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NA SOLIDÃO DA NOITE

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data02/03/2016
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Um clássico do cinema de terror com mais de 70 anos, e ainda sensacional.

Ultimamente, não sei bem por que, minha memória tem apresentado algumas falhas irritantes. Seja como for, acredito que a primeira vez em que assisti a Na Solidão da Noite, na televisão, tive pesadelos. Claro que, naquela época longínqua, eu era um pequeno Gilbertinho, mais influenciável do que sou agora.
De lá para cá, devo ter visto o filme umas três ou quatro vezes, até chegar à sessão deste ano, quando revi a obra em DVD. E, na solidão da noite e com a mente calma, fica bem mais fácil entender o tremendo efeito que a história pode ter no espectador. E entender porque tantos críticos consideram o filme um dos clássicos do cinema de terror; não todos, é claro, por que dizem que a unanimidade é burra.
O filme é um dos seis lançados no box “Obras-Primas do Terror”, da Versátil, acho que em 2014, com uma capa interna bem legal, reproduzindo os cartazes originais dos filmes.

Ralph Michael e Googie Withers, o casal assombrado por um espelho, numa das melhores sequências do filme (Ealing Studios).

Na Solidão da Noite (Dead of Night) é uma produção inglesa de 1945, seguindo o formato que se convencionou chamar de antologia; reúne várias histórias diferentes, aqui unidas por uma narrativa comum. Teve como diretores o brasileiro Alberto Cavalcanti, radicado na Europa desde os 15 anos, Charles Crichton, Basil Dearden e Robert Hamer. Cavalcanti chegou a retornar ao Brasil nos anos 1950 e trabalhou como produtor na Vera Cruz, uma das mais famosas companhias de cinema do Brasil. Em 1953, ele dirigiu o excelente Simão, o Caolho.
As histórias que compõem a antologia foram escritas por H.G. Wells, E.F. Benson, John Baines e Angus MacPhail.
A história que une as demais mostra um arquiteto que acorda pela manhã com a sensação de que teve um sonho ou pesadelo do qual não se recorda. Ele recebe um telefonema para ir a uma casa no campo para fazer alguns trabalhos. Lá estão reunidas várias pessoas, e ele diz a eles ter a impressão de já ter vivido aquela cena antes. As pessoas acham o assunto intrigante, e mais ainda quando o arquiteto diz que se lembra de eventos que vão ocorrer no local e que, de fato, ocorrem. Elas passam a contar casos estranhos que lhes aconteceram, e as histórias fantásticas formam os episódios do filme, que fecha com a reunião de todos os personagens num pesadelo terrível no qual o próprio arquiteto é o personagem central, formando um círculo interminável de sonhos dentro de sonhos.

Reunidos na sala e contando histórias aterrorizantes (Ealing Studios).

O episódio mais marcante talvez seja mesmo aquele dirigido por Cavalcanti, envolvendo um ventríloquo e seu boneco, e o episódio sobre um espelho assombrado, dirigido por Robert Hamer, e ambas escritas por John Baines. Por incrível que possa parecer, a sequência mais fraca é a baseada em história de H.G. Wells, colocada no meio do filme como o chamado “comic relief”, um episódio humorístico leve, ainda que com toques sobrenaturais, que antecede o pesadelo mais intenso e o período mais pesado do filme.

 

Michael Redgrave como o ventríloquo aterrorizado pelo boneco.

Na época da Segunda Guerra Mundial, os filmes de terror tinham sido banidos na Inglaterra, de modo que Na Solidão da Noite foi um dos primeiros do gênero a surgir após o término do conflito. E o