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PRIMEIRAS AVENTURAS

ESPECIAIS/SEXO E SEXUALIDADE NA FC

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data17/09/2019
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Nos primórdios do gênero, bem antes que ele fosse conhecido como ficção científica, algumas obras já apresentavam temas ligados à sexualidade.

(Paramount Pictures)
Os Houyhnhnms controlando os Yahoos, em As Viagens de Gulliver (Ilustração de Louis John Rhead).

Peter Nicholls lembra que As Viagens de Guliver (Gulliver’s Travels, 1726), de Jonathan Swift, uma obra importante dentro do que se convencionou chamar de protoficção científica, satiriza o sexo de forma consciente, em especial no Livro IV, no qual faz um contraste entre os cavalos inteligentes e racionais, os Houyhnhnms, e os Yahoos, semelhantes a humanos, que dedicam boa parte de seus pensamentos aos “apetites da carne”. “Os Yahoos”, diz Nicholls, “expressam sua desaprovação defecando nos estranhos de cima de árvores, e uma garota Yahoo escandaliza Gulliver ao expor sua vulva para ele de forma convidativa. O próprio Swift parece ambíguo a respeito de questões sexuais e, enquanto ele vê a vida de razão pura dos Houyhnhnms como um ideal impraticável e um tanto frio, está claro, por uma variedade de episódios em seu trabalho, que ele mesmo, ainda que obcecado pela carne, tendia a odiá-la e temê-la”.
Adam Roberts cita um exemplo anterior, ainda que com certa relutância em tratá-lo como ficção científica. Ele refere-se ao livro The Isle of Pines (A Ilha dos Pines, 1668), de Henry Neville, que “(...) relata como um marinheiro inglês, George Pine, descobre e povoa uma nova terra perto da costa da Austrália, produzindo 12 mil descendentes em menos de um século. Esse reino imaginário se destaca por um caráter bastante explícito de sua sexualidade; um crítico moderno lista os episódios eróticos (‘poligamia, voyeurismo, intercurso entre classes sociais... miscigenação e orgiástica indulgência sexual’) e observa que ‘pines é um anagrama de pênis’”. Roberts considera que é discutível “(...) até que ponto é útil descrever essa ‘pornotopia’ como ficção científica, mas a fantasia de Neville de gratificação sexual como novum social não foi um caso isolado”.
O novum, aqui, certamente apresenta-se não apenas como “algo novo”, mas segue a definição de Darko Suvin para a palavra, aplicada ao estudo da ficção científica. Adam Roberts explica o uso da palavra: “(...) o dispositivo, artefato ou premissa ficcionais que põem em foco a diferença entre o mundo que o leitor habita e o mundo ficcional do texto da FC. Esse novum pode ser algo material, como uma espaçonave, uma máquina do tempo ou um dispositivo de comunicação mais-rápido-que-a-luz; ou pode ser algo conceitual, como uma nova versão de gênero ou consciência”.
Os exemplos citados por Adam Roberts antecedem o livro de Swift. Um deles é um folheto de Nicholas Goodman, Eutopia (1632) – com o nome completo Hollands Leaguer, or na Historical Discourse of the Lie and Actions of Dona Britanica Hollandia, the Arch-Mistris of the wicked women of Eutopia (A Casa de Holanda, ou um Discurso Histórico da Falsidade e Ações de Dona Britanica Hollanda, Arquimestra das Depravadas de Eutopia), obra em que Eutopia “(...) de forma devidamente satírica, é um famoso bordel no Bankside, em Londres”.
Também é citada a peça teatral The Six Days’ Adventure, or the New Utopia (A Aventura de Seis Dias, ou A Nova Utopia, 1671), de Edward Howard. Roberts explica que a obra “(...) envolve política de gênero de um modo menos insolente; ambientada na ilha de More, a peça se inicia quando o governo de homens está prestes a ser substituído por um governo só de mulheres. Embora Howard insira essa premissa por razões essencialmente cômicas, com o humor do torcer de panos de pratos molhados de maridos dominados e cornos, há também certa especulação mais séria sobre se tal governo contradiz a ‘ordem natural’ ou mesmo se pode ser o presságio de uma sociedade melhor”.
E existe uma raça hermafrodita em A Terra Austral Conhecida (La Terre Australe Connue, 1676), de Gabriel de Foigny (ler mais sobre esta e outras utopias na matéria Como Tudo Começou). Roberts entende que a obra pode ter como antecedente a distopia satírica Les Hermaphrodites (1605), de Thomas Artus, que apresenta uma sociedade hermafrodita vivendo em uma ilha flutuante. Adam Roberts cita como fonte de pesquisa o livro Hermaphrodites in Renaissance Europe (2006), de Kathleen P. Long, que “acompanha o desenvolvimento de fábulas e utopias hermafroditas saídas do fascínio da Renascença com a alquimia, em que indivíduos com os dois sexos simbolizavam a conjunção de forças elementais e químicas”. E, de certa forma, essas histórias também revelam o fascínio pelas ilhas desconhecidas, repletas de maravilhas ou civilizações fantásticas (para ver mais sobre as ilhas, ver o especial Na Ilha).
O movimento feminista de romances utópicos do século 19 também produziu as obras Unveiling a Parallel: A Romance (1893), de Alice Ingelfritz e Ella Merchant; Mizora: A Prophecy (1880-81), de Mary E. Bradley Lane; e os livros de Charlotte Perkins Gilman, em particular Herland – A Terra das Mulheres (1915). Para ler mais sobre essas obras veja a matéria As Histórias do Século 19, no especial Utopias e Distopias.

