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GENTE SAINDO PELO LADRÃO

ESPECIAIS/VE MIL CIDADES

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data28/12/2015
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A apresentação de cidades gigantescas e superpovoadas é um dos artifícios da ficção científica utilizado com bastante frequência, com maior ou menor competência.

Warner Bros.
A Los Angeles de Ridley Scott, em Blade Runner.

Na série de histórias escritas entre 1942 e 1949, que nos anos 1950 foram agrupadas para formar o clássico Fundação, Isaac Asimov apresentou o planeta Trantor e o conceito de uma cidade planetária, ou seja, que cobre inteiramente a superfície do planeta. Na descrição de Asimov, não existe espaço livre sequer para a mais banal forma de agricultura, de modo que a sede do Império recebe alimentos de outros planetas.
Brian Stableford diz que Trantor é “um dos” primeiros exemplos de cidades do gênero, mas não cita qualquer um anterior na fc, de modo que posso imaginar ter sido a primeira cidade a ocupar um planeta inteiro. Trantor já havia sido citada por Asimov no conto O Frei Negro da Chama (Black Friar of the Flame, 1942), publicado na revista Planet Stories (no Brasil, publicado em O Futuro Começou [The Early Asimov], em 1972, pela Hemus Editora). Além de estar entre os contos que Asimov menos gostava, também é frequentemente apontado pela crítica como o seu pior momento. Em romance, foi citado pela primeira vez no livro 827 Era Galáctica (Pebble in the Sky, 1950), o primeiro trabalho longo de Asimov, ainda que também não muito bom.
A cidade não apenas ocupa toda a superfície de Trantor, mas também desenvolveu-se para baixo, com uma população de mais de 45 bilhões de pessoas, quase todas inteiramente a serviço da administração do vasto império galáctico.

Futuramente, George Lucas iria desenvolver um conceito semelhante nos filmes da série Star Wars (que eram Guerra nas Estrelas, mas agora mudaram para o inglês, sabe-se lá por quais razões), com o planeta Coruscant, ainda mais povoado por cerca de um trilhão de seres, humanos ou não.

Em 1965, Trantor foi satirizado por Harry Harrison, no hilariante Bill, O Herói Galáctico (Bill, The Galactic Hero. Em Portugal, pela Argonauta 353; no Brasil, pela Sabiá), quando o personagem central vai parar na cidade-planeta Helior.

Kurt Vonnegut, em foto de sua aparição na WNET-TV, em 17 de fevereiro de 1972.

Em 1954, Kurt Vonnegut Jr. apresentou sua versão – ou uma delas – para uma cidade superpovoada, no conto Para Todo o Sempre (no Brasil, publicado em 1973, no livro O Mundo Louco ou Bem-Vindo à Casa dos Macacos [Welcome to the Monkey House, 1968], Ed. Artenova). O conto foi publicado originalmente na revista Galaxy Science Fiction, em janeiro de 1954, com o título The Big Trip Up Yonder, posteriormente trocado para Tomorrow and Tomorrow and Tomorrow.
Vonnegut apresenta a Terra superpovoada com 12 bilhões de pessoas, de modo que o espaço nas cidades é, digamos, bem disputado. Nesse futuro, foi inventada a droga chamada “antigerasone”, capaz de prolongar a vida das pessoas indefinidamente. Assim, as gerações se sucedem, mas não são lugar uma à outra, competindo ferozmente por espaço e oportunidades. A história gira em torno da vida, apertada, de uma família em um apartamento, dominados pelo patriarca com 172 anos. Ele tem o hábito de mudar seu testamento cada vez que é contrariado, sempre prometendo que irá parar de tomar a droga, mas jamais fazendo isso. A confusão se estabelece depois que o velho desaparece, deixando um testamento segundo o qual tudo deveria ser dividido igualmente. Após uma briga, vão todos parar na cadeia e descobrem que ali existe espaço suficiente para todos, cada qual com sua própria cela, algo que nunca imaginaram ser possível naquele mundo. E, de quebra, o patriarca retorna ao apartamento vazio, agora só para ele, e ouve a notícia da descoberta de uma nova e mais potente versão da droga, capaz não apenas de prolongar a vida, mas também modificar a aparência das pessoas, fazendo voltar ao que se era aos 30 anos.
Como de costume, Vonnegut não deixa pedra sobre pedra, usando a sátira, o humor cáustico e uma observação acurada da sociedade humana para compor suas histórias. A superpopulação não é exatamente o centro da história, mas certamente ficam algumas observações interessantes do que pode acontecer na sociedade, até nas melhores famílias, quando o mundo não tiver mais espaço e oportunidades disponíveis.

