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O MUNDO DOS SONHOS

ESPECIAIS/VE ESTADOS ALTERADOS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data28/03/2020
fonte
Desde sempre os sonhos e pesadelos têm sido fonte de histórias fantásticas.

A Cela (New Line Cinema/ Caro-McLeod/ RadicalMedia).

Os sonhos são um terreno fértil e vantajoso para as histórias fantásticas. Por um lado, abrem uma possibilidade infinita de cenários e enredos possíveis; por outro, esses cenários são facilmente digeridos pelo público, uma vez que o ambiente do sonho, uma vez que é universal, pode ser aceito por todos, por mais estranho que pareça, ainda que nem sempre possa ser imediatamente compreendido.

(FreeImages.com/ Saiuri).

Na introdução de seu ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura (Supernatural Horror in Literature, 1927), H.P. Lovecraft apresenta sua visão do gênero dizendo que “A emoção mais forte e antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido”. Ele diz que, em torno dos fenômenos que os humanos primitivos não podiam entender, “(...) teceram-se naturalmente os conceitos de magia, as personificações e sensações de assombro e medo próprias de uma raça portadora de ideias poucas e simples e experiência limitada. O desconhecido, sendo igualmente o imprevisível, tornou-se para os nossos avós primitivos uma onipotente e terrível fonte de bênçãos e calamidades despejadas sobre a humanidade por razões impenetráveis e inteiramente extraterrenas, portanto pertencentes a esferas de existência de que nós nada sabemos e em que não participamos”.
E complementa dizendo que “O fenômeno do sonho também contribui para formar a noção de um mundo irreal ou espiritual”. Não por acaso, Lovecraft compôs um dos mais estranhos e formidáveis mundos de sonhos na série de histórias envolvendo o personagem Randolph Carter, um sonhador capaz de percorrer um ambiente de sonho com certa facilidade (Ver mais sobre as histórias com o personagem no ensaio O Mal e o Terror Absolutos).
Antes mesmo de começar a escrever os contos da série com Randolph Carter, Lovecraft já explorava o mundo dos sonhos, ainda que de forma um pouco diferente, no conto Além da Barreira do Sono (Beyond the Wall of Sleep, 1919), originalmente publicado na revista Pine Cones (no Brasil, em A Maldição de Sarnath). A história apresenta não apenas o conceito do sonho como forma de se atingir outros mundos, distantes ou paralelos, como trabalha também com a ideia constante na obra do autor, do “terror cósmico”. É narrada por um interno em um hospital para doentes mentais que tem como paciente um presidiário que morreu no local apenas algumas semanas após ser levado para lá e tido como um assassino insano. O suposto criminoso, Joe Slater, começa a ter ataques, acordando de seu sono em delírio e violento, falando coisas quase incompreensíveis sobre uma visão de palácios verdes de luz, oceanos do espaço, música estranha e montanhas a vales sombrios. E fala sobre uma entidade flamejante que ri e o ridiculariza, pretendendo uma vingança terrível contra ele.
O interno havia construído um aparelho com o qual pretendia obter a comunicação telepática, e resolve testá-lo em Slater, e recebe a mensagem de um ser de luz que lhe explica que os seres humanos, quando não estão presos aos seus corpos, são seres de luz e, nessa condição, podem penetrar no reino dos sonhos e ter a visão de muitos planos de existência e diferentes universos.

 

Lovecraft voltaria ao tema no conto Os Sonhos na Casa das Bruxas (The Dreams in the Witch House, 1933), originalmente publicado na edição de julho de 1933 da Weird Tales (no Brasil, no livro A Casa das Bruxas). A história apresenta o estudante Gilman, cursando a Universidade de Miskatonic; ele combina os seus estudos de cálculo não-euclidiano com a física quântica e com o folclore, tentando definir um fundo de realidade multidimensional por trás das alusões dos contos góticos e das lendas fantásticas de tempos muito antigos.

Weird Tales, edição de julho de 1933, com o conto The Dreams in the Witch House (capa de Margaret Brundage).

