substituir os discursos de ‘classe’ e ‘religião’. Isso acrescentou ao brilho imaginativo e habilidade narrativa da obra de Wells uma profundidade e uma sofisticação de relevância social amplamente ausentes no Verne mais confortavelmente burguês”.

As incursões de H.G. Wells pelas distopias e utopias começaram com Uma História dos Tempos Futuros (A Story of the Days to Come, 1899. Livraria Garnier. Algumas fontes citam o ano de publicação como sendo 1897) e com O Dorminhoco (When the Sleeper Wakes, 1899. Editora Carambaia), este último posteriormente relançado em 1910 com o título The Sleeper Awakes.
Brian Stableford cita O Dorminhoco como “o primeiro de muitos romances socialistas”, com o personagem central, Graham, entrando numa estado de animação suspensa após ingerir drogas para curar sua insônia, e acorda no ano 2.100. Ele descobre que está riquíssimo devido ao dinheiro acumulado ao longo do período, e acaba se tornando uma espécie de messias em uma sociedade totalitária, o líder de uma revolta contra a classe dominante opressora. Adam Roberts diz que O Dorminhoco “(...) é outro livro religioso em tom de paródia, embora esse fato fique bem disfarçado”; não apenas existe a questão da “ressurreição milagrosa” de Graham, mas ainda o fato de que seu dinheiro é administrado por um grupo não muito confiável, os Doze Curadores.
Uma História dos Tempos Futuros é a narrativa de dois amantes numa Londres futura não muito aprazível, totalmente urbanizada e controlada por máquinas, com as classes mais pobres vivendo nos subterrâneos. Em The Visual Encyclopedia of SF, diz-se que Wells apresenta um mundo que se tornou demasiadamente civilizado e não tem espaço para a iniciativa.

(Capa: Kate Gibb/ Penguin Books).

Em 1905, H.G. Wells publicou A Modern Utopia, livro que, segundo Adam Roberts, “(...) é em sua maior parte um Cook’s Tour (série exibida na TV norte-americana com viagens a lugares exóticos e destaque para os hábitos alimentares), sistemático e monótono, pelo paraíso imaginado pelo autor”, e destaca o fato de o livro tratar com naturalidade a “questão das raças inferiores”, marcando a filiação do autor ao eugenismo e racismo do início do século.
A história apresenta dois viajantes que, quando estão nos Alpes suíços, atravessam o que pode ser considerado uma torção no tempo-espaço, surgindo em Utopia, na verdade uma Terra paralela, com um governo utópico mundial. Os personagens são chamados apenas de Owner of the Voice (o dono da voz) e Botanist (Botânico), encontrando um mundo dirigido por um único governo, com igualdade sexual, econômica e racial, e um idioma único. Uma elite conhecida como Samurai faz com que os ideais socialistas sejam cumpridos. Wells voltaria a visitar um mundo paralelo utópico em Men Like Gods, em 1923.
O escritor ainda apresentaria sociedades utópicas em Os Dias do Cometa (In the Days of the Comet, 1906) e em História do Futuro (The Shape of Things to Come, 1933. Companhia Editora Nacional).
Brian Stableford relaciona História do Futuro com um livro anterior de Wells, A Construção do Mundo – O Trabalho, a Riqueza e a Felicidade do Mundo (The Work, Wealth and Happiness of Mankind, 1931. Companhia Editora Nacional), publicado em dois volumes (e, no Brasil, traduzido por Monteiro Lobato), contendo toda a filosofia utópica de Wells. Segundo Stableford, A História do Futuro seria, então, uma adição em forma de ficção especulativa, “esboçando um mapa histórico pelo qual um estado utópico poderia ser alcançado”. O livro também se tornou a base para o roteiro do filme Daqui a Cem Anos (Things to Come, 1935. ver também no especial Mil Cidades, "O Futuro do Pretérito"), dirigido por William Cameron Menzies e com roteiro do próprio H.G. Wells. Stableford ainda diz que “Esses dois livros representam o apogeu da carreira literária de H.G. Wells; depois disso ele começou a escrever sua autobiografia”.