Em 1958, o escritor Robert Bloch – talvez mais conhecido por ser o autor de Psicose (1959), filmado por Alfred Hitchcock em 1960 – apresentou sua versão de um mundo repleto de pessoas em Esse Mundo Superpovoado... (This Crowded Earth. No Brasil pela Cedibra, coleção Urânia 33).
O livro é muito inferior ao que o autor fez de mais interessante, incluindo aqui os roteiros para filmes nos anos 1960 e 1970. Há certa falta de criatividade para lidar com a situação proposta, e também uma visão mito centrada na época em que a história foi escrita. Ele imaginou a cidade de Chicago com 38 milhões de habitantes e, portanto, insuportável de se viver segundo os padrões de 1958, mas nem tanto segundo os padrões de hoje. A área urbana de São Paulo, por exemplo, já passou dos 20 milhões (é verdade que está infernal, mas nem perto do que se vê no livro); a área de Tóquio-Yokohama já chegou nos 38 milhões que Bloch previu para a sua Chicago do futuro.

Capa da edição de 1967 (Penguin , ilustração de Alan Aldridge).

Mas esse tipo de erro de cálculo pode acontecer mesmo em boas histórias, como é o caso de À Beira do Fim (Make Room! Make Room!), escrita por Harry Harrison em 1966. Ele imaginou a cidade de Nova York no então futuro ano de 1999, com uma população de 35 milhões de pessoas enfrentando inúmeros problemas e sendo alimentadas com “soylent”, uma mistura de soja (soya) e lentilha (lentil).
A famosa e interessante versão para o cinema surgiu em 1973, No Mundo de 2020 (Soylent Green), com direção de Richard Fleischer e Charlton Heston como o policial que se envolve na maior descoberta da sociedade, a verdade sobre o “verde soilente” (na dublagem brasileira dos anos 1970) fornecido à população desprivilegiada.


Charlton Heston, pisando em ovos, em No Mundo de 2020 (MGM).

No filme, o que era uma mistura, digamos, natureba de soja e lentilha, transforma-se em canibalismo, resolvendo dois problemas ao mesmo tempo. Força um pouco a barra e transforma a história original, mas não deixou de ser interessante, com a famosa frase final de Heston: “Soylent Green is people!”
E claro que o filme é muitíssimo melhor do que grande parte das porcarias indizíveis que foram produzidas nos anos 1980 – para ficar apenas em uma década. Só foi demais receber os prêmios Nebula e Saturno como o melhor filme de fc de um ano que teve, por exemplo: O Dorminhoco (Sleeper), de Woody Allen; O Exército do Extermínio (The Crazies), de George A. Romero; Nasce um Monstro (It’s Alive), de Larry Cohen; Westworld, Onde Ninguém Tem Alma (Westworld), de Michael Crichton; e Zardoz (Zardoz), de John Boorman. Por mais que se entenda e aceite que o filme pode competir com alguns deles, com Zardoz não dá!
O filme de Fleischer também marca a última atuação do grande ator Edward G. Robinson, falecido em janeiro de 1973.


Briga por comida, na cidade lotada de No Mundo de 2020. 

