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OS FILMES DE TERROR E DE FC DE DAVID CRONENBERG

FILMES/Matérias

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data14/10/2021
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O diretor canadense firmou-se como um dos mais importantes, competentes e influentes dos gêneros terror e ficção científica em todos os tempos.
Allan Kolman, em Calafrios (Cinépix Film Properties/ DAL Productions/ Canadian Film Development Corporation).

Os escritores e críticos de ficção científica Kim Newman e John Clute disseram, em The Encyclopedia of Science Fiction, que o cineasta canadense David Cronenberg é um dos mais importantes profissionais da ficção científica do último quarto do século 20, em qualquer mídia. Para eles, o diretor mostrou um estilo visual e intelectual extraordinariamente consistente, lidando com a separação entre mente e corpo, com tabus sociais, religiosos e químicos de um futuro próximo, com o ambiente da mídia e com os extremos da experiência.
Segundo os críticos, os filmes do chamado “período intermediário” de Cronenberg – em particular os parasitas fálicos de Calafrios (Shivers, 1974) e as visões sadomasoquistas de Videodrome – A Síndrome do Vídeo (Videodrome, 1983) – com violência e mutação altamente bizarras e frequentemente de natureza sexual, lhe deram a reputação de ser o autor menos condescendente de sua geração. E sua produção posterior com filmes que continuaram abordando alguns temas habituais em sua criação, mostrou como ele criou sua própria categoria, dizem os críticos, “'o filme de Cronenberg', ao invés de habitar os gêneros de FC e terror na forma como seus contemporâneos como George A. Romero e Wes Craven fizeram”.

Jennifer Jason Leigh e Jude Law, conectando-se em eXistenZ (Dimension Films/ Alliance Atlantis Communications/ Canadian Television Fund/ Natural Nylon Entertainment/ Serendipity Point Films/ The Harold Greenberg Fund/ The Movie Network/ Téléfilm Canada/ Union Générale Cinématographique).

Em quase todos os filmes de Cronenberg existe não apenas a separação entre mente e corpo citada por Kim Newman e John Clute, mas uma relação entre a carne e a tecnologia. O escritor e crítico John Scalzi é um dos muitos que destacam esse aspecto, afirmando (em The Rough Guide to Sci-Fi Movies) que Cronenberg é “(...) um dos diretores mais carnais do cinema, usando ‘carnal’ não em um sentido sexual (ainda que Cronenberg não tenha problema com isso), mas em relação à carne. Cronenberg é obcecado com a carne e como a tecnologia pode desvirtuá-la, corrompê-la e destruí-la; esse tema é mais obviamente explorado em seus filmes Videodrome (1983) e eXistenZ (1999), nos quais tecnologia e carne literalmente transformam-se um no outro”.
No livro Horror Cinema (Taschen), editado por Paul Duncan e Jürgen Müller, o texto lembra que seus filmes do início e meio de carreira resultam em explicações fascinantes sobre os efeitos da tecnologia, tanto nos indivíduos quanto na sociedade. “São explorações explicitamente cartesianas tanto da mente quanto do corpo, e Cronenberg é conhecido pela consistência de seu interesse em tornar físico o que é mental”.

Desde os anos 1980 Cronenberg já era considerado entre os melhores diretores de terror e ficção científica, criando mundos próprios repletos de tensão e críticas, explícitas ou nem tanto, à sociedade e à forma como a tecnologia invade a vida dos indivíduos. Em uma matéria na revista Heavy Metal, em setembro de 1981, o crítico Timothy Ray Lucas disse que Cronenberg é um dos vários homens sérios e letrados que se especializou em filmes fantásticos, que compõem uma profissão ingrata uma vez que os espectadores, em grande parte, veem os filmes de terror como emoção barata.

Samantha Eggar preparando-se para dar à luz mais uma de suas criações, em Os Filhos do Medo (Canadian Film Development Corporation/ Elgin International Films/ Mutual Productions).

No entanto, diz Lucas, existem diretores que encontram no gênero espaço para experimentar estruturalmente e visualmente, ao mesmo tempo mantendo as restrições narrativas dos “filmes normais”, impostas a eles pela incessante necessidade de lógica dos filmes de terror. O crítico cita a definição de Cronenberg a respeito da dicotomia do gênero: “Uma das razões pelas quais o gênero é tão forte é porque há mais material em comum a todos os seres humanos nas lagoas escuras do inconsciente do que nas áreas mais superficiais da mente”.
Timothy R. Lucas é um dos muitos críticos a ressaltar o tema central das obras do diretor, afirmando que “(...) Cronenberg trocou o antigo conflito do Bem contra o Mal para o conflito cartesiano de corpo e mente – ou, para parafrasear W.B. Yeats, o terror sentido pela ‘alma imortal presa ao corpo de um animal agonizante’”. Com isso, certamente o crítico está querendo dizer que Cronenberg procura mostrar o que está por trás das aparências, da superfície. O próprio diretor disse: “Não existe isso de filme realístico. E quando eu digo isso estou apenas repetindo Nabokov quando ele diz que não existe essa coisa de romance realístico. Cada romance, cada filme, é a invenção de um mundo. (...) Meu filme The Brood pode ser visto como uma versão de pesadelo de Kramer Vs Kramer, e por esse motivo, na minha opinião, é mais realístico. (...) Quando Kramer vai para a cama à noite, ele sonha The Brood”.
O crítico ressalta que o conflito entre corpo e mente também pode ser percebido na divisão entre imobilidade e movimento que ocorre em suas histórias. Cronenberg disse que “Se você quiser simplificar isso, a mente é a narrativa intrincada e o corpo a emoção visceral. Em cada filme ambos são representados, mas nem sempre perfeitamente misturados, o que parece ser parte do conflito”.

Michael Ironside, no combate final em Scanners (Canadian Film Development Corporation/ Filmplan International/ Montreal Trust Company of Canada).

Também para a Heavy Metal, dessa vez na edição de setembro de 1984, Cronenberg foi entrevistado por Lou Stathis, então um dos editores da revista. No texto introdutório, Stathis disse que os filmes de Cronenberg “(...) ao contrário dos filmes de seus contemporâneos, não existem apenas para chocar, entreter, encher salas de cinema ou lembrar sua adolescência perdida. Eles são o autoexame exteriorizado de um pensador, documentos humanistas revelados e expressos no repertório de imagens do consumo de massa”.
Ao responder a uma questão a respeito do medo da “ciência enlouquecida” de seus filmes, Cronenberg disse que “O que eu realmente estou dizendo nos filmes é que as coisas são mais complexas e imprevisíveis, e que na realidade existe uma certa energia criativa no universo que segue por conta própria, e quando nos ligamos a ela existe um certo elemento que assume o comando para mudar a forma daquilo que iniciamos. E fica fora de nosso controle e tem consequências que vão além de nós. Por exemplo, recentemente alguns cientistas surgiram com um organismo de algum tipo que protege as colheitas de uma geada repentina – alguma coisa de uma pesquisa de DNA recombinante – e eles estão dizendo ‘bem, não há perigo, vamos apenas usar um pouco disso’. E eu não posso acreditar nesses caras – eles estão agindo como os cientistas em um de meus filmes. Eles honestamente não acham que algo de ruim pode acontecer ao liberar esses micro-organismos inteiramente novos no mundo”.
E esses cientistas irresponsáveis existem em praticamente todos os filmes do gênero de Cronenberg, ainda que o tema do “cientista louco” seja bem mais antigos do que isso, remontando aos primeiros filmes da ficção científica e do terror, nos anos 1930 e 1940.
Lou Stathis disse a Cronenberg que os filmes dele parecem terminar com um toque de “romantismo sombrio”, com o que o diretor concordou. “O que estou dizendo”, contou Cronenberg, “é que eu quero esperança, mas eu quero que ela seja real e dura. Eu quero que seja não idealizada, mas absolutamente real, de modo que eu possa dizer ‘Essa esperança é tão desagradável que tem de ser real’. E, para mim, esse é o único tipo de esperança que vai funcionar. Fantasias obviamente não vão funcionar”.