(Capa: Geoff Taylor/ Corgi).

A história prevê o início de uma Guerra Mundial, ainda que erre em vários pontos referentes aos eventos reais que se espalhariam pela Europa. No entanto, esses são detalhes sem maior importância em uma obra de ficção.
As maiores críticas ao livro de Wells na época destacavam que sua visão de uma utopia futura liderada por uma elite tecnocrata, como ele já havia proposto em outras histórias. O livro foi dividido em diferentes etapas, cada qual representando uma era da sociedade, iniciando com eventos anteriores a 1933 e estendendo-se até 2106. Entre outras coisas, imagina uma praga mundial que quase destrói a humanidade em 1956 e 1957; posteriormente, elabora a existência de uma “ditadura benevolente”, a “Ditadura do Ar”, que se desenvolve a partir das pessoas que controlam os sistemas de transporte que sobreviveram no planeta. Essa ditadura promove a ciência, impõe o inglês como idioma universal e elimina todas as religiões. A parte final representa o fim dessa era de ditadura e o início da utopia, na qual todos vivem em paz e são polímatas, profundos conhecedores de diferentes aspectos das ciências humanas.

                          Raymond Massey, em Daqui a Cem Anos (London Film Productions).

O filme Daqui a Cem Anos, apesar de ter recebido várias críticas, tanto na época de seu lançamento quanto atualmente, é frequentemente citado entre os mais importantes do gênero, inclusive por autores importantes como Brian Aldiss, Arthur C. Clarke e Harry Harrison. Grande parte de sua força concentra-se nos cenários grandiosos e na direção de William Cameron Menzies, com a produção de Alexander Korda. Peter Nicholls e John Brosnan escreveram (em The Science Fiction Encyclopedia) que se trata do mais caro e ambicioso filme de ficção científica dos anos 1930, mas que “ainda que o roteiro tenha sido escrito pelo próprio Wells, não é o filme mais satisfatório baseado em seu trabalho nesse período. (...) Mas a retórica visual (apoiada pela majestosa trilha sonora de Arthur Bliss), apesar da composição estática das cenas, ocasionalmente é devastadora em sua própria dimensão (efeitos especiais de Ned Mann, importado de Hollywood); o filme é um dos mais importantes na história do cinema de ficção científica pela ousadia de suas ambições, e pela empolgação com a qual projeta o mito da viagem especial como o início da transcendência do Homem”.
Wells ainda escreveria The Holy Terror (1939), livro no qual mais uma vez imagina a formação de um estado global, mas que degringola numa distopia fascista.

Ao destacar as distopias do final do século 19 e início do século 20, Brian Stableford diz que como as descrições detalhadas de distopias nascem do fervor político e propagandístico direcionado “contra” determinados movimentos mais do que “para” esses movimentos, encontramos muitas das distopias iniciais atacando ruidosamente tendências contemporâneas. E, também, diz que “O estímulo mais prolífico à visão distópica foi, certamente, a polarização política entre capitalismo e socialismo”.
Uma das principais distopias anticapitalistas a surgir nessa época foi O Tacão de Ferro (The Iron Heel, 1908. Boitempo Editorial), de Jack London, livro que o escritor e historiador cultural H. Bruce Franklin considerou (em The Science Fiction Encyclopedia), a mais admirável realização do autor no gênero ficção científica, “e, talvez, sua obra-prima”. Claro que é uma visão bem particular, especialmente porque Jack London é um dos maiores escritores de todos os tempos, de modo que os críticos divergem sobre qual seja sua obra-prima – se O Chamado da Floresta, Caninos Brancos, O Lobo do Mar, Martin Eden. E mesmo entre suas obras de ficção científica, ainda existem os que preferem Antes de Adão, A Praga Escarlate ou O Andarilho das Estrelas, ou ainda o conto O Vermelho (The Red One, 1918. Editora, Rideel).
Ao contrário de H.G. Wells, Jack London era favorável ao socialismo do proletariado, e o livro apresenta um manuscrito encontrado, apresentado e comentado no ano de 2.600. Fala de um estado oligárquico, o Tacão de Ferro do título, que se desenvolveu nos Estados Unidos a partir de 1912, mantendo-se por três séculos, quando uma revolução derruba esse poder e estabelece uma época de irmandade entre os homens.