Esse certamente é o tipo de estudo que só poderia existir na Universidade de Miskatonic, uma das grandes invenções de Lovecraft, ao lado dos livros que o autor imaginou e que o personagem consulta: o Necronomicon, o Livro de Eibon e o Unaussprechlichen Kulten, atribuído a um certo Von Junzt, e que surgiu inicialmente nas histórias de Robert E. Howard, The Children of the Night (1931) e The Black Stone (1931), ambas pertencentes ao chamado “Mito de Cthulhu”. Esse último livro fornece ao estudante Gilman “(...) dados a serem correlacionados com suas fórmulas abstratas e aplicadas às propriedades do espaço e ao vínculo entre dimensões conhecidas e as desconhecidas”.
Ele resolve realizar seus estudos em um quarto que aluga na antiga “Casa das Bruxas”, onde se diz que teria morado a bruxa Kaziah Mason que, em seu julgamento, falara “a respeito de linhas e curvas que podiam apontar para direções que conduziam, através dos limites do espaço, a outros espaços desconhecidos”. A bruxa desaparecera da cela em que estivera prisioneira após fazer alguns desenhos nas paredes.
Gilman passa bastante tempo no quarto e é acometido de uma febre incessante que lhe proporciona estranhos modos de pensar, ouvindo ruídos e observando a parede à espera de algum horror que, ele imagina, deverá surgir. Ele começa a ter sonhos frequentes, tremendamente reais, nos quais ele se via em lugares estranhos, cercado e sendo observado pelas formas mais variadas de criaturas que ele julgava serem de outras dimensões.
Em seus sonhos, Gilman começa a ver as coisas de forma cada vez mais nítida, e a bruxa o procura dizendo que, como suas pesquisas independentes tinham ido tão longe, ele deveria acompanhá-la até o trono de Azathoth, no centro do caos supremo, nome que Gilman conhece de suas leituras do Necronomicon.
Ele percebe que se encontra na quarta dimensão, rodeado por criaturas de outras esferas dimensionais e da nossa própria. Quando acorda, sente uma atração irresistível em olhar para um ponto no quarto e, quando saí para a rua, percebe a origem da força que atraía seu olhar: “Um ponto definido entre as estrelas o chamava. Era, aparentemente, um ponto entre Hidra e Argo Navis, e Gilman percebeu que fora atraído para ali desde que acordara de manhã”.
Em novo sonho, ele está no parapeito de uma construção imensa, observando uma cidade gigantesca. Percebe estátuas de seres estranhos, uma descrição que corresponde aos Antigos, os seres em forma de barril e com a cabeça como uma estrela de cinco pontas.
A história prossegue para um final aterrorizante e violento, mas o que interessa para nós aqui é a forma como Lovecraft apresenta os sonhos como possíveis meios de passagem para outras dimensões e para distâncias imensas no espaço.
Na verdade, Lovecraft escreveu uma série de contos que, posteriormente, os críticos situaram como pertencentes ao “Ciclo do Sonho”, com maior ou menor relação com o mundo dos sonhos apresentado nas viagens de Randolph Carter. Esse ciclo começa com a publicação do conto Polaris, escrito em 1918 e publicado em 1920, no jornal amador The Philosopher (no Brasil, em A Maldição de Sarnath). O narrador da história descreve um sonho no qual viu uma cidade de mármore em um planalto, com a estrela Polaris no céu; mais do que isso, ele vê as pessoas na cidade conversando em uma linguagem que ele jamais tinha ouvido antes e que, ainda assim, conseguia entender. O sonhos repete-se várias vezes e ele começa a duvidar de que seja apenas um sonho, mas sim outra realidade, até o momento em que ele obtém uma forma física na cidade, não como um estranho, mas como um habitante dela, sabendo que se chama Olathoë, no planalto de Sarkis, na terra de Lomar.
Outros contos do ciclo:
A Nau Branca (The White Ship, 1919. No Brasil, em Contos: Volume 2. Ed Martin Claret; e em A Busca Onírica por Kadath); A Maldição que Atingiu Sarnath (The Doom That Came to Sarnath, 1919; em Contos: Volume 2; e em A Maldição de Sarnath); Os Gatos de Ulthar (The Cats of Ulthar, 1920; Contos: Volume 2; em A Maldição de Sarnath; e em A Busca Onírica por Kadath); Celephaïs (Celephaïs, 1920; Contos: Volume 2; e em A Busca Onírica por Kadath); Ex Oblivione (Ex Oblivione,1920; em A Maldição de Sarnath); Nyarlathotep (Nyarlathotep, 1920; em A Maldição de Sarnath); A Busca de Iranon (The Quest of Iranon, 1921; Contos: Volume 2; e em A Maldição de Sarnath); A Cidade Sem Nome (The Nameless City, 1921; em A Maldição de Sarnath); Os Outros Deuses (The Other Gods, 1921; em Contos: Volume 2; em A Maldição de Sarnath; e em A Busca Onírica por Kadath); Azathoth (Azathoth, 1922. No Brasil, em A Tumba e Outras Histórias); The Hound (1922); Hipnos (Hypnos, 1922; Contos: Volume 2; e em A Maldição de Sarnath); O Que Vem Com a Lua (What the Moon Brings, 1922; em A Maldição de Sarnath); Em Sonhos, À Procura da Desconhecida Kadath (The Dream-Quest of Unknown Kadath, 1926; em português em Os Demônios de Randolph Carter; e em A Busca Onírica por Kadath); O Intruso (The Outsider, 1926; No Brasil, em Dagon); A Chave de Prata (The Silver Key, 1926. Em português, em Os Demônios de Randolph Carter; em Contos: Volume 2; e em A Busca Onírica por Kadath); A Estranha Casa Suspensa na Neblina (The Strange High House in the Mist, 1926. No Brasil em A Tumba e Outras Histórias; e em Contos: Volume 2, com o título A Estranha Casa Alta na Névoa); O Caso de Charles Dexter Ward (The Case of Charles Dexter Ward, 1927); The Thing in the Moonlight (1927); Nas Montanhas da Loucura (At the Mountains of Madness, 1931. No Brasil, em A Casa das Bruxas); Os Sonhos na Casa das Bruxas (The Dreams in the Witch House, 1933. Em A Casa das Bruxas); Através das Portas da Chave de Prata (Through the Gates of the Silver Key, 1933. Em parceria com E. Hoffmann Price. Em Os Demônios de Randolph Carter).
Leia mais sobre as cidades e os sonhos imaginados por Lovecraft na matéria Nos Sonhos e nos Pesadelos de Lovecraft.