James Woods, alucinando com sua televisão e os lábios de Deborah Harry, em Videodrome (Filmplan International/ Guardian Trust Company/ Canadian Film Development Corporation/ Famous Players Limited).

Cronenberg não foi o primeiro e, certamente, não foi o último diretor cujos filmes enfrentaram acusações e tentativas de censura, algo um tanto comum em particular com os filmes de terror. Na entrevista a Lou Stathis ele falou da irritação que lhe causou algumas atitudes do Ontario Censor Board – uma espécie de comissão de censura – dizendo que é uma “(...) súbita invasão em sua vida de uma força como essa Comissão de Censura, que não quer conversar com você, e pega algo em que você trabalhou por dois anos e a corta e, então, devolve a você; e é a lei, você pode ir para a prisão se tentar mudar – isso é assustador”.
O diretor disse que o que realmente o incomodava era a falta de compreensão daquelas pessoas da comissão sobre o que é a arte e para que ela serve, porque deve existir arte e a diferença entre arte e vulgaridade. “Ou mesmo”, disse, “entre arte vulgar e vulgaridade. O que é um pouco mais difícil”. Segundo Stathis, alguns dos filmes de Cronenberg, como Calafrios e Enraivecida, testam os limites entre arte e vulgaridade, ao que ele respondeu: “É, mas as pessoas estavam preocupadas com Videodrome porque nele uma mulher queima seus seios e parece gostar disso – e a grande nova tendência na censura para ser a descrição das mulheres nos filmes. Se elas são retratadas como gostando da dor, isso é ruim. O problema, é claro, é que se você escutar cada grupo de interesse – seja amplo, como as mulheres, seja pequeno, como uma minoria étnica em particular – você não será capaz de escrever nada. No fim das contas vai haver alguém que vai se ofender com tudo o que você fizer”.

Deborah Harry, na cena de Videodrome que Cronenberg citou, com a personagem queimando o seio com um cigarro.

O problema, segundo Cronenberg, é que essas comissões de censura – e, imagina-se, qualquer outro tipo de controle da produção artística – tentam estabelecer o que pode se chamar de “padrões comunitários”, ou o que pode ser considerado aceitável ou “normal” segundo esses padrões. “Bom”, diz Cronenberg, “você já tem um problema aqui porque um artista está sempre, de uma forma ou de outra, pressionando contra esses padrões de normalidade, e então, por definição, é possível que um artista esteja além ou fora desses padrões”.
O diretor diz que existe uma diferença entre esses mecanismos de controle social e outros, mais sutis, que se infiltram em nossa sociedade. Enquanto os primeiro são um esforço muito consciente por parte das pessoas em controlar o que outros veem, fazem e pensam, os mecanismos mais sutis são “(...) o que McLuhan descreveu como a forma pela qual o nosso meio ambiente – que é criado por nós – retorna para nos controlar e nos remodelar, sem controle”.

Ronald Mlodzik em Stereo (Emergent Films Ltd.).

Desde seus primeiros trabalhos Cronenberg tem resistido a quaisquer pressões por adaptar-se ou deixar de fazer o que ele considera essencial na arte. Na matéria de Timothy Lucas em 1981, o diretor dizia: “No passado, as pessoas perguntaram se eu me preocupava com os efeitos de minhas imagens nas crianças e, ultimamente, eu tenho me expressado como Nabokov fez, dizendo que, como um cidadão e um pai, eu tenho responsabilidades sociais, mas como artista eu não tenho absolutamente qualquer responsabilidade com qualquer um”.
Ele reforçou esse posicionamento para Lou Stathis, três anos depois, afirmando que realmente acreditava que um artista não tem responsabilidade social, seja qual for, quando está sendo um artista. “(...) eu realmente acredito que você deve ser capaz de dizer qualquer coisa em sua arte – permitir qualquer coisa, confessar qualquer coisa, fantasiar qualquer coisa, sugerir qualquer coisa. Porque isso está na própria natureza da arte. Eu penso que tem de ser dessa forma – veja, é apenas ‘dizer’ qualquer coisa, não ‘fazer’ qualquer coisa. Há uma diferença. Eu penso que a arte deveria ser perigosa. Se não for, é inútil, não deveria existir, porque então se torna apenas entretenimento. Entretenimento não é perigoso. Arte é perigosa, e deve ser perigosa”.

                                                                Ronald Mlodzik, com uma vestimenta vampírica, em Stereo.

E os primeiros passos de David Cronenberg na arte perigosa de construir universos e situações aterrorizantes começou timidamente com alguns filmes que nem sempre são lembrados com carinho pelos críticos. E, convenhamos, alguns deles são bem chatos, em particular os primeiros longas, Stereo (1969) e Crimes do Futuro (Crimes of the Future, 1970).
Sobre esses dois trabalhos iniciais, Lou Stathis disse: “Parte fc new-wave, parte vanguarda francesa não-narrativa, e parte filme pretensioso de estudante com tagarelice jocosa, eles são raramente vistos e dolorosamente chatos (como o próprio perpetrador admite)”.
Mathew Downward, escrevendo sobre Stereo para The Encyclopedia of Science Fiction, entendeu que assim como o filme é dramaticamente tolo também é tematicamente interessante. O título completo é Stereo (Tile 3B of a CAEE Educational Mosaic), e o filme foi realizado com um orçamento de cerca de 3.500 dólares.

Arlene Mlodzik, em Stereo.

O CAEE é o Canadian Academy for Erotic Enquiry, local onde um grupo de jovens voluntários, em um futuro qualquer, submete-se a experiências que envolvem operações no cérebro e a remoção de seu poder de fala. O resultado é que eles desenvolvem capacidades telepáticas e as experiências fazem com que eles rompam barreiras e repressões sexuais.
O interesse ao qual Downward se referiu talvez seja apenas histórico, no sentido de que o tema antecipa os temas centrais da maioria dos filmes de Cronenberg, ou seja, a divisão entre mente e corpo, assim como a intervenção da ciência na vida das pessoas, alterando seus comportamentos. Fora isso, o filme é realmente entediante, com quantidades imensas de narrativas explicando os procedimentos e teorias envolvidas no experimento – segundo se diz, a câmera utilizada por Cronenberg para filmar, em preto e branco, era tão barulhenta que não era possível gravar os diálogos.

Seu filme seguinte, Crimes do Futuro, frequentemente é apresentado como uma obra irmã de Stereo, realizada com um orçamento maior de 20 mil dólares, e igualmente servindo basicamente para pavimentar o terreno que o diretor iria seguir com maior habilidade nos anos seguintes.

                                                  Ronald Mlodzik, em Crimes do Futuro (Emergent Films Ltd.).

Mais uma vez, apresenta um experimento científico alterando dramaticamente a vida das pessoas. Em vez de um cientista louco, é um dermatologista louco, Antoine Rouge, o responsável por uma catástrofe, uma epidemia mundial provocada por um produto colocado em cosméticos, e que matou toda a população feminina sexualmente madura. Além disso, os homens regrediram a estágios primitivos do desenvolvimento biológico da espécie. Para completar, o louco Antoine Rouge pode ter reencarnado no corpo de uma menina.
O crítico Peter Nicholls, um dos criadores e editores de The Encyclopedia of Science Fiction, também ressalta que o filme é mais conhecido por apresentar muitos dos temas e estratégias da produção futura de Cronenberg como “(...) a sátira deliberadamente de mau gosto, a corrupção moral da sociedade, a metamorfose humana criada pela irresponsabilidade tecnológica, a metáfora sexual no centro do argumento, e o contraste entre cenários estéreis e a destruição e mutação da carne”.