Fala-se de muitas obras que teriam sido inspiradas por O Tacão de Ferro, assim como se fala bastante da influência da distopia imaginada pelo russo Yevgeny Zamiatin, Nós (We, 1920/1921. Editora Aleph). A história imagina a existência futura de um Estado Único, praticamente um estado urbano com as construções feitas totalmente de vidro, que aboliu os direitos básicos das pessoas, supostamente para o seu bem. Não existe o livre-arbítrio, as noções de individualidade são suprimidas, assim como a liberdade de expressão e a imaginação. Tudo é programado, desde os denominações das pessoas, que passam a ser números, até os horários em que elas comem dormem ou fazem sexo.
Zamiatin foi um bolchevique que participou ativamente dos eventos que levaram à chamada Revolução Russa de 1917, mas acabou se desentendendo com seus pares e o texto só circulou em manuscrito, com sua publicação sendo proibida. A primeira edição na União Soviética só surgiu em 1988, com a abertura política do país, quando foi publicado juntamente com 1984, de George Orwell, e depois com Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
Segundo Adam Roberts, Zamiatin “transgrediu as ortodoxias ideológicas de Stalin da Rússia soviética, tendo acabado seus dias em Paris, em um exílio odiado tanto pela esquerda quanto pela direita”.
O conceito que dirige as ações do Estado Único é o de que o livre-arbítrio, a privacidade e a personalidade são as causas da infelicidade, de modo que a forma de acabar com a infelicidade é ter um controle absoluto sobre a vida das pessoas. “Todos moram em apartamento de vidro”, explica Roberts, “todos exibindo-se para todos; o dia de cada um é ditado por um rígido cronograma. Na verdade, sob certos aspectos, Zamiatin não está disposto a levar esse esquema à sua conclusão lógica. Por exemplo, seus Números estão autorizados a ter duas horas por dia para uso pessoal e, com discrição, fecham as cortinas dos quartos para fazer sexo. Uma sociedade em que a privacidade fosse um anátema tão grande a ponto de não existirem atos provados é talvez corrosiva demais em relação às convenções da ficção dramática para os propósitos de Zamiatin, embora fosse por certo essa a lógica mais provável do Estado Único”.

Capa da primeira edição, em 1924 (E.P. Dutton).

Em The Science Fiction Encyclopedia, Darko Suvin, um dos principais estudiosos e críticos da literatura de ficção científica, diz que o livro de Zamiatin indica sua intenção de extrapolar a respeito do potencial repressivo de todo estado centralizado. “Compromissado com o método científico até mesmo em sua forma narrativa, que imita notas de laboratório”, diz Suvin, “a explicação de Zamiatin da razão de o racionalismo se tornar azedo é mística: toda crença, quando vitoriosa, precisa tornar-se repressiva, como fez o Cristianismo. Os únicos elementos irracionais restantes são os seres humanos que se desviam do caminho: esses incluem o narrador – um matemático e designer de uma nave espacial – e a mulher que representa um movimento de resistência. A trama é modelada em uma Queda inevitável (já que rebelião inevitavelmente falha), terminando numa crucificação irônica. Nos termos de Zamiatin, Nós julga a Utopia do passado, como se torna um absolutismo, em nome da utopia do futuro – uma vez que o princípio da utopia em si não é rejeitado; dessa forma, o livro não é uma Distopia”.
Suvin ainda diz que Zamiatin demonstra que a utopia não deveria ser uma nova religião, mas representar o horizonte dinâmico do desenvolvimento de personalidade da humanidade. “Nós é a antiutopia paradigmática”, diz Suvin, “prefigurando George Orwell e Aldous Huxley e substituindo aquela tradição de utopia de Sir Thomas More em diante, que ignora a tecnologia e a antropologia. Ao analisar as distorções da utopia através do prisma hiperbólico da ficção científica, Zamiatin escreveu um texto intensamente prático. É tanto uma obra-prima da ficção científica quanto um livro indispensável de nossa época”.