Peter Nicholls (em The Science Fiction Encyclopedia) considerou que no século 19 os sentimentos a respeito do sexo estavam implícitos, mas não eram tratados abertamente. Para ele, os medos e fantasias sexuais frequentemente envolvidos na ficção científica gótica tendiam a ser vistos como forças poderosas e irracionais, difíceis de reprimir.

Peter Boyle, como o Monstro, e Madeline Kahn, fumando após o sexo, em O Jovem Frankenstein (Gruskoff-Venture Films/ Crossbow Productions, Inc./ Jouer Limited/ 20th Century Fox).

Assim, Frankenstein (1818), de Mary Shelley, surge como “(...) uma obra mais evidente do que a maioria ao questionar se os desejos bestiais do homem, não algemados por uma alma, irão se mostrar devastadores. Esse aspecto da história tem sido enfatizada em diversas versões cinematográficas de Frankenstein, especialmente na paródia Jovem Frankenstein (Young Frankenstein, 1974), no qual as habilidades amorosas do monstro provam ser tão formidáveis quanto nós sempre suspeitávamos”. (Veja mais sobre os filmes baseados em Frankenstein na matéria Alguns Filmes com Cientistas Loucos e Seus Monstros, no especial Alguns Monstros).
Nicholls diz que Frankenstein é um exemplo do que se tornaria um tema recorrente na ficção científica pulp: o elo semiconsciente entre potência sexual e o “alienígena”; ou ainda, o medo da manifestação alienígena apresentado como o receio de uma capacidade sexual maior do que a nossa, “(...) assim como os homens brancos, de forma estereotipada, temem os negros como atletas sexuais tão bem favorecidos que não se pode competir”.
Ainda segundo Peter Nicholls, as implicações sexuais das histórias de ficção científica variaram consideravelmente pouco nos últimos 100 anos, e a maioria dos temas já estava bem estabelecida na literatura popular do século 19. Ele cita O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde (The Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde, 1886), de Robert Louis Steveson, que “(...) explora a noção de que a mente humana contém um componente bestial controlado por um censor mental que pode ser contornado – nesse caso, com drogas. Ainda que exista mais de metafísica do que ciência na ideia quando Stevenson a escreveu, desenvolvimentos na psicologia (começando, enquanto Stevenson escrevia, com o trabalho de Sigmund Freud) e, mais tarde, a neurologia, mostrou que ele não estava tão longe da verdade. No entanto, o tema fundamental de Stevenson tem uma longa história no Ocidente cristão, onde os prazeres da carne tradicionalmente tem sido vistos como pecaminosos: é o tema do Pecado original. Hyde era uma das encarnações do ‘mal que espreita no coração do Homem’. Pecado e retribuição permanecem como um tema nos filmes de terror e monstros”. (ver mais sobre Jekyll e Hyde nas matérias Criei um Monstro e Alguns Filmes com Cientistas Loucos e Seus Monstros, no especial Alguns Monstros).
Adam Roberts cita um livro publicado no mesmo ano de 1886 em que Stevenson publicou seu clássico. Trata-se de A Eva Futura (L'Ève Future), de Villiers de l’Isle Adam, que tem o inventor Thomas Alva Edison como um dos personagens, algo que se tornou comum em várias histórias de ficção científica da época, como ressaltou Roberts. Aqui, ele recebe o amigo inglês Lord Eward, que se apaixonou pela linda, mas espiritualmente superficial Miss Clary, e quase louco por seu amor, pensa em suicídio. Edison promete ajudá-lo construindo uma réplica perfeita da mulher em todos os detalhes, porém com maior profundidade de alma.
O resultado é uma androide perfeita, melhor do que a original. Roberts destaca que “na verdade, um dos temas de Villiers na novela é que, sob a lógica da modernidade, a réplica é preferível ao protótipo”. Ele considera que o livro é “muito difícil de ser apreciado” devido a uma série de ideias antifemininas e racistas, permeado por um “medo quase histérico do poder de sedução das mulheres”. A noiva de Eward, Alicia Clary, e outras mulheres, são apresentadas como mentirosas, superficiais, fúteis e uma ameaça efetiva à saúde e mesmo à vida do sexo masculino. “Em um mundo desses”, diz Roberts, “infestado de femmes fatales letais, a criação de mulheres artificiais perfeitas e puras é tão só um serviço à humanidade masculina. A fantasia aqui é antes a realização de um desejo adolescente muito pouco edificante em um homem em meados da faixa dos quarenta, como era Villiers quando da publicação de A Eva Futura, que uma fantasia sexista (embora sem dúvida também seja isso). Hadaly é uma boneca em tamanho natural exato, anatomicamente precisa, que pode ser programada (ao se mexer nos vinte anéis que usa em seus dedos, inclusive nos polegares) para executar qualquer ação e assumir qualquer personalidade em perfeita submissão”.
Ainda assim, Roberts destaca a importância da obra ao notar que “Na medida em que antecipava um conjunto de preocupações que, em fins do século XX, passariam a ser chamadas de pós-modernas, A Eva Futura, uma precessão de simulacro ao estilo Blade Runner, ainda que conspurcado de racismo e misoginia, é um trabalho importante”. E, observando a obra da perspectiva de 2019, pode ser até mesmo assustador ver que as bonecas sexuais começam a se tornar uma realidade cada vez mais presente em nossa sociedade; e, se ainda não têm uma programação tão complexa, não é muito difícil imaginar que vão chegar a isso.