Ronald Mlodzik, em Crimes do Futuro.

Assim como no filme anterior existia o CAEE, aqui existe a Casa da Pele (House of Skin), na qual o dermatologista trabalhava, e onde se encontra agora um de seus seguidores, Adrian Tripod (Ronald Mlodzik), que tenta saber sobre o destino de Antoine Rouge. Os “crimes do futuro” anunciados no titulo consistem na pedofilia com fins de procriação, uma vez que apenas as meninas não foram afetadas pela epidemia. Segundo Nicholls, o enredo é vagamente compreensível, enquanto Phil Hardy diz que as guinadas excêntricas do enredo nascem da disparidade entre teoria abstrata e os efeitos não intencionais da prática experimental. Para Hardy, essa disparidade ou divisão pode ser vista de forma impecável no fato de que todas as instituições radicalmente ineficientes dedicadas à genética e produção psíquica situam-se em ambientes de “esterilidade arquitetônica”.
Em 2021, David Cronenberg começou a filmar uma nova versão de Crimes of the Future, com locações na Grécia; e, pelas primeiras informações apresentadas, vai trazer um enredo diferente do original.

                                                              Allan Kolman e Susan Petrie, em Calafrios.

Cronenberg dirigiu uma série de filmes menores para a TV antes de produzir Calafrios (Shivers, 1975), também conhecido pelos títulos The Parasite Murders e They Came From Within. A maioria dos críticos concorda que esse foi o filme que colocou Cronenberg no ambiente do cinema comercial, trabalhando com um orçamento bem maior do que os filmes anteriores, cerca de 180 mil dólares. Peter Nicholls destaca que é o primeiro filme comercial do diretor, “notável por suas metáforas visuais consideravelmente ousadas”.
Lou Stathis disse que o filme parece o livro High Rise, de J.G. Ballard, como se fosse escrito por Philip José Farmer sob efeito da droga MDA, e “(...) questiona a prudência da depravação sexual, oferecendo apenas respostas ambivalentes”.
Mais uma vez um mal é solto no mundo quando um cientista cria um parasita ao tentar desenvolver um organismo benéfico. A ideia inicial era criar um parasita e inseri-lo no corpo das pessoas para que ele curasse determinadas doenças. Mas um dos envolvidos resolve mudar as coisas por conta própria, entendendo que o ser humano precisa voltar a estar em contato com suas emoções mais básicas, mais primitivas, e cria um parasita que é uma mistura de afrodisíaco e doença venérea, podendo ser transmitido de uma pessoa a outra. Os infectados tornam-se sedentos de sexo e, violentamente, começam a infectar mais e mais pessoas.

Fred Doederlein como o doutor Emil Hobbes, matando Annabelle (Cathy Graham), que iniciou o surto de alucinados sexuais, em Calafrios.

E o parasita – uma espécie de verme sangrento, com formato definitivamente fálico – pode locomover-se por conta própria, procurando vítimas, ou reproduzir-se e sair do corpo de uma pessoa para infectar outras, geralmente entrando pela boca, mas nem sempre.
O cenário é um edifício residencial em uma ilha de Montreal, um prédio isolado que oferece todos os benefícios da vida moderna – ou que era a vida moderna em 1975. Ocorre que uma das moradoras submete-se à operação do cientista e começa a espalhar a infecção por todos os moradores, de todas as idades.
Peter Nicholls destaca que o filme tem sequências que o colocam na categoria que se convencionou chamar de “splatter movie”, um subgênero do terror repleto de cenas sangrentas e graficamente violentas, além de cenas do tipo “claramente repugnantes”, lembrando a cena em que Barbara Steele – famosa por estrear filmes de terror de alguns dos principais diretores do gênero – está tomando banho de banheira e o parasita sai pelo ralo, entrando em sua vagina. Mas Nicholls também diz que o filme “(...) transcende o gênero dos filmes ‘exploitation’ ao qual pertence por meio de sua inteligência e intensidade, e sua propensão a seguir seus axiomas até suas conclusões”.

                                       Barbara Steele sendo atacada na banheira, em Calafrios.

E não foi um filme fácil para Cronenberg. Ele disse em entrevista que teve, literalmente, de aprender a dirigir enquanto trabalhava no filme. Até então, ele apenas tinha feito os dois filmes independentes, nos quais fazia de tudo, de modo que sequer sabia qual era a função de cada uma das pessoas da equipe técnica, ou como dirigir e orientar os atores. Sem falar que tudo teve de ser feito em 15 dias, que era o prazo de produção que o dinheiro podia pagar.
Em várias matérias podemos ver que são apontadas semelhanças entre Calafrios e Alien, O Oitavo Passageiro, e aparentemente isso não é por acaso, uma vez que Cronenberg também disse que Dan O’Bannon, roteirista de Alien, afirmou ter assistido ao filme de Cronenberg. A semelhança entre o parasita de Cronenberg e o de Alien realmente existe; o de Calafrios também pode queimar as pessoas, como se tivesse ácido em sua composição. As diferenças terminam ao final de cada filme, uma vez que o parasita de Cronenberg não é detido, e espalha-se por Montreal e, quem sabe, pelo planeta.

Nem as crianças são poupadas em Calafrios.

Phil Hardy disse que o filme teve uma recepção muito ruim, especialmente no Canadá, “(...) por seus efeitos especiais sangrentos orquestrados de forma calculada, os mais gráficos no cinema até aqueles do notadamente semelhante Alien”. Por outro lado, Cronenberg declarou que os efeitos especiais de Joe Blasco meio que foram sendo encontrados ao longo do filme, com técnicas improvisadas que acabaram se tornando importantes no cinema de terror. Phil Hardy completa seu entendimento sobre a importância dos efeitos especiais: “Os efeitos especiais, a medida que os parasitas emergem e pulam de pessoa a pessoa, são extraordinariamente chocantes, não particularmente pelo sangue, mas porque eles tornam visível e concretizam a sensação de impureza associada à transmissão de doença venérea”.

Paul Hampton, tentando salvar Lynn Lowry da multidão enlouquecida, em Calafrios.

Hardy também comparou a estrutura do filme à de A Noite dos Mortos Vivos (Night of the Living Dead, 1968), de George Romero, com um casal tentando deter a loucura sexual que toma conta do prédio, mas finalmente sucumbindo; “(...) mas a de Cronenberg”, diz Hardy, “é a visão muito mais perturbadora e mais próxima da realidade”.
O crítico John Stanley, em seu livro Creature Features (2.000), concorda com as comparações com os filmes de Romero e Ridley Scott. “(...) tem a atmosfera de George Romero”, ele diz, “e um toque de Alien antes de Alien ser feito, e se qualifica como um filme que estabelece tendências”.
A comparação com filmes de zumbis é inevitável e imediata, em particular quando se chega às cenas finais, com uma multidão de pessoas infectadas perseguindo o sobrevivente não infectado. E, como os zumbis, esses também querem a carne dele, ainda que não para os mesmos fins.

Marilyn Chambers, logo após a operação, em Enraivecida (Dunning-Link-Reitman Productions/ Cinépix Film Properties/ Cinema Entertainment Enterprises/ Canadian Film Development Corporation/ Famous Players)..

O filme seguinte de Cronenberg foi lançado no Brasil com o apelativo título Enraivecida – Na Fúria do Sexo (Rabid, 1977), e é inferior a Calafrios, ainda que apresente uma temática semelhante. Muitos comentários destacam a presença de Marilyn Chambers como a personagem central, Rose; na época, ela era uma das mais conhecidas atrizes do cinema pornô.
Ela interpreta uma mulher que teve sérias queimaduras após sofrer um acidente terrível de moto. Ela é levada à clínica Keloid para cirurgias plásticas, onde é submetida a uma operação inédita pelo doutor Dan Keloid, utilizando enxertos de pele “morfogenicamente neutra”, seja lá o que isso signifique. O mais importante é que Cronenberg apresenta mais uma vez a interferência da tecnologia humana transformando vidas de forma radical.