Em uma relação menos evidente com a ficção científica estão as obras de Franz Kafka e, em particular, O Processo (Der Process, 1925). Em The Science Fiction Encyclopedia, John Clute e Peter Nicholls entendem que o livro, assim como O Castelo e Amérika, teve alguma influência, ainda que às vezes indiretamente, na ficção científica que lida com questões como a paranoia e alterações da realidade.
Para Adam Roberts, no entanto, essa relação é mais evidente. “O fato de se tratar de uma novela que foi”, diz Roberts, “com efeito, traduzida de sua linguagem de distopia para a linguagem do realismo por uma série de regimes totalitários do século XX não a torna menos FC e, na verdade, só realça sua poderosa aura materialista-fantástica. Na dramatização da arbitrariedade absurda dos acontecimentos de uma sociedade vienense apresentada com desoladora falta de importância, assim como na vigorosa insistência na passividade e desesperança radicais da vida humana individual, talvez ela continue sendo a visão mais implacável e pessimista do que a tradição iluminista havia feito da vida comum”.
A história é um pesadelo sem fim, com o funcionário Joseph K. sendo acusado de algo que ele não sabe o que é, e jamais consegue descobrir. O escritor Steve Rasnic Tem, comentando sobre a obra em Horror: 100 Best Books, destaca esse aspecto onírico. Ele diz que, numa passagem do livro que foi cortada, Joseph K. diz que “acordar era o momento mais arriscado do dia”. Rasnic tem diz que, no livro, as obsessões do sonho permanecem em sua vida quando acordado e são incorporadas nos objetos e nas pessoas que cercam o protagonista. Ainda que o ambiente da história seja detalhado de forma bem natural, sua lógica é a de uma paisagem de sonho. Assim como nunca lhe dizem qual é a acusação contra ele, ele encontra pessoas que deveria conhecer, mas não as reconhece, com suas identidades mudando de uma cena para outra. A Corte à qual deve se dirigir é impossivelmente maior em seu interior do que no exterior; os quartos se transformam em outros ambientes; seus acusadores estão em toda parte e Joseph K. percebe rostos que o observam de janelas e buracos de fechadura.
Para Steve Rasnic Tem, a indistinção da linha entre personagem e cenário demonstra a forma pela qual a caracterização funciona em grande parte da ficção de fantasia. “Os críticos que rotulam os personagens de Kafka como sendo bidimensionais não perceberam de que muito dessa caracterização ocorre dentro dos cenários personalizados e transformados de Kafka. Como em um sonho, todos os objetos e pessoas na cidade são uma parte transformada do personagem Joseph K.”.