Peter Nicholls lembra que a ficção científica tem sido predominantemente escrita por homens (pelo menos até o início do século 21) e tende a revelar preconceitos especificamente masculinos. Ele cita como um exemplo precoce de arquétipo de gênero o livro A Máquina do Tempo (The Time Machine, 1895), o clássico de H.G. Wells. “As raças futuras descobertas pelo Viajante do Tempo são a masculina e cabeluda Morlock, e a efeminada, linda e irresponsável Eloi, que, em última análise, é apenas gado para os Morlock. As duas raças são, ao mesmo tempo, uma alegoria das distinções sexuais e de classe do século dezenove”.

Kathleen Burke, a mulher-pantera em A Ilha das Almas Selvagens, a versão de 1932 da história de H.G. Wells (Paramount Pictures).

Adam Roberts encontra outro exemplo de abordagem de natureza sexual na obra de H.G. Wells, mais especificamente em A Ilha do Dr. Moreau (The Island of Dr Moreau, 1896). “A Ilha do Dr. Moreau”, diz Roberts, “está povoada de homens-animais moreaunianos de formas variadas, mas há apenas uma mulher na novela, dolorosamente (falando de modo literal) criada de um puma modificado. Vários críticos observaram nesse ponto um subtexto sexual; Wells, que fora toda a vida sexualmente promíscuo, adotava o nome carinhoso de Jaguar quando estava com a amante, Rebecca West, que por seu lado era a Pantera. Parece-nos, por certo, que Moreau está empenhado em criar um parceiro para si mesmo. Mas isto é também sua derrota. Embora seja o gosto por sangue que que encoraja os homens-animais à revolta, é a fuga da mulher-puma que pressagia a tragédia individual de Moreau. É bem apropriado para a fábula de Wells que o desencadeamento de uma potência feminina seja a força que destrói o jardim do Éden de Moreau. A novela está dizendo: o amor não é simples – e é o amor que faz desabar o idílio brutal de Moreau”.

Peter Nicholls disse que “Para os homens imaturos, as mulheres frequentemente aparentam ser uma raça alienígena, e muita ficção científica popular reflete o medo de sua estranheza ameaçadora. O estereótipo da Rainha Amazona – dominadora, cruel e desejável – está abundantemente presente em Ela (She, 1887) e em outros romances de H. Rider Haggard”.

Ilustração da revista Graphic, que apresentou o livro Ela em capítulos. Ayesha leva os exploradores ao Espírito da Vida (Desenho: E.K. Johnson, 1887).