Outro grande escritor de fc, Robert Silverberg, também tocou na questão da superpopulação. Primeiro, em Os Intemporais (The Time Hoppers. Ed. Panorama), em 1967, ainda que não como o ponto central da história, que são as viagens no tempo. E, em 1971, em Mundos Fechados (The World Inside).
No primeiro, Silverberg situa a história no mundo superlotado do ano 2490. O livro não é tão bom quanto os melhores trabalhos do autor, apresentando a descoberta da viagem no tempo como uma possibilidade das pessoas menos favorecidas – numa sociedade bastante estratificada – fugirem de sua condição viajando para o passado. As classes sociais têm privilégios crescentes, assim como seu poder, e as pessoas são estimuladas a competir duramente, o que origina todo tipo de ações ilegais e imorais, traições e chantagens, que elevam as pessoas de categoria.

Em Mundos Fechados, o ano escolhido foi 2381, com a Terra com uma população de 75 bilhões – mais do que Trantor, menos que Coruscant – e as pessoas vivendo nas “monurbs” (mônadas urbana), prédios gigantescos com mil andares e população média de 900 mil pessoas. Mais uma vez, ele estabelece uma estratificação social acentuada, com maior prestígio para os moradores dos andares mais altos. E, apesar da imensa população, o controle de natalidade foi extinto e, mais do que isso, o sexo é estimulado a ponto de ser considerado crime recusar uma proposta de sexo.
Inicialmente, o sistema social é apresentado como sendo equilibrado, mas aos poucos Silverberg vai apresentando os aspectos violentos e reacionários da sociedade, como os dogmas rígidos impostos pela moral da procriação, que leva os dissidentes á morte impiedosa.
Unindo diversas histórias, o autor apresenta as diferentes atividades dentro da monurb e como as pessoas estão se desagregando psicologicamente diante do confronto entre suas tendências naturais de liberdade de escolhas e as exigências sociais – e penais – que a vida na monurb impõe. Ao mesmo tempo em que cresce nos habitantes a necessidade de liberdade e de conhecer novos tipos de vida, eles sentem a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de abandonar as monurbs. Uma impossibilidade que um historiador julga ser genética, devido a transformações ocorridas ao longo dos séculos, mas que na verdade é psicológica. Todo o esquema social funciona como uma grande lavagem cerebral, impedindo as pessoas de fugirem daquele tipo de vida.
Robert Silverberg apresenta sua história quase como um aviso, no sentido de que qualquer sistema social pode ser nocivo ou ditatorial, em mais de um sentido, dependendo da maneira como ele se desenvolve e se estrutura, e independente dos valores morais que defende. O que sobressai na história é a proibição em si, ou os estímulos exagerados, a tendência de massificar opiniões e formas de agir, punindo, seja lá de que maneira, aqueles que não se “enquadram”.
Claro que se trata de uma distopia e não se vê muita saída para as questões apresentadas no livro, e isso é comum na obra do autor e, até certo ponto, na fc dos anos 1960 e início dos 1970, em particular as histórias que observam mais de perto as situações sociais e políticas.
O livro foi indicado ao Prêmio Hugo em 1972 e é realmente muito bom, entre os melhores de Silverberg.

Em The Science Fiction Encyclopedia, Brian Stableford apresenta três aspectos principais referentes às histórias que lidam com superpopulação: a exaustão dos recursos; a destruição do meio ambiente; e os problemas sociais decorrentes da vida nessas condições. A história de Robert Silverberg se enquadra no terceiro aspecto, assim como tantas histórias de fc da chamada new wave dos anos 1960. E Stableford não se mostra muito contente com as alternativas oferecidas pelos escritores. Em outras palavras, são quase sempre histórias terríveis de avisos e profecias de um futuro terrível do qual não podemos escapar. “Uma coisa é a falta de confiança no futuro; outra, completamente diferente, é a aparente falta de desejo de olhar para soluções práticas”, ele escreveu.
Algumas “soluções” apresentadas nas histórias para a redução da população são consideradas inadequadas e, em alguns casos, impossíveis e desumanas. No já citado livro Mundo Louco, de Vonnegut, por exemplo, o conto Bem-Vindo à Casa dos Macacos (Welcome to the Monkey House, 1968) apresenta os EUA superpovoado, de modo que foram criadas leis para impedir o crescimento populacional. Assim, inventaram os Salões de Suicídio Ético, nos quais as pessoas eram animadas a entrar para suicidar-se. E as pessoas também tornaram-se insensíveis ao sexo graças a uma pílula que torna seus órgãos sexuais inoperantes. Além disso, duas vezes por ano tomam remédios que as mantêm sempre jovens. Porém, ao contrário do que Stableford escreveu, o livro de Kurt Vonnegut Jr. é mais um de seus ferozes, ainda que hilariantes, ataques à falsa moral da sociedade.
Stableford também afirma que as histórias que seguem nessa linha quase sempre apresentam uma situação em que deve ocorrer uma triagem, ou seja, separar aqueles que devem ser salvos dos que devem morrer. Mas, convenhamos, isso ocorre em praticamente todas as sociedades do planeta, senão em todas, desde que o ser humano desceu das árvores.