                                                                         Marilyn Chambers, sofrendo com sua ânsia por sangue.

Depois de passar um tempo em coma, Rose desperta com a pele perfeita, porém com uma sede insaciável por sangue. Além disso, como ela perdeu parte do intestino, a “pele neutra” desenvolveu-se para formar um novo órgão, uma espécie de falo que surge de uma abertura em sua axila, com o qual ela perfura as vítimas que delicada e amorosamente abraça. As vítimas, por sua vez, como ocorre com as vítimas de vampiros ou de zumbis, tornam-se pessoas furiosas, e logo uma epidemia de ataques de raiva incontrolável e violenta toma conta da cidade de Montreal.
Apesar de a atuação de Marilyn Chambers ter sido duramente criticada por vários especialistas, o próprio Cronenberg declarou que ficou surpreso com sua atuação segura. Lou Stathis disse que ela esteve “surpreendentemente convincente” no papel, e destaca que, como em outras obras de Cronenberg, “(...) a ambivalência prevalece, cristalizada pela imagem do abraço mortal de Marilyn, um ato de calor amoroso transformado em punição pelo desejo”.

Marilyn Chambers, com sua extensão fálica na axila, depois de atacar Susan Roman.

Phil Hardy considerou que o filme é praticamente uma refilmagem de Calafrios, mas sem o poder do filme anterior, “(...) apesar de seu final apocalíptico semelhante”. Ou um final, como disse John Stanley, desagradável, em um filme “morbidamente irresistível”, com efeitos gráficos capazes de fazer “espumar pela boca”.
Para Hardy, o filme é repleto de choques devido a como Cronenberg muda sua narrativa flexível, primeiro em uma direção, depois em outra, de uma forma surpreendentemente divertida. “Mas”, diz Hardy, “se Enraivecida é um filme mais bem feito do que Calafrios, também é um filme bem mais cuidadoso”.
Peter Nicholls e John Brosnan escreveram que a estrutura do filme é bem parecida com a Calafrios, mas que “(...) esse é mais suavemente dirigido, mas talvez menos intenso, e pelos padrões de Cronenberg, é um filme exploitation (de apelação) convencional”, ressaltando que, para as demais pessoas, um filme de terror com características médico-freudianas, com uma personagem que praticamente muda de sexo, desenvolvendo um pênis e tornando-se assassina, “(...) realmente vai parecer bizarro”.

                            Samantha Eggar, observando sua criação em Os Filhos do Medo.

A maioria dos críticos concorda que Filhos do Medo (The Brood, 1979) é o filme mais competente de Cronenberg até aquele momento, o mais bem acabado e com as melhores atuações, em particular de Oliver Reed e Samantha Eggar. Os dois estão envolvidos em um tratamento psicológico inédito, com Reed como o Dr. Hal Raglan, diretor do Somafree Institute of Psychoplasmics, e Eggar como Nola Carveth, uma de suas pacientes.
O psicólogo utiliza uma técnica explicada em seu livro, The Shape of Rage (A forma da raiva), e o título da clínica é mais um daqueles nomes sensacionais inventados por Cronenberg em seus filmes. A técnica psicoplásmatica consiste em levar os pacientes a dar forma física às suas raivas, mas as coisas vão longe demais.
O marido de Nola, Frank Carveth (Art Hindle) fica cada vez mais desconfiado do tratamento e isolamento a que sua esposa está sendo submetida, e começa uma investigação com ex-pacientes de Raglan, descobrindo que eles passaram por modificações físicas. O problema agrava-se quando Frank descobre arranhões nas costas de sua filha Candice (Cindy Hinds) e resolve suspender as visitas da filha à mãe, na clínica, imaginando que ela é a responsável por agressões a criança. No dia em que Frank deixa a filha com a mãe de Nola (Nuala Fitzgerald), a avó é atacada e morta na cozinha da casa por uma estranha criatura do tamanho de uma criança.

Cindy Hinds, como a filha do casal, sendo atacada pelas criações da mãe.

Os eventos crescem em intensidade e violência, com mais criaturas-crianças assassinas surgindo a atacando pessoas. Finalmente, descobre-se que Nola está criando esses seres com o poder de sua ira, tornando sua ira real. Em uma das cenas mais pesadas do filme, Nola desenvolve uma espécie de útero externo e dá à luz mais uma de suas criações.
Lou Stathis disse que Filhos do Medo é o roteiro mais coerente de Cronenberg e, como o próprio diretor declarou, está diretamente relacionado com as relações familiares, é claro que levadas ao extremo. Segundo Stathis, o subtexto do filme pode ser entendido como a “(...) inveja do útero, ou o eterno ciúme masculino da ligação intensa entre mãe e filha”.

Os estranhos seres formados pela raiva materna surgem na escola da filha e atacam a professora.

Phil Hardy diz que, apesar de muito da ação estar centrada na terapia psicoplasmática, “(...) esse filme, aparentemente mais profundamente pessoal, verdadeiramente concentra-se na instituição da família. O corpo humano permanece o terreno evidente do terror, na medida em que seu potencial para crescimento e cópia perversa é concretizado na tela, mas a origem dos traumas que causam tanto as mutações cancerígenas quanto o nascimento de uma geração de ‘crianças da raiva’ assassinas é explicitamente identificada como sendo a unidade social nuclear”.
Peter Nicholls disse que é preciso ser um cineasta extraordinariamente confiante para dirigir um emaranhado como esse sem hesitação, utilizando o corpo como metáfora, com sucesso, convicção e inteligência, e ainda superando a tendência de evocar nojo, como diretores inferiores poderiam se satisfazer em apresentar, chegando a ter uma compaixão pelo monstruoso como sendo, afinal, apenas humano. Nicholls ainda diz que existe um subtexto sobre as crianças como vítimas, sofrendo uma dor transmitida ao longo das gerações. “Todos os eventos”, diz Nicholls, “são vistos com uma contemplação decidida e inocente, ela própria infantil, que caracteriza o estilo surreal de Cronenberg”.

Oliver Reed tentando salvar Cindy Hinds.

Phil Hardy diz que poderia haver alguma crítica para uma provável misoginia no método psicossexual de Cronenberg, talvez alegando “os pecados das mães”, mas “(...) o poder que ele gera ao visualizar outro experimento psicogenético tornando-se sangrentamente errado é quase devastador”. Ele finaliza dizendo que “Para colocar de outra forma, existe uma segunda linha de filmografia convergindo em direção à de Cronenberg que vai do sóbrio documentário-drama de Ken Loach/ R.D. Laing, Vida em Família (Family Life, 1971) até variações genéricas tão diversas quanto Inverno de Sangue em Veneza (Don’t Look Now, 1973), de Nicolas Roeg, e A Comunhão (Communion, 1976), de Alfred Sole. Em Filhos do Medo, ambas as linhas colidem com um impacto perturbador”.
O filme também teve a produção mais cara de Cronenberg até então, e também foi o maior sucesso de bilheteria, o que seria superado, e muito, por seu filme seguinte.

A cena da cabeça explodindo que tornou Scanners conhecido em todo o mundo.

E chegamos ao famoso “filme da cabeça que explode”, e que tornou Cronenberg bem mais conhecido em todo o planeta; Scanners, Sua Mente Pode Explodir (Scanners, 1981), título que, posteriormente, com o lançamento em vídeo, mudou para Scanners, Sua Mente Pode Destruir. Como as duas coisas acontecem no filme, parece que está tudo certo. Também vivíamos no Brasil a época dos títulos compostos para os filmes.
Seja como for, Scanners tornou o nome de Cronenberg bem mais conhecido do público e, ao mesmo tempo, não foi tão bem recebido por parte da crítica, que considerou que o diretor estava cedendo terreno às produções mais comerciais. No entanto, ele não abandonou sua temática preferida.

