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PHILIP K. DICK EM DOSE DUPLA

Livros/Lançamentos

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data21/10/2018
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A Suma de Letras publicou O Tempo Desconjuntado e Espere Agora Pelo Ano Passado, dois livros de períodos distintos da obra de um dos principais autores da ficção científica.

A Editora Suma de Letras (um selo da Editora Schwarcz) lançou dois livros de Philip K. Dick: O Tempo Desconjuntado (Time Out of Joint, 1959) e Espere Agora Pelo Ano Passado (Now Wait For Last Year, 1966). Os livros têm excelente apresentação em capa dura, com ilustrações de Celso Longo, e com a vantagem de terem sido traduzidos por Braulio Tavares que, além de ser um excelente escritor, também conhece muito de ficção científica.
O primeiro livro eu já conhecia da edição portuguesa da Argonauta, publicado com o título menos apropriado de O Homem Mais Importante do Mundo. Certamente não se trata de uma obra no mesmo patamar de seus livros mais importantes, mas ainda assim apresenta a visão típica do autor, construindo uma realidade para, em seguida, desconstruí-la. Nas histórias de Philip K. Dick raramente o mundo é o que nos é inicialmente apresentado.
Aqui, a história inicia-se numa pequena cidade norte-americana, em 1959, com a vida absolutamente normal de uma família composta por um casal, seu filho pequeno e o irmão da mulher, Ragle Gumm, que se tornará o centro das atenções.
Ele tem uma atividade no mínimo estranha que consiste em, todos os dias, tentar acertar os resultados de um concurso realizado por um jornal. Ele acorda, faz a barba, toma seu café, veste terno e gravata e cerca-se de gráficos e tabelas a partir dos quais consegue chegar à conclusão do concurso, invariavelmente acertando. Isso lhe fornece não apenas o dinheiro do prêmio, mas também o reconhecimento. Seu nome está sempre em destaque entre os vencedores, sempre em primeiro lugar.
Mas é claro que as coisas não são tão simples, e logo o mundo de Ragle Gumm, de sua irmã Margo e do marido dela, Victor, começa a “desconjuntar”, com uma sucessão de situações totalmente fora dos padrões de normalidade apresentados até então. Victor entra no banheiro e tentar acender a luz procurando o interruptor num local onde ele não está; Ragle vê uma barraca de refrigerantes desaparecer à sua frente; revistas antigas encontradas num local abandonado mostram fotografias de Marilyn Monroe, mas ninguém sabe quem ela é; uma lista telefônica encontrada no mesmo local têm números de telefone de locais que não existem; e ficamos sabendo que Ragle vem sendo vigiado por seu vizinho Bill Black durante anos.
A realidade de Ragle Gumm vai sendo rasgada aos poucos, revelando o que existe por trás da cortina e os planos dos quais faz parte, mesmo sem ter lembrança disso.
O escritor e pesquisador de ficção científica Brian Stableford disse que nesse livro – e também em Os Olhos do Céu (Eye in the Sky, 1957) e Marionetas Cósmicas (The Cosmic Puppets, 1957) – os personagens tentam destruir a ilusão e recuperar a realidade objetiva, mas que em livros similares escritos posteriormente esse objetivo se perde na medida em que o autor se torna cada vez mais fascinado pelos vários mundos irreais que cria. Ele parece estar correto, pelo menos em parte. A imersão dos personagens nos “mundos além do mundo” é quase absoluta em livros como O Homem do Castelo Alto, Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, Ubik, Valis e A Invasão Divina. A fascinação do autor à qual Stableford se refere tem a ver com as experiências de PKD com sua própria realidade sendo alterada (ver também o texto Luz Cor-de-Rosa na Cabeça).

Espere agora pelo ano passado foi escrito em 1963, um ano antes de Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, mas publicado apenas em 1966. E também apresenta uma droga poderosa capaz de alterar a percepção da realidade, que pode ter vindo ou não de outro planeta.
A história situa-se em um período em que a Terra está em guerra com uma raça alienígena poderosa, os reegs, tendo sido forçada a essa situação por outros alienígenas aos quais os terrestres se aliaram, os chamados Starmen, do império de Lilistar. Só que, como quase tudo nas histórias do autor, os aliados podem ser piores do que os inimigos, com seus próprios planos para a Terra e com atitudes muitas vezes incompreensíveis para nós.
O personagem central é o dr. Eric Sweetscent, especialista em transplante de órgãos artificiais, envolvido nas tramas políticas quando se torna o médico pessoal do líder mundial, Gino Molinari.
Talvez, aqui Philip K. Dick já esteja na fase que Stableford descreveu, ou seja, cada vez mais fascinado pelos vários mundos irreais que cria, ainda que os mundos de Espere agora... sejam, na verdade, futuros possíveis, ou realidades alternativas. O livro tem muito do que PKD produziu de melhor, como a constante construção e desconstrução da realidade.
Mais do que alterar a realidade, como outras drogas utilizadas nos livros do autor, esta consegue fazer as pessoas viajarem no tempo, ainda que muitas vezes elas não cheguem exatamente ao seu futuro, mas a um futuro possível, como se elas se deslocassem por universos paralelos. Ao longo do livro vão sendo apresentadas várias suposições a respeito de quem criou a droga, qual sua origem e seu propósito. Ela tem um efeito violento, sendo capaz de viciar o usuário com apenas uma dose. O próprio dr. Sweetscent é levado ao seu uso sem saber, pela esposa, com quem tem uma relação das mais conturbadas. Vários estudiosos da obra do autor entendem que este e outros personagens de PKD teêm a ver com os relacionamentos difíceis que ele teve, em particular nesse período da vida. E aqui, de fato, muitas das ações do dr. Sweetscent são impulsionadas por seus sentimentos pela esposa Kathy, e que vão do amor ao ódio com imensa facilidade, passando por um sentimento de culpa avassalador.
O jogo de inversões de rumo da história atinge o próprio dirigente planetário, Molinari, que pode ou não ser ele mesmo, ou pode até não existir. Os personagens têm de se deslocar por esse terreno escorregadio e, no caso do dr. Eric, com uma insegurança que não consegue superar.
O livro raramente é apontado por fãs ou mesmo pelos críticos entre seus mais importantes trabalhos, mas ainda assim pode ser considerado entre os principais da época. E é uma delícia.