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O GIGANTE ENTERRADO

Livros/Lançamentos

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data23/08/2015
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O novo livro de Kazuo Ishiguro utiliza a fantasia para falar sobre memória e amor.

Por alguns dos textos que li na internet, Kazuo Ishiguro é um escritor que causa um certo incômodo em alguns críticos, em particular aqueles que sempre têm palavras amargas – além de equivocadas – sobre a ficção científica. Isso porque ele é um escritor famoso, premiado, um dos principais da Inglaterra, e, eventualmente, escreve livros que se enquadram na literatura fantástica.
Esses críticos, infelizmente, não são tão raros, e eles também parecem não gostar muito da literatura fantástica em geral, apesar dela ser, segundo alguns estudiosos, a base de toda literatura moderna (só para não ficar com o “estudiosos” no ar, em outros textos aqui no Vimana já citei Todorov, Brian Aldiss e outros nomes). Estamos falando, é claro, da literatura desenvolvida por seres humanos no planeta Terra.
No caso de Ishiguro, já tinha sido assim com o excepcional Não me abandone jamais (Companhia das Letras). A sinopse fornecida pela própria editora diz que “Embora à primeira vista pareça pertencer ao terreno da ficção científica, o livro de Ishiguro lança mão desses ‘doadores’ (...), para falar da existência”. Atenção: palavrão a seguir. Caráleo! Não é à primeira vista. Não “parece” pertencer. É ficção científica, e o subgênero fc fala sobre a “existência” e muitos outros temas com uma frequência que esses críticos e “contras” devem achar assustadora. A razão para isso é simples: a literatura fantástica pode lidar com quaisquer temas.
Não é de hoje que existe essa resistência, e ela não se limita ao Brasil. A série de Doris Lessing iniciada com o livro Shikasta já passou por isso, sendo veiculada para o público como “ficção espacial”. O livro de Ishiguro citado acima foi classificado pelo crítico Louis Menand, no The New Yorker, como “quasi-science-fiction”, seja lá o que isso signifique. Na seção de resenhas de livros do The New York Times, Sarah Kerr disse que o livro subverte as convenções banais do gênero. É irritante a arrogância e o desconhecimento que essas pessoas apresentam sobre o gênero. É claro que existem “convenções banais” na ficção científica, as quais foram “subvertidas” por dezenas de autores de ficção científica, em centenas de obras (pelo menos), dezenas de anos atrás. As convenções continuam sendo utilizadas por muitos autores, e não sendo utilizadas por outros. É por isso que alguns autores e livros são melhores do que outros, tanto na ficção científica quanto em qualquer literatura.

Em O Gigante Enterrado, Kazui Ishiguro circula pelo ambiente da fantasia, e quase todos os comentários parecem concordar que o tema central é a memória, tanto a memória pessoal quanto a coletiva, e como ela pode moldar a realidade das pessoas e das coletividades. E para falar sobre isso, o autor escolheu um ambiente de fantasia, de sonho, numa Inglaterra em que a lembrança do rei Artur ainda está presente, ainda que de forma nebulosa, como se encontram as memórias de todas as pessoas.
Entre essas pessoas, encontra-se o casal central da narrativa, os idosos Axl e Beatrice, que partem de sua estranha aldeia subterrânea em direção à aldeia onde acham que seu filho mora, onde imaginam que ele está à sua espera. Tudo é incerto, uma vez que uma névoa instalou-se na terra, provocando a perda das lembranças; às vezes, elas ressurgem aos poucos, em pequenas doses, e as pessoas quase conseguem manter parte de suas memórias, para em seguida seus pensamentos seguirem em outra direção.
Nessa terra de fantasia existem ogros e outros seres misteriosos, e até um dragão fêmea, enfeitiçada por Merlin, muito tempo atrás. O próprio Merlin é um fragmento de lembrança, e não se sabe mais nada dele ou do rei Artur. Pelos fragmentos de conversa e de memória que surgem aqui e ali, parece que nenhum deles era, enfim, sujeitos tão bons e perfeitos quanto as lendas dão a entender.
E, claro, é também uma história sobre a guerra – ainda que nenhuma batalha seja apresentada – ou, mais exatamente, sobre os efeitos da guerra na sociedade, e como os recortes de lembranças podem alterar a forma como as pessoas entendem o mundo e os eventos catastróficos que se abateram sobre elas. E da mesma forma como lida com os horrores da destruição provocada pela guerra, também fala sobre o amor, representado não apenas pela relação entre Axl e Beatrice, mas também pelo amor possível de existir entre povos supostamente inimigos.
De qualquer maneira que se encare o livro de Kazuo Ishiguro, o certo é que se trata de uma leitura cativante, quase sempre intrigante, e tão repleta de metáforas que pode levar o leitor a diferentes interpretações do texto. Uma maravilha.

O Gigante Enterrado (The Buried Giant, 2015)
Kazuo Ishiguro
Companhia das Letras
400 páginas