Patrick McGoohan, como o dr. Paul Ruth, e Jennifer O'Neill, como Kim Obrist.

Claro que o filme tem elementos que o tornam mais popular; telepatas poderosos, os scanners, capazes de influenciar o comportamento das pessoas, capazes de fazer cabeças explodirem; existem perseguições de carros, explosões de carros, pessoas pegando fogo, veias saltando; existe uma investigação em curso, uma tentativa de descobrir o que o malvado do momento está querendo fazer. E, é claro, existem organizações de scanners, lutando entre si. Uns sob o comando de Darryl Revok, interpretado por Michael Ironside – que teria uma longa carreira como vilão em filmes de fc – querendo compor um exército de scanners e obter o controle mundial, formando um império imbatível; outros, sob a organização de Kim Obrist (Jennifer O’Neill), tentando sobreviver em meio à confusão que se tornou suas mentes, capazes de captarem pensamentos dispersos das pessoas, quase enlouquecendo com isso; e existe o herói do momento, Cameron Vale (Stephen Lack), que passa a agir contra Revok a mando da empresa de segurança ConSec e orientado pelo dr. Paul Ruth, interpretado por Patrick McGoohan – conhecido entre os fãs de fc por sua participação como Número Seis no estranho e bom seriado inglês O Prisioneiro (The Prisoner, 1967-1968) – que tem uma atuação, digamos, entediada. E, perto do fim, existe uma revelação, seguida por um confronto inevitável e um final com mais uma revelação e uma surpresa. Tudo isso com efeitos especiais de Rick Baker.

Cameron Vale (Stephen Lack), participando da batalha final contra Revok.

São elementos suficientes para fazer do filme um sucesso comercial, em particular no início dos anos 1980, quando os filmes de ficção científica e terror não precisavam ter a quantidade de ação que os produtores entendem que devam ter hoje em dia – e entenda-se por isso lutas intermináveis, muitos tiros de quaisquer tipos de armas, pessoas caindo de alturas incríveis e aterrissando com o famoso e hoje já irritante “estilo Matrix”, efeitos especiais em tal quantidade que não sabemos mais o que é encenado e o que é composto por computadores, perseguições inviáveis ou impossíveis em carros ou quaisquer outros aparelhos, voadores ou não, e por aí em diante.

Fred Doederlein, sendo testado em Scanners.

Porém, comercial ou não, isso não impediu Cronenberg de representar o conflito ou divisão entre corpo e mente que marca sua carreira, aqui talvez mais visível devido à violência com que ele ocorre.
Entre os críticos que não gostaram tanto do filme está Lou Stathis, que disse que ao mesmo tempo em que Scanners é o mais bem sucedido de Cronenberg até então – e, segundo ele, sem dúvida devido à cabeça explodindo – também é o menos satisfatório, sendo “(...) basicamente, uma caçada paranoica razoavelmente tola entre o bom psíquico-mau psíquico com uma reviravolta melodramática no final”. Phil Hardy também não teve opinião tão boa sobre o filme, ainda que ressaltando a existência de um humor negro cruel, mas entendendo que não houve tanta habilidade para orquestrar os momentos de tensão. John Stanley também destacou alguns problemas, entendendo que o filme, ainda que fascinante, é um tanto artificial. Para ele “Cronenberg obteve uma atmosfera estranha e os efeitos especiais (...) chocaram a audiência e deram ao filme uma propaganda boca a boca”, entendendo que Cronenberg poderia ter evitado o enredo bagunçado.

     Michael Ironside, esforçando-se para explodir mais uma cabeça.

Já Peter Nicholls e David Langford dizem que “Esse filme superior de poderes psíquicos facilmente supera Carrie, a Estranha (Carrie, 1976) e A Fúria (The Fury, 1978). (...) O filme é coreografado da forma mais exemplar, da famosa sequência da cabeça explodindo no início ao duelo telepático final entre os irmãos e sua consequência enigmática. Também é avançado em termos de ficção científica, trabalhando variações sofisticadas do tema dos mutantes, muito à frente das costumeiras cruezas dos filmes com poderes psi. O inquieto casamento de Cronenberg entre metáfora intelectual e exploração inculta raramente funciona melhor do que aqui, apesar de algumas atuações apáticas, especialmente de Lack”.
O filme teve várias sequências, todas bem inferiores ao original, e também deu início a uma série de filmes envolvendo poderes telepáticos e conflitos entre grupos opostos. A imensidade de filmes medíocres ou realmente péssimos que surgiram nos anos seguintes seguindo essa linha mostra uma direção contrária ao que disse Phil Hardy: “Superando primos em segundo grau como Carrie, Patrick (Patrick, 1978) e A Fúria com seus efeitos e eficiência, Scanners também sinalizou o fim virtual do ciclo de trhillers telecinéticos ao levar o tema ao seu limite”.

James Woods com um aparelho que, teoricamente, deveria gravar suas alucinações, em Videodrome.

A melhor frase que já vi sobre o filme Videodrome (1983) foi de Lou Stathis, no texto já citado na revista Heavy Metal: “Como em um bom romance de Philip K. Dick, você nunca sabe o que fazer primeiro: rir, ir para um manicômio ou tentar desesperadamente acordar”. Parece bem apropriado para um dos filmes mais perturbadores de Cronenberg, e um dos melhores do gênero nos anos 1980; e, talvez, do cinema de ficção científica.
No Brasil, como já estávamos na época dos nomes compostos, o filme foi apresentado com o título idiota de Videodrome: A Síndrome do Vídeo. E, como ocorreu com outros filmes de Cronenberg, também recebeu críticas positivas e negativas. O próprio Lou Stahis, que já não havia gostado do final de Scanners, também achou o final de Videodrome problemático, ainda que me pareça um exagero, uma vez que os acontecimentos pareciam levar o personagem central a um beco sem saída.

A visão da televisão transformando-se e entrando na realidade e tornando-se carne.

Por outro lado, segundo Stathis, até chegar ao final trata-se de um filme brilhantemente complexo e implacavelmente horripilante. O crítico disse a Cronenberg que ao assistir ao filme teve uma intensa sensação indefinida de pavor, entendendo que o diretor poderia ter utilizado técnicas subliminais, o que ele negou afirmando: “Eu não acho que a tecnologia jamais vai funcionar tão bem quanto a arte em termos de criar a atmosfera e o tom em uma pessoa. Eu penso que é o acúmulo de muitos detalhes e coisas em um filme que fazem isso; mas, não, eu nunca sequer pensei em usar subliminais. (..) Tecnicamente, eu sou muito conservador, ainda que, no fim das contas, Videodrome não seja um filme conservador”.

Um dos detalhes que causaram tanta repulsa em parte da crítica.

O elenco traz James Woods no papel de Max Renn, sócio de um canal de televisão que apresenta filmes sensacionalistas e pornográficos, que está procurando novos produtos, mais ousados, para o canal. Um de seus funcionários, especializado em captar e piratear imagens utilizando uma antena parabólica, apresenta a ele um programa chamado Videodrome, que parece ser um snuff movie – um daqueles supostos filmes em que cenas de tortura e assassinato não são encenadas, mas reais – e Max se interessa em conhecer mais.
Em um programa de televisão para o qual é convidado, Max conhece a radialista Nicki Brand, interpretada por Deborah Harry, na época já famosa como a vocalista e fundadora da banda de rock new-wave, Blondie. Os dois envolvem-se em um relacionamento, e Nicki demonstra interesse por Videodrome, revelando uma tendência sadomasoquista.

                                                                                      James Woods e Deborah Harry.