Em 1932 foi publicado Admirável Mundo Novo (Brave New World), de Aldous Huxley, livro que se tornou, juntamente com 1984, de George Orwell, um marco na literatura distópica. Em The Visual Encyclopedia of Science Fiction, diz-se que foi o romance distópico que rivalizou com as histórias de Wells quanto à influência. Brian Stableford considerou o livro “a primeira distopia anticientífica cuja intensidade é comparável às imagens politicamente inspiradas”. John Clute diz que o livro contribuiu com um modelo definitivo de totalitarismo farmacológico, influenciando o pensamento social e literário. Para Clute, a forma pessimista com que apresenta a forma que deverá ter uma comunidade cientificamente planejada, com sua esterilidade e sua falta de humanidade, fez com que o livro fosse visto como uma refutação definitiva das utopias de H.G. Wells, que viam de forma otimista o futuro baseado no desenvolvimento científico.
Adam Roberts destaca que o professor e especialista em teoria literária Valentine Cunningham, em seu livro British Writers of the Thirties, identifica Admirável Mundo Novo como “a ficção distópica básica” dos anos 1930 e a cristalização de “uma inquietação ocidental generalizada acerca do triunfo do materialismo da era da máquina”. No entanto, Roberts entende que “É um erro interpretar essa novela apenas em nível de conteúdo, para então, em seguida, considerá-la como um protesto contra a sociedade tecnológica, a sociedade de consumo ou a cultura de massa em geral”.
“Huxley traçou um mundo”, escreve Adam Roberts, “em que a felicidade humana e a estabilidade dessa felicidade são a qualidade definidora. Pensadores utópicos tinham, até então, aceitado sempre um dentre dois princípios como indicador de sucesso utópico: ou a maior eficiência do funcionamento mais amplo da sociedade, concebido com frequência em moldes quase militares, ou então – o mais comum – o critério benthamita da maximização da felicidade para o maior número de pessoas” (N.E.: benthamita, de Jeremy Bentham [1747-1832], filósofo fundador do “utilitarismo”, basicamente um pensamento que entende que as ações são boas quando tendem a promover a felicidade do maior número de pessoas).
“Huxley não estava interessado”, diz Roberts, “na utopia militar; sua inovação, tão engenhosa quanto profunda, foi interrogar as utópicas associações da felicidade em si. Na verdade, esse é um tema constante em sua obra. Antes de Huxley, era em geral considerado evidente que a crescente felicidade humana era algo bom. Huxley questionou essa suposição”.
No mundo futuro descrito no livro de Huxley, a manutenção da felicidade tem seu preço. Os bebês são incubados artificialmente e não em úteros femininos, e passam por um processo de ajuste genético para que ocupem, no futuro, uma das sete classes sociais, cada qual com funções específicas para cumprir na sociedade, e perfeitamente ajustados a essas funções; portanto, são felizes. A droga conhecida como “soma” ajuda a manter a felicidade e o equilíbrio da sociedade, além dos “sensos”, passatempo que substituiu os filmes e oferecem sensações táteis.
As pessoas são condicionadas, desde o estado de fetos, a uma série de atitudes, como a passividade, o consumo e a promiscuidade sexual. As pessoas ainda são sujeitadas à doutrinação hipnopédica, com frases de efeito e conceitos ideológicos sendo repetidos durante o sono. A felicidade não é questionada, como nada mais é, e as pessoas vivem mais tempo, sem doenças e sem preocupações, cumprindo suas obrigações e consumindo sempre.
O livro teve duas adaptações para a TV. A primeira, em 1980, teve direção de Burt Brinckerhoff, com Keir Dullea, Ron O’Neal, Bud Cort e Kristoffer Tabori. Apesar de não conseguir se aprofundar nas complexas questões propostas no livro, é uma adaptação razoável. A versão de 1998 foi dirigida por Leslie Libman e Larry Williams, com Peter Gallagher, Leonard Nimoy e Tim Guinee, e é inferior ao primeiro.
Huxley retornaria ao tema das utopias/distopias em seu último romance, A Ilha (Island, 1962). John Clute diz que se trata de uma alternativa utópica a Admirável Mundo Novo, “ainda que sem muita convicção”.
A ilha do título é a fictícia Pala, situada no Oceano Índico, à qual chega o cínico jornalista Will Farnaby após um naufrágio. Os habitantes locais vivem há cerca de um século em completa harmonia e felicidade, com práticas espirituais derivadas do Budismo Tântrico, além de terem a ajuda física da moksha, uma droga com efeitos psicodélicos que lhes dá uma visão mais ampla da vida. Ao contrário do soma de Admirável Mundo Novo, essa droga serve para liberar sentimentos e percepções, um conceito que Huxley desenvolveu nos anos 1950, após suas experiências com o LSD e a mescalina, relatadas nos livros As Portas da Percepção (The Doors of Perception, 1954) e O Céu e o Inferno (Heaven and Hell, 1956).