 

Nos textos que analisam a literatura fantástica é comum vermos as expressões “mundo dos sonhos” ou “terra dos sonhos”, utilizadas como referência para situar uma determinada história. Na ficção científica, os sonhos também surgem com alguma frequência, ainda que utilizados de formas diferentes. Em The Science Fiction Encyclopedia, o verbete que mais se aproxima do tema tem como título “Dream Hacking”, uma invasão de sonhos com objetivos variados que vão desde o estudo e observação à possibilidade de influenciar os sonhos de alguém.

Astounding Science Fiction de setembro de 1948, com o conto Dreams Are Sacred (capa de Chesley Bonestell).
                                   Vicki Woolf, no episódio Get Off My Cloud (BBC).

Segundo David Langford, que assina o verbete em questão, hoje em dia essa forma de invasão dos sonhos já se tornou um clichê, mas já era imaginada há muito, como é o caso da história Dreams Are Sacred, de Peter Phillips, publicada na edição de setembro de 1948 da Astounding Science Fiction. A história apresenta um psiquiatra que desenvolve uma nova máquina capaz de penetrar nos sonhos das pessoas. Com ela, pretende ajudar a curar um famoso escritor de histórias de fantasia que se encontra preso em um sonho, no mundo de fantasia que ele criou. Para tanto, pede a ajuda de um amigo, um repórter que era assolado por pesadelos em sua infância e aprendeu a se livrar deles e dos monstros que perturbavam seus sonhos atirando neles com uma arma imaginária. O repórter deve entrar no sonho e trazer o escritor de volta à realidade.
A história foi adaptada para um episódio do famoso seriado britânico Out of the Unknown, em sua terceira temporada (1969), com o título Get Off My Cloud, com direção de Peter Cregeen.

Jennifer Lopez, Vincent D'Onofrio e Vince Vaughn, em suas roupas especiais para entrar no mundo dos sonhos, em A Cela (New Line Cinema/ Caro-McLeod/ RadicalMedia).