Max fica sabendo que o especialista em mídia, Brian O’Blivion, está de alguma forma envolvido com Videodrome, e vai procurar informações sobre ele no local dirigido por sua filha, e que tem um daqueles nomes sensacionais inventados por Cronenberg: Missão Raio Catódico, um local no qual pessoas sem posses podem assistir a TV e, sabe-se lá como, passar por algum tipo de cura ou melhoria em suas vidas.
O problema é que Videodrome foi projetado para provocar alucinações nas pessoas, e Max começa a sofrer imensamente com elas, enquanto é reprogramado para tornar-se um instrumento nas mãos do grupo que, de alguma forma, pretende “limpar” a América do Norte e retomar a força mundial que um dia tiveram.
A avalanche de alucinações (ou seriam transformações reais?) que assolam Max conduzem-no a situações extremas, com imagens arrepiantes de sua carne abrindo-se para receber fitas de vídeo ou uma arma, ou rasgando-se e derretendo-se para tornar a arma parte integrante de seu corpo, televisores ganhando vida, com imagens saindo das telas e invadindo o ambiente, de tal forma que não é mais possível determinar o que é exatamente a realidade.

James Woods, descobrindo que a abertura em sua barriga pode esconder uma arma.

Em seu livro Creature Features, John Stanley diz que Videodrome é um filme mal trabalhado, grotesco e repulsivo, além de uma bagunça mal consertada; também entendeu que a atuação de Deborah Harry é insípida e que ela e James Woods como sádicos são nauseantes. Obviamente, uma interpretação equivocada, especialmente porque o personagem de Woods não é um sádico, e o de Harry é masoquista, mas isso é o que menos importa na história, como foi citado anteriormente pelo próprio Cronenberg.
Phil Hardy disse que o filme é uma especulação áspera sobre uma futura era do vídeo que age tanto como o primeiro filme de terror McLuhanite – ou seja, com toques da teoria de Marshall McLuhan – como uma reprise divertida e atrevida de temas de sua própria obra. Para Hardy, “(...) Cronenberg nos leva a uma viagem realmente desconcertante através dos limites extremos da programação de TV e da psique dos espectadores (...) e primeiro investiga, depois penetra o espaço entre o sujeito e tela. (...) E com Cronenberg não dando qualquer indicação de onde pode estar situada a ‘realidade’ nesse esquema complexo, nós não podemos fazer nada a não ser compartilhar a fascinação temerária e possivelmente fatal de Wood”.

                                                                                                       A arma tornando-se parte da carne.

Para o crítico, existe um alto fator de aversão no filme, mas que também é compulsivo, “(...) e nisso reside a complexidade da incursão corajosamente conceitualizada de Cronenberg nos próprios debates acerca das representações do sexo e violência que frequentemente têm surgido em seus filmes anteriores”.

James Woods recebendo uma nova programação na forma de uma fita VHS inserida em seu corpo.

Peter Nicholls forneceu uma das críticas mais favoráveis ao filme, dizendo que Cronenberg produziu provavelmente o melhor e também o mais estranho de sua série de cenários de ficção científica para a medicina, mídia, metamorfose e religião, com ênfase nos três últimos. E fez isso situando seu filme escandaloso no centro dos debates dos teóricos da mídia a respeito da interação entre o espectador e a tela. “É uma história intrincada, também apresentando um guru da mídia, O’Blivion – que aparentemente tem como modelo Marshall McLuhan (1911-1980) – cuja filha declara após a divinização do pai como software: ‘Eu sua a tela do meu pai’.”
Nicholls disse que o filme acabou não agradando as pessoas mais sensíveis, e também, por ser muito intelectual, não agradou os fãs dos filmes de terror e FC mais dentro dos padrões, o que fez com que fosse mal nas bilheterias. “Mas”, finaliza Nicholls, “pode ter sido o filme de fc mais significante dos anos 1980 e, certamente, e antecipadamente, o mais cyberpunk”.

Assim como nos anos 1980 surgiram no Brasil vários filmes com os subtítulos – e muitas vezes com o título em inglês à frente – também foi a década dos filmes “A Hora”. Sabe-se lá por qual motivo ou qual filme inaugurou essa tendência, mas o filme seguinte de Cronenberg também foi batizado com A Hora da Zona Morta (The Dead Zone, 1983), e foi o segundo filme do diretor que não foi escrito por ele (o primeiro foi Escuderia do Poder [Fast Company, 1979], um estranho no ninho da produção de Cronenberg). Posteriormente, o “A Hora” foi trocado por “Na Hora”, o que não ajuda em nada. Também foi a produção mais cara até então – cerca de 10 milhões de dólares – e não teve prejuízo nas bilheterias, ainda que não tenha feito o sucesso que provavelmente era esperado. E ainda conquistou premiações importantes como o de melhor filme pela Academia de Filmes de Ficção Científica, Fantasia e Terror dos EUA e três premiações no Festival do Filme Fantástico de Avoriaz.
A história original é do livro Zona Morta (The Dead Zone, 1979), de Stephen King, um dos bons livros de uma das boas fases do escritor, e o primeiro a introduzir a cidade de ficção de Castle Rock, que posteriormente surgiria em outras histórias. E, curiosamente, é um dos filmes menos comentados de Cronenberg, ainda que seja uma das melhores adaptações para o cinema de uma história de King, e um filme sensacional. E talvez seja o filme de Cronenberg no qual seus temas preferidos surjam de forma mais sutil, ainda que a questão do poder da mente sobre o corpo esteja de certa forma bem representado.

Christopher Walken, em um dos momentos em que o personagem Johnny Smith tem uma visão, em A Hora da Zona Morta (Dino De Laurentiis Company).

Conta ainda com um excelente elenco, encabeçado por Christopher Walken, e também com Brooke Adams, Tom Skerrit e Martin Sheen. Apesar de não ter sido a opção de Cronenberg, Walken tem uma atuação excelente como Johnny Smith, um professor de uma pequena cidade do interior que tem uma vida que, tudo indica, será pacífica e perfeita, visualizando um futuro com sua paixão, Sarah (Adams). Até o dia em que ele sofre um acidente de carro e entra em coma.
Quando acorda, descobre que passou cinco anos naquele estado, que precisa retomar o controle do seu corpo debilitado, e que sua paixão casou-se e teve um filho. E, mais do que isso, aos poucos ele começa a perceber que, de alguma forma, o acidente e o coma lhe deram a capacidade de perceber detalhes da vida de uma pessoa tocando nela; e, em algumas ocasiões, também pode perceber o que o futuro reserva àquela pessoa, o que pode ser um dom ou uma maldição.
A sua capacidade acaba sendo conhecida e um xerife (Skerrit) pede sua ajuda para localizar um assassino em série, o que ele consegue fazer, porém sendo ferido na ocasião. Smith resolve, então, passar a ter uma vida mais isolada e começa a dar aulas particulares a crianças, entre elas o filho de um milionário, cuja vida ele acaba salvando ao visualizar um futuro no qual o garoto morria afogado. Assim, Smith percebe que, em suas visões, existe uma “zona morta”, e que o futuro pode ser transformado por suas ações.

                                                                 Smith, na caça de um assassino em série.

Esse conhecimento é o que move suas ações na terceira parte do filme, quando Smith conhece o Greg Stillson (Martin Sheen), candidato à presidência dos Estados Unidos. Em uma das ocasiões em que aperta sua mão, Smith vê o futuro terrível que aguarda toda a humanidade, uma vez que Stillson será responsável por iniciar uma guerra nuclear. E ele resolve agir para evitar isso.
O filme teve vários percalços antes de finalmente ser produzido, com outros diretores sendo cogitados e descartados, vários roteiros sendo escritos e rejeitados, inclusive um do próprio Stephen King, com o estúdio que detinha os direitos fechando, e os direitos sendo comprados por outra empresa, até chegar ao roteiro final de Jeffrey Boam, que teve várias revisões de Cronenberg.
John Clute e Peter Nicholls disseram que o cineasta acertou ao escolher uma cidade pequena para filmar, durante o inverno, o que deu um ar de intimidade. Assim, “Dentro desses limites psíquicos e físicos, uma história habilidosa e repleta de eventos desenvolve-se em menos de duas horas, sem parecer apressada”.