Em seu ensaio Regresso ao Admirável Mundo Novo (Brave New World Revisited, 1958. Ed. Itatiaia), Huxley afirmou que a sociedade do futuro distante seria mais próxima do conceito que desenvolveu em Admirável Mundo Novo do que da ditadura do Big Brother do livro de George Orwell, 1984 (Nineteen Eighty-Four, 1949), o outro grande livro da época a apresentar uma sociedade distópica. Assim como o livro de Huxley, 1984 tornou-se um clássico, muito popular, cristalizando visões como a de um governo que tudo vê e tudo controla, por mais que, nos tempos atuais, o conceito do Big Brother tenha sido esvaziado, ou até mesmo deturpado.
Adam Roberts (em A Verdadeira História da Ficção Científica. Ed. Seoman) situa a obra em seu contexto histórico, alertando para as profundas modificações pelas quais passou a Grã-Bretanha após a Segunda Guerra Mundial, com a nação perdendo seu status de império global e passando por uma época de escassez, incluindo de alimentos. “Para falar de modo bem mais geral”, diz Roberts, “essa transformação se manifestou em fenômenos culturais metafóricos. A severidade da vida no pós-guerra (...) se filtrou para uma série de obras de arte mais ou menos negativas, pessimistas. A FC foi uma modalidade que permitiu a inflação desse sentimento de perda (...) nas esferas global ou cósmica. A obra-prima dessa linguagem particular, depressiva e pessimista, é 1984 (...)”.
John Clute, para quem 1984 é a mais famosa distopia do século, diz que a obra é narrada com uma energia e um envolvimento claustrofóbicos – tão intensamente que muitos críticos, injustamente, acusaram o livro de ter um desequilíbrio subjetivo.

                                                                                                                                        (Capa: Alan Harmon/ Signet-New American Library).

Se alguém ainda não conhece a história, ela apresenta um governo autoritário, ditatorial, opressivo e sádico, com seus habitantes constantemente sob a observação do Big Brother, o Grande Irmão, o olho que tudo vê e que controla cada detalhe da vida das pessoas. O mundo está dividido em três superestados: Oceania, Eurásia e Lestásia, sendo que Londres, onde se passa a história, pertence à Oceania. Os três estão em constante disputa por territórios limítrofes, e são igualmente governados de forma aterrorizante. Em Londres, as pessoas vivem quase empilhadas em apartamentos com uma teletela, um aparelho de televisão que também permite que o Grande Irmão observe a vida dos cidadãos. O controle é total, existindo até mesmo uma Polícia do Pensamento, além de ter se desenvolvido uma nova linguagem, a Novilíngua. O Partido controla tudo, com palavras de ordem como : “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”.
Como disse John Clute, os governantes dessa porção da província da Oceania usam sua habilidade para infligir dor e, assim tornar seu poder bem claro para as massas. O enredo segue a tentativa de Winston Smith de se libertar da opressão e sua eventual submissão sob tortura. Smith mantém um diário, ilegal, e mantém um caso, também ilegal, com uma colega de trabalho; o sexo é proibido, a não ser para procriação.

(Capa: Paul Lehr/ Signet-New American Library).