(The Dial Press/ capa de Mercer Mayer).

Uma história bastante conhecida em que ocorre esse tipo de “solução” para a superpopulação é Logan’s Run (1967), de William F. Nolan, mais conhecida pelo filme e pelo seriado de TV (14 episódios, entre 1977 e 78). No livro, no ano de 2116, para manter o equilíbrio populacional é estabelecido que ninguém pode viver além dos 21 anos, quando então são eliminados por um gás que, ao mesmo tempo em que é tóxico, proporciona prazer. Algumas pessoas sempre resolvem fugir ao seu destino programado – são os “corredores” – e, então, são perseguidas e eliminadas por um Sandman.

No filme Fuga no Século 23 (Logan’s Run, 1976), dirigido por Michael Anderson, a data foi estendida para o ano 2274, e as pessoas podem viver, ufa, até os 30 anos. Também não existe o gás tóxico, mas sim aquele estranho “carrossel”, no qual as pessoas flutuam e são vaporizadas. Michael York é o Sandman Logan 5, e a cidade do futuro do filme é, na verdade, um shopping center em Dallas.


A cidade de Fuga no Século 23 (MGM).

O filme tem seus pontos positivos, mas não é tão bom quanto muitos imaginaram na época. Ganhou um Oscar de Efeitos Especiais e indicações para direção de arte e fotografia; no Saturn Award, ganhou seis prêmios, incluindo Melhor Filme; nomeado para o Prêmio Hugo e ao Prêmio Nebula. Como já fiz com relação a No Mundo de 2020, estamos aqui falando de um ano que teve Eraserhead, de David Lynch e O Homem Que Caiu na Terra (The Man Who Fell to Earth), de Nicolas Roeg. Por mais pontos positivos que existam em Logan’s, não é possível, em sã consciência, competir com essas produções. O filme foi recentemente lançado em DVD no Brasil, no box Clássicos Sci-Fi (Versátil. Junto com O Planeta Proibido, A Ameaça Que Veio do Espaço, Os Malditos, O Planeta dos Vampiros e Eles Vivem).

O Carrossel, a forma de as pessoas morrerem (e serem enganadas) em Fuga no Século 23.

Duas visões de cidades superpovoadas foram apresentadas por John Brunner em 1968 e em 1972. A primeira com aquele que é considerado seu melhor trabalho e um dos melhores livros da ficção científica: Stand on Zanzibar. O segundo, com um livro nem sempre visto como à altura de sua obra-prima, mas ainda assim saudado com entusiasmo por muitos críticos: The Sheep Look Up.


(Gollancz).