Uma mostra de como o tema é perene no gênero é sua utilização no filme A Cela (The Cell, 2000), mais de 50 anos após ter sido desenvolvido na história de Peter Phillips. O filme foi dirigido por Tarsem Singh e tem Jennifer Lopez no papel principal como uma psicóloga infantil contratada para fazer parte de uma experiência inédita com um aparelho que permite uma “transferência sináptica” – com o nome completo de Sistema de Cartografia Neurológica e Transferência Sináptica – que faz com que uma pessoa, no caso a psicóloga, consiga penetrar na mente e nos sonhos de uma pessoa em coma e tentar trazê-la de volta à vida. Mas o FBI pede que ela entre na mente de um assassino em série para tentar descobrir onde ele escondeu uma jovem que seria sua próxima vítima.
O filme nem sempre foi muito bem recebido pela crítica, apesar de ter muitos momentos interessantes, em particular o aspecto visual, cenários interessantes para criar os ambientes mentais, muitos deles baseados em obras de arte. Foi produzida uma sequência bem inferior, A Cela 2 (The Cell 2, 2009), com direção de Tim Iacofano e feito diretamente para o mercado de DVD.
David Langford cita o conto City of the Tiger, de John Brunner, publicado em 1958 na revista Science Fantasy, como uma obra mais sofisticada do que a de Peter Phillips, ainda que não utilizando uma máquina para entrar nos sonhos e sim a capacidade telepática do personagem, que a utiliza para curar as pessoas. Posteriormente, o conto foi utilizado para compor o livro The Whole Man (1964), juntamente com os contos The Whole Man (1959, publicado em Science Fantasy) e Curative Telepath (1959, na revista Fantastic Universe).

Abaixo: a revista Science Fantasy (1958), com o conto City of the Tiger (capa de Brian Lewis); Science Fantasy (1959), com o conto The Whole Man (capa de Brian Lewis); a revista Fantastic Universe (1959), com o conto Curative Telepath (capa de Ed Emshwiller); o livro The Whole Man (Ballantine Books, 1964).

Em The Encyclopedia of Fantasy, Brian Stableford diz que “O artifício de justificar uma narrativa representando-a como um sonho é o mais básico na literatura fantástica, fundamental para os subgêneros medievais como a alegoria de sonho, embora os despertares climáticos passaram a ser vistos como a forma definitiva de evitar uma situação difícil, uma vez que a noção da fantasia literária tornou-se familiar e esses movimentos apologéticos não pareciam mais necessários”.

(FreeImages.com/ Pipo Dols).

Stableford também disse que “Apesar dos esforços de Sigmund Freud (1856-1939) e muitos outros, nós ainda não temos uma teoria bem fundamentada que nos permita extrair significado de sonhos reais – ou, de fato, confirmar que existem quaisquer significados consistentes a serem extraídos. Sonhos literários são muito diferentes; se o sonho de um personagem não tem relevância para padrão de significados dentro do enredo da história, não há sentido em descrevê-los”. Ele lembra que muitas vezes a conexão é “frívola”, como nos casos em que um enredo fantástico e, em última análise, incoerente, é justificado com a conclusão de que “era tudo um sonho”, por sua vez um artifício de narração utilizado com tamanha frequência que se tornou inaceitável no gênero.
Referindo-se ao termo “fantasia visionária”, Stableford disse que “Sonhos literários significativos frequentemente cumprem uma função meramente mecânica dentro de um enredo, mas existe um subgênero significativo da ‘fantasia visionária’ no qual um sonho natural ou que ocorra com a ajuda de drogas é usado para fornecer um espaço imaginário dentro do qual uma ficção-dentro-da-ficção pode ser mostrada ou representada”. Segundo ele, algumas dessas ficções-dentro-de-ficções pertencem a outros gêneros, mas que os mais interessantes são fantasias que carregam tantos significados que se tornam supersaturadas. Como exemplos, ele cita os “exercícios moralistas” como os contos natalinos de Charles Dickens; “rapsódias metafísicas”, como Une Nuit au Luxembourg (1906), de Rémy de Gourmont; ou “extravagâncias satíricas”, como The Cream of the Jest (1917), de James Branch Cabell.