O livro de Haggard foi um sucesso de vendas quase imediato, ao mesmo tempo em que recebeu muitas críticas, em particular quando comparado com a qualidade do trabalho de outros escritores britânicos, como Robert Louis Stevenson. Com o tempo, outras críticas surgiram devido à forma como apresenta a figura feminina da rainha Ayesha e como lidava com a questão racial. Por outro lado, foi um marco no desenvolvimento das histórias de fantasia e ficção científica, principalmente no que diz respeito ao subgênero “civilizações perdidas”.
A história segue a aventura do professor Horace Holly e do jovem Leo Vincey, filho de um colega falecido que lhe pediu que criasse o filho. No aniversário de 25 anos de Leo, eles abrem uma caixa de ferro deixada pelo falecido pai, encontram um fragmento de cerâmica e, seguindo as instruções ali desenhadas, iniciam uma viagem à África, o que inclui um naufrágio, sua captura pela tribo conhecida como Amahagger, e posteriormente seu encontro com a misteriosa rainha branca, “ela que deve ser obedecida”, ou Hiya, ou ainda Ayesha, vivendo nas ruínas da cidade de Kôr, uma civilização que precedeu a egípcia. Ayesha tem mais de dois mil anos de idade, tendo descoberto o segredo da imortalidade, e uma beleza tão intensa que imediatamente encanta qualquer homem que olhar para ela. A rainha também consegue ler a mente e curar as pessoas. Na cidade, ela aguarda a reencarnação de seu amado Kallikrates, que ela matou num acesso de ciúme.
Como o jovem Leo está ferido, a rainha vai curá-lo, e percebe que ele é a reencarnação que ela tanto aguardou, e que está casado com uma mulher da tribo Amahagger, a quem a rainha assassina com seus poderes mágicos.
No centro da cidade encontra-se o Pilar da Vida, que lhe concedeu a imortalidade, e ela quer que Leo passe pelo Pilar e viva com ela para sempre. No entanto, ao entrar no Pilar da Vida pela segunda vez, o efeito parece ser o contrário do esperado, e Ayesha passa por um envelhecimento rápido, mostrando sua verdadeira idade.

Ilustração da revista Graphic, com Ayesha prestes a entrar no Pilar da Vida (Desenho: E.K. Johnson, 1887).

Em The Encyclopedia of Fantasy, John Clute diz que Ayesha é uma encarnação menor da Deusa, com uma natureza que compartilha tanto Ísis quanto Afrodite; a primeira, uma deusa com uma qualidade maternal, capacidade curadora e com uma relação com o mundo após a morte; a segunda, a deusa grega associada ao amor, beleza, prazer, paixão e procriação. Segundo Clute, essa dupla natureza provoca em Ayesha uma guerra interna sem fim; enquanto a natureza Ísis chama seu espírito para os reinos descritos por Haggard em termos ocultos, a natureza Afrodite exige que ela aja como uma lâmia – e a lâmia, aqui, provavelmente entendida em termos literários, como um tipo de espírito que seduz jovens para satisfazer seu apetite sexual.
As visões sobre o livro – e, na verdade, sobre toda a obra de H. Rider Haggard – diferem bastante; algumas criticam, ou apenas apontam, que a obra reflete um tipo de pensamento comum na época Vitoriana britânica, reforçando a imagem do Império poderoso, e os conceitos da supremacia da raça branca e do homem como superior à mulher, em um momento da história em que as mulheres começavam a lutar mais aberta e fortemente pela igualdade de direitos na sociedade. Por outro lado, existem críticos que apontam para a personagem Ayesha como um exemplo do que se chamou de “a Nova Mulher” que surgia na época, não apenas existindo para amar e ser amada, ou ser bela, mas mantendo um poder real sobre os homens. A crítica literária, poeta e feminista Sandra M. Gilbert, em colaboração com a escritora e professora Susan D. Gubar, ambas feministas de respeito, disseram, no livro Sexchanges, Volume II of No Man’s Land: The Place of the Woman Writer in the Twentieth Century (1989), que “Ao contrário das mulheres que os escritores anteriores da época Vitoriana idealizaram ou condenaram, She não era nem um anjo nem um monstro. De certa forma, ela era uma estranha, mas significante, mistura dos dois tipos: uma mulher casta e angelical com poderes monstruosos, uma mulher monstruosamente apaixonada com encantos angelicais”.
Elas também entenderam que a morte de Ayesha funciona como uma espécie de “julgamento teleológico” de sua transgressão dos limites Vitorianos dos gêneros, ou o que a acadêmica Ann L. Ardis. comparou a uma “queima das bruxas”.
A história gerou algumas adaptações para o cinema (ver mais na matéria Cidades Perdidas, no especial Mil Cidades).