Adam Roberts diz que 1984 “É uma novela de FC deliberadamente pré-copernicana”. Ela apresenta elementos da FC, como as teletelas e tecnologias avançadas utilizadas nas guerras, “Mas em outro sentido, no regime da novela a tecnologia não tem utilidade. A divisa sobre controlar o futuro é circular por completo; não há futuro em Oceania, só um contínuo presente de poder partidário. Até mesmo a data do título reforça essa noção; escrevendo em 1948, Orwell apenas inverteu os dois últimos algarismos para obter sua data fictícia. Ao contrário da tradição da ficção futuro (livros como Looking Backward 2000-1887, de Bellamy), que ele desconstrói com ironia, 1984 não é ficção futurística, porque, com bastante exatidão, não existe futuro para o qual os habitantes da sociedade de Orwell possam avançar”.
Ainda assim, Roberts entende que 1984 é ficção científica, seguindo menos o modelo da FC tecnológica dos anos 1920 e as ficções pulp da década de 1930, e mais a ficção “teórica e sutil” de Olaf Stapledon.

O livro de Orwell teve sua primeira adaptação para o cinema produzida em 1953, pela rede CBS, dos Estados Unidos, na série Studio One (1948-1958). Foi dirigida por Paul Nickell, com Eddie Albert como Winston Smith, Lorne Greene como o Ministro da Verdade, e Norma Crane como Julia, o amor de Smith.
Em 1954, foi a vez de a BBC inglesa apresentar uma adaptação do livro, na série Sunday Night Theatre (1950-1959), muito bem recebida pela crítica, com direção de Rudolph Cartier, com Peter Cushing no papel de Smith. O roteiro foi adaptado por Nigel Kneale, conhecido nome da TV britânica, criador da série com o professor Quatermass (veja no Youtube).

Edmond O'Brien e Jan Sterling, na versão de 1956 (Columbia Pictures Corporation/ Holiday Film Productions Ltd.).

O crítico Phil Hardy disse que a adaptação da BBC causou um furor tão grande porque levou o livro de Orwell a sério e também porque teve a segurança de reformular o material para a tela pequena, o que não ocorreu com a adaptação seguinte, para o cinema. No caso, 1984, O Fim do Mundo (1984), o primeiro longa-metragem adaptado da obra de Orwell, que surgiu em 1956, com direção de Michael Anderson. Edmond O’Brien interpretou Winston Smith e Jan Sterling foi Julia (no Brasil, o filme também foi apresentado com o título 1984, O Futuro do Mundo). Segundo Hardy, o filme se mostra um “hino à cautela, uma versão simplificada do livro que presta pouca atenção às ideias que o tornaram um trabalho tão significante”. Essa cautela, lembra Hardy, chegou ao ponto de terem sido filmados dois finais diferentes.

                                                                   Richard Burton e John Hurt, na versão de 1984 (Virgin Films/ Umbrella-Rosenblum Films).

Outra versão foi apresentada em 1984, com direção de Michael Radford e John Hurt como Winston Smith, Richard Burton como o Ministro O’Brien, e Suzanna Hamilton como Julia. O filme teve algumas críticas bem duras, além de uma campanha de marketing agressiva, especialmente por se tratar de uma adaptação da obra 1984 apresentada no ano de 1984. Traz uma boa criação de um clima de opressão, misturando cenários da Inglaterra de 1948, o ano em que o livro foi escrito, com o mundo de 1984 e cenas futuristas, propondo o que o diretor Radford chamou de “1948 paralelo”.
Tem grandes interpretações de Hurt e Burton, este em seu último trabalho, além de contrastes fortes na contraposição do mundo real de Winston, repleto de imagens de guerras, imundo, confuso e sempre na escuridão, com o mundo interior de fantasia, sempre apresentando cenas de campos iluminados, limpos e nada mecânicos. Phil Hardy também não achou o filme grande coisa, ainda que melhor do que a adaptação de 1956. Para ele, assim como no filme anterior, essa versão reduziu o que era para ser uma sátira selvagem ao crescimento do autoritarismo e um puro e simples melodrama.