Podemos ter uma ideia muito boa da falta de perspectiva das editoras brasileiras quanto ao que publicar de ficção científica pela ausência desses livros no país, em particular Stand on Zanzibar. O mais próximo que chegamos, ainda bem, foi com a publicação de A Órbita em Ziguezague (The Jagged Orbit, 1969), uma composição posterior, porém utilizando as mesmas técnicas de composição de Zanzibar, incluindo a reprodução de trechos de reportagens e artigos desse mundo imaginado, reunindo pedaços de histórias e apresentando os personagens aos poucos, de modo que tudo começa a convergir para um mesmo ponto, fazendo com que o leitor aos poucos vá se inteirando não apenas do enredo da história, mas dos diferentes aspectos da sociedade em que a história se desenvolve.
Não tive a oportunidade de ler Stand on Zanzibar, mas quase todas as críticas afirmam tratar-se de um dos melhores momentos da fc. As técnicas narrativas utilizadas por John Brunner não eram novas, tendo sido desenvolvidas por John Dos Passos (1896-1970) em sua excepcional trilogia composta por Paralelo 42 (1930), 1919 (1932) e O Grande Capital (1936).
Em A Órbita em Ziguezague a cidade não é exatamente o ponto central da história, mas é apresentada como um ambiente opressivo. Já em Stand on Zanzibar a superpopulação é o centro do interesse, com ação situada no ano de 2010 (eu sei, eu sei; o problema de datar as histórias na fc é recorrente). Em particular, dá atenção ao impacto que uma população gigantesca teria em todos os aspectos da sociedade. E além disso lida com questões étnicas, tecnológicas – surge uma nova técnica de programação mental – engenharia genética, inclusive microorganismos geneticamente alterados para fins terroristas, e a atuação das grandes corporações, modificando o planeta e comportamentos, algo que também pode ser visto com clareza em A Órbita em Ziguazague.
O outro livro, The Sheep Look Up (1972), também inédito no Brasil, é uma distopia que lida com a deterioração do meio ambiente, poluição e, claro, mais uma vez a participação do governo e das grandes corporações em detrimento do indivíduo.
Curiosamente, a obra é listada no livro Horror: 100 Best Books (1988), com um ensaio assinado pelo escritor e editor John Skipp, que diz se tratar do livro mais horripilante que já leu. Ele entende que, assim como em Stand on Zanzibar, o personagem principal não é tanto um ser humano específico, mas o próprio planeta, visto a partir de milhares de perspectivas humanas individuais. Só que, no fim das contas, nada disso importa, porque o mundo está absolutamente condenado. Para Skipp, o terror maior está na sensação de que, agora que já deixamos a coisa ir tão longe, nenhuma ação vai fazer a menor diferença.

 

 

 

Mais Cidades Gigantes

 

É verdade que as cidades gigantescas do futuro sempre estiveram presentes na ficção científica e, no cinema em particular, as imagens dessas cidades sempre foram uma atração. E com o desenvolvimento impressionante da tecnologia utilizada nos efeitos visuais, elas ganharam ainda mais importância, mesmo quando a cidade em si não tem uma função predominante na história.
Não sei se é forçar demais a barra imaginar que essa apresentação das cidades ganhou importância depois de Blade Runner, em 1982, dirigido por Ridley Scott, baseado no livro de Philip K. Dick, Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? (Do Androids Dream of Electric Sheep, 1968. Editora Aleph. Anteriormente publicado no Brasil com o título O Caçador de Androides [Francisco Alves Editora e Editora Rocco]; e em Portugal com o título Blade Runner – Perigo Iminente [Ed. Europa-América]). De qualquer forma, a cidade elaborada por Syd Mead e Ridley Scott influenciou muitas cidades posteriores do cinema de ficção científica.



 Blade Runner (Warner Bros.).

Philip K. Dick não chegou a ver a edição final do filme, pois faleceu em março de 1982 e o filme só estreou em junho. No entanto, ele chegou a ver muitas imagens e, segundo afirmam suas biografias, ficou impressionado como o artista conseguiu captar “exatamente” o que ele havia imaginado ao escrever a história.

O ambiente superpovoado, com variados tipos humanos e um ambiente quase sempre opressivo, escuro e sombrio, serviu como inspiração para dezenas de filmes. A cidade em questão é Los Angeles, que Philip K. Dick conhecia muito bem, porém num mundo em que a poluição é tamanha que impede uma visão completa do Sol, e na qual se aglomeram, quase em desespero, alguns dos últimos habitantes do planeta. No livro, essa situação é mais clara, porque o autor trata de vários temas interligados, inclusive a poluição e a poeira radioativa que faz com que os governos incentivem a imigração para outros planetas; os que permaneceram na Terra vivendo empilhados em cidades repletas de lixo.