Johnny Smith, resolvendo por conta própria sua questão com o político perigoso.

Segundo eles, Cronenberg e Boam disseram em entrevista que conseguiram esse feito de compressão narrativa ao optar por uma estrutura narrativa dividida em três partes: o acidente de Smith e as consequências paranormais; a procura pelo assassino em série; e a destruição do político demagogo. “Mas isso apresenta de forma inapropriada o elegante poder alienante de Zona Morta, uma vez que há mais acontecendo aqui do que uma versão reescrita da estrutura em três atos comum do cinema ocidental. Zona Morta é melhor entendido como englobando um prólogo e cinco (talvez seis) atos, cada um dominado por um (ou dois) dos pulsos de epifania que transportam (e salvam) Smith quando ele aperta a mão de uma pessoa desconhecida. Cada um desses seis (ou sete) eventos de canalização é marcado por uma pausa no fluxo do tempo narrativo, durante a qual podem se passar meses: o que Smith não vê, nós também não, uma vez que o filme foi rodado quase totalmente do seu ponto de vista”.
Os dois críticos disseram que o filme parece ter sido realizado totalmente consciente de sua mensagem de que não existe qualquer esperança para o mundo baseada em algum super-herói da fc. “O próprio Smith”, dizem, “de fato não fez coisa alguma exceto expor o que os homens de poder são capazes de fazer”. Para eles, o filme mostra que não há saída, nenhuma pista de transcendência, o que é incomum em um filme de fc cujo protagonista morre. “Não há uma redenção extravagante; o gelo de Castle Rock não se rompe na primavera. Nada no filme sugere que o sacrifício de Smith diminuiu a probabilidade de a América entregar-se a outro Stillson”.

Jeff Goldblum, pronto para sua experiência em A Mosca (SLM Production Group/ Brooksfilms).

Cronenberg voltou a filmar uma história que não era de sua autoria em A Mosca (The Fly, 1986), ainda que tenha escrito o roteiro com Charles Edward Pogue, a partir da história original de George Langelaan, publicada pela primeira vez na revista Playboy, em junho de 1957. A história foi a base para a primeira adaptação para o cinema, com A Mosca da Cabeça Branca (The Fly, 1958). Também foi o maior sucesso de bilheteria de Cronenberg até então.
Jeff Goldblum interpreta o cientista inovador Seth Brundle, realizando experimentos de teleportação em seu laboratório, e Geena Davis interpreta a jornalista científica Veronica Quaife, a quem Brundle pede que documente seu trabalho, e com quem acaba se envolvendo sexualmente.
O filme de 1958 é hoje considerado entre os clássicos da ficção científica, mas é um conto de fadas para crianças perto da adaptação de Cronenberg. Financiado por uma grande empresa, Brundle constrói duas cápsulas, transferindo material de uma para outra por teletransporte. Mas quando resolve realizar a experiência consigo, algo sai errado. No momento em que ele se fecha na cápsula, uma mosca entra no compartimento sem que ele perceba e, ao realizar o teleporte, o computador entende os dois organismos como sendo um só, e faz com que o DNA de ambos se combine.

Goldblum e Geena Davis, aproveitando a energia extra do cientista.

A partir daí, Brundle começa a sentir os efeitos de uma transformação que, primeiro, tornam seu corpo muito mais forte, seus sentidos e desejos sexuais ampliados; e, depois, a transformação física acelera-se, até chegar à transformação total do humano em um monstro irreconhecível.
Com essa situação, Cronenberg pode trabalhar com alguns de seus temas preferidos de forma mais visível do que em Zona Morta, por exemplo. E o terror, nesse caso, é o da transformação da carne, da perda involuntária da humanidade, da identidade. Ao contrário de alguns de seus demais filmes, aqui o cientista não apenas inicia o processo de intervenção, mas também é o único a sofrer na carne seus efeitos maléficos. Claro, além do mal que ele pode fazer, e faz, a outras pessoas. E, em certa medida, também apresenta a oposição entre mente e matéria.

                                                                                Em plena transformação e ameaçando John Getz.

Peter Nicholls disse que, além de ser um filme mais aterrorizante do que o original, como é de costume Cronenberg “(...) confronta a natureza vulnerável e efêmera do corpo humano ao imaginá-lo se metamorfoseando; onde outras pessoas utilizam palavras para criar metáforas, Cronenberg usa a carne, de forma ambígua evocando exultação e aversão, o grotesco e o belo”.
Obviamente, um filme com cenas tão pesadas receberia muitas críticas e seria considerado asqueroso e nojento por parte dos especialistas, devido aos efeitos especiais de Chris Walas – que, aliás, lhe renderam um Oscar. Uma das críticas veio de John Stanley que, ao mesmo tempo em que considera os efeitos de Walas impressionantes, entende que a história perde credibilidade quando a namorada Geena Davis continua a amar a criatura horrenda em que Goldblum se transformou.

Transformação completada, Seth Brundle vira um imenso inseto.

Um exemplo de pontos de vista diametralmente opostos veio de John Scalzi, que disse: “Os temas de Cronenberg são ajudados pelo fato de que Goldblum e Davis são ambos excelentes; é preciso atuação de verdade para andar por aí com maquiagem de carne em desintegração e ainda fazer as pessoas simpatizarem com você – e, da mesma forma, para fazer parecer que você está apaixonada por um homem que está se transformando em um inseto. (...) Eles e Cronenberg fornecem à ficção científica de terror um de seus filmes emocionalmente mais sedutores, no qual o terror vem mais de locais mais profundos do que de meros sustos e efeitos especiais”.
Scalzi certamente considera esse o melhor filme de Cronenberg. Em seu livro The Rough Guide to Sci-Fi Movies esse é o filme de Cronenberg que ele comenta, e não, por exemplo, Videodrome.

O grupo de teste com seus consoles biológicos, com Allegra (jennifer Jason Leigh) ao centro, em eXistenZ.

E chegamos a eXistenZ (eXistenZ, 1999), o primeiro roteiro original de Cronenberg desde Videodrome. E, para variar, mais um que recebeu críticas positivas e negativas. O filme estreou na mesma época em que surgiu Matrix e, como também lida com o tema da realidade virtual, muitas comparações foram apresentadas, ainda que os objetivos, propostas e realizações dos dois filmes sejam totalmente distintos. Cronenberg continuou a apresentar seus temas preferidos e, aqui, parece ter atingido seu ponto máximo, em um filme que certamente pode ser incluído entre os grandes da ficção científica dos anos 1990.

Allegra brincando com uma das criaturas do mundo virtual.

Na mesma época, estreava também 13º Andar (The Thirteenth Floor, 1999), um bom filme que também foi prejudicado pela comparação com Matrix. John Stanley, que comprovadamente não gosta dos filmes de Cronenberg, apresentou em seu livro Creature Features uma daquelas críticas que, na melhor das hipóteses, são mal informadas, ao dizer que o filme de Cronenberg entra no mundo da realidade virtual, seguindo a onda de Matrix e 13º Andar, e finaliza dizendo que Cronenberg chegou muito tarde, uma vez que outros o venceram e fizeram filmes melhores. Ele só tinha de verificar as datas dos filmes para saber que eXistenZ estreou no mesmo ano dos demais; na verdade, em fevereiro, no Festival Internacional de Cinema de Berlim, antes dos demais. Se pesquisasse um pouco mais, saberia que a ideia para o filme começou a ser desenvolvida em 1995, após uma entrevista que Cronenberg fez com o escritor Salman Rushdie. E, é claro, os conceitos por trás dos filmes – três ótimos filmes – são totalmente diferentes.
Por algum motivo, muitos críticos parecem detestar as exposições de carnes e sua mescla com elementos de tecnologia, uma das marcas registradas de alguns filmes do diretor, e que aqui têm um papel fundamental.