 

Em 1995, O Juiz (Judge Dredd), dirigido por Danny Cannon, com Sylvester Stallone no papel principal, apesar de ser um filme bem ruinzinho, também traz o conceito da cidade monstruosa. No caso, é Mega City One, conforme o conceito desenvolvido originalmente nos quadrinhos, cobrindo boa parte do leste dos Estados Unidos e parte do Canadá. A cidade voltaria a ser apresentada, com efeitos visuais mais aprimorados, em Dredd – O Juiz do Apocalipse (Dredd), a versão de 2012 da história, dirigida por Pete Travis. A ação se passa principalmente num prédio gigantesco, praticamente uma sociedade à parte. Tem muita violência e pouco mais do que isso.

 

 

O Quinto Elemento, com Mila Jovovich pulando antes de ser "resgatada" por Bruce Willis (Gaumont Buena Vista Int./ Columbia Pic.).

Uma cidade mais interessante, ainda que só tenha sido mostrada em poucas cenas, é a Nova York de O Quinto Elemento (Le Cinquième Élément, 1997), o divertido filme de Luc Besson, com Bruce Willis, Gary Oldman e Milla Jovovich. A cidade é assustadora, um amontoado de prédios com espaço entre eles apenas para a circulação de carros aéreos, em vários níveis.

A polícia da Nova York do futuro, em O Quinto Elemento.

A perseguição policial ao táxi de Bruce Willis dá uma boa ideia da altura das construções e o emaranhado de vias aéreas percorridas pelos veículos. Não se trata de uma cidade sombria, como a Los Angeles de Blade Runner, mas ainda assim é gigantesca.

Les Cercles du Pouvoir (Dargaud).

Segundo se diz, uma das inspirações para a elaboração da cidade foram os quadrinhos Les Cercles du Pouvoir (1994), o décimo quinto volume da série Valérian et Laureline, de Pierre Christin e Jean-Claude Mézières. Mézières e Jean Giraud, mais conhecido como Moebius, foram contratados para trabalhar no filme, e o resultado é visualmente sensacional.
Luc Besson voltou a apresentar uma cidade imensa em Valerian e a Cidade dos Mil Planetas (Valerian and the City of a Thousand Planets, 2017), igualmente baseado nas aventuras de Valerian (Dane De Haan) e Laureline (Cara Delevingne). É outro espetáculo visualmente arrebatador, mas com uma história que vai se tornando cada vez mais vazia à medida que o filme progride.

Um exemplo de uma cidade mais próxima do clima de Blade Runner, é a de O Vingador do Futuro (Total Recall, 2012), dirigido por Len Wiseman. É uma refilmagem do filme com o mesmo título, de 1990, dirigido por Paul Verhoeven, que tinha Arnold Schwarzenegger no papel de Douglas Quaid e Sharon Stone como Lori. Na refilmagem, Colin Farrell assume o papel de Quaid, e Kate Beckinsale o de Lori. O novo roteiro foi baseado no filme anterior que, por sua vez, foi baseado no conto de Philip K. Dick, Recordações por Atacado (We Can Remember It For You Wholesale, 1966. Em Portugal, no livro A Máquina Preservadora. No Brasil, no livro Realidades Adaptadas, Editora Aleph, com o título Lembramos Para Você a Preço de Atacado).
A história original, que já havia sido bastante modificada no primeiro filme, sofreu ainda mais alterações. Na verdade, é até uma história interessante; só não tem nada a ver com a história de Philip K. Dick. Inventaram até um transporte, um elevador gravitacional, que atravessa o planeta passando por seu núcleo, ligando a Europa à Colônia, que é a Austrália, onde vivem os trabalhadores das fábricas europeias.
O relevante para esta matéria é que a cidade na Colônia tem aquele visual sombrio, com ruas apinhadas de pessoas, apertadas, escuras e sujas. Como Len Wiseman foi diretor e produtor da série de filmes Underworld, é difícil deixar de ligar uma coisa a outra, não só pela presença de Kate Beckinsale, mas pelo visual “meio azul”, como se fosse sempre noite, o que aparentemente amplia a sensação claustrofóbica de se viver numa cidade onde sempre existe uma pessoa a seu lado, e do outro, e atrás, e na frente, e... vocês entenderam!