Kris Lemche, na primeira tentativa de assassinar Allegra, com uma arma que dispara dentes humanos.

A história começa com um grupo de pessoas que deve testar um jogo inovador criado por Allegra Geller (Jennifer Jason Leigh). O console do jogo é algo biológico e é conectado às pessoas pelas bioportas que elas têm na base da espinha, permitindo que entrem em um mundo virtual extremamente realista. Quando estão se conectando, um homem da audiência abre sua mochila e retira uma arma que parece ser inteiramente composta por ossos e atira em Allegra, acertando-a com dentes humanos, certamente a primeira dica de que ou eles já estavam no jogo, ou o mundo em que a ação se passa é mais estranho do que pensamos.
Ela é retirada do local por Ted Pikul, um estagiário de marketing (Jude Law) e, juntos, iniciam uma fuga, uma vez que existe uma recompensa pela morte da criadora do game. Allegra trabalha para a Antenna Research, que tem como competidora a Cortical Sustematics; e ainda existe um grupo de resistência à utilização da realidade virtual, os Realistas, que se opõem às duas empresas.
Ted Pikul não tem uma bioporta e Allegra o convence a instalar uma, para que possam conectar-se e jogar eXistenZ, o jogo que ela criou. Quem instala sua bioporta é o mecânico Gas (Willem Dafoe), por sua vez atrás do prêmio pelo assassinato de Allegra. Ele instala uma bioporta defeituosa que acaba por danificar o console de Allegra e, ao tentar matá-la, é morto por Pikul. Eles dirigem-se ao local de trabalho de Kiri Vinokur (Ian Holm), o mentor de Allegra, para que ele conserte seu console e permita que ela e Pikul conectem-se e surjam em outro ambiente, tentando decifrar o que precisam fazer dentro do jogo.

Jude Law com a arma de ossos que dispara dentes, que ele juntou no mundo virtual da forma mais nojenta possível.

Inúmeras situações se sucedem até que Allegra possa declarar-se a vencedora do jogo, e todos os participantes começam a retornar à realidade; eles estão utilizando consoles normais, não biológicos, e cada um deles era um personagem na realidade virtual em que se encontravam. O criador do jogo, Yevgeny Nourish (Don McKellar), explica que se trata do jogo transCendenZ e pede que cada um dê sua opinião sobre o jogo.
Antes de saírem, Allegra e Pikul aproximam-se de Nourish e sua assistente Merle (Sarah Polley), retiram armas que tinham escondido no cachorro de Pikul, e matam os dois, gritando slogans contra transCendenZ e contra as distorções da realidade. Quando estão para sair do local, apontam suas armas para a pessoa que está na porta, que pede que não o matem e, em seguida, pergunta a eles se ainda estão no jogo. Allegra e Pikul não respondem, e o filme acaba.

                       Jude Law e Don McKellar, em uma fábrica asquerosa do mundo virtual.

Um final que, mais do que ser uma surpresa ou uma virada final, como alguns críticos pretendem, mais parece uma tentativa de manter a ambivalência e a sensação de que o jogo jamais acaba, que nossa percepção da realidade está definitivamente alterada e não podemos mais saber em que mundo estamos. Tudo indica que Allegra e Pikul também não sabem muito bem se estão na realidade virtual ou não, e os demais participantes igualmente; nenhum dos participantes reage aos assassinatos, como se estivessem sonhando ou tentando descobrir se ainda estavam no mundo virtual ou no mundo real. E o espectador obviamente também não fica sabendo. Assim, Cronenberg estende sua história para além do final do filme, ampliando a discussão sobre o que é real e o que é imaginação ou criação da mente. O final lembra muito o que faria Christopher Nolan com o final de A Origem (Inception, 2010), quando o pião de Leonardo DiCaprio fica girando sobre a mesa e não sabemos se ele estava parando ou não.
Quando falei de Videodrome, citei a referência de Lou Stathis às histórias de Philip K. Dick. Não sei exatamente qual a relação de Cronenberg com o escritor, mas em uma cena de eXistenZ, o personagem Pikul está em um quarto de motel com Allegra comendo um lanche, e a câmera focaliza, duas vezes, a marca no saco de comida: Perky Pat’s. Ora, Perky Pat é uma referência tanto ao conto de Philip K. Dick, Os Dias de Pat Prafrente (The Days of Perky Pat, 1963. No Brasil publicado em O Pagamento), quanto a Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (The Three Stigmata of Palmer Eldritch, 1965), que apresenta realidades virtuais tornadas reais por meio do uso de drogas.

Jennifer Jason Leigh e Jude Law, preparando-se para iniciar nova sessão de eXistenZ.

Jack Nicholls e Peter Nicholls, em The Encyclopedia of Science Fiction, estão entre os críticos que não colocam o filme entre os melhores de Cronenberg. Segundo eles, muitos espectadores vão achar uma grande falha o fato de que Cronenberg parece ter pouco conhecimento ou satisfação nos videogames da forma como eles existem no mundo real. “Os mundos dos jogos de eXistenZ e de transCendenZ são aparentemente moldados pelo jogador, mas eles carecem de objetivos óbvios, enredos ou coisas excitantes a se fazer. É como se a história de realidade virtual elaborada fosse não mais do que uma ferramenta para criar uma arena na qual o diretor pode montar um quadro de deliquescência, deformidade e fluxo metamórfico. Nessa fantasmagoria em constante mudança, a presença de vários fluidos corporais pegajosos é uma constante. O roteiro apresenta o ponto de vista de como os jogos podem dessensibilizar os sentidos do jogador para a violência, ou levar ao vício, mas Cronenberg cobriu o mesmo terreno com mais convicção em Videodrome”.
Como outros críticos também comentaram, Nicholls entende que o caminho percorrido por Cronenberg nesse filme foi melhor abordado por outros filmes, igualmente citando Matrix e O 13º Andar, mas a proposta de Cronenberg é nitidamente diferente, complementando de forma magnífica sua imersão nos temas que marcaram seus melhores filmes do gênero. Não importa se o mundo virtual do game imaginado por ele tem pouco a ver com o mundo dos games da vida real, uma vez que não é disso que ele está falando, mas da deterioração de nossa relação com o mundo e com a realidade. E, talvez mais do que isso, do perigo que representa nossa percepção limitada do mundo e como somos levados a acreditar e viver de acordo com as realidades que nos são apresentadas, que recebemos quase sem qualquer crítica.

Os filmes de Cronenberg nunca apresentam soluções fáceis, ou interpretações únicas, e por isso sempre têm sido recebidos com pontos de vista tão diversos pela crítica e, muitas vezes, com números de bilheteria que, certamente, nem chegam perto do sucesso financeiro de Matrix. Eles não são filmes para grandes audiências, porque são perturbadores, e nem todo mundo gosta disso. Uma das vantagens é que nunca tivemos de ver as sequências de Videodrome ou eXistenZ, como tivemos as sequências de Matrix, simplesmente tentando faturar mais algumas centenas de milhões de dólares para os produtores, porém sem apresentar qualquer novidade, seja no formato, seja nos conceitos desenvolvidos. Seria terrível ter de ver Videodrome 2: A Vingança da Nova Carne, ou qualquer coisa do gênero. Claro que Scanners foi aproveitado pelos produtores com uma série de sequências pavorosas, mas Cronenberg não teve nada a ver com isso. Ele simplesmente afastou-se educadamente e continuou a produzir seus filmes que cortam fundo na carne e na realidade.
Estou curioso para ver o que ele ainda pode fazer com seu novo Crimes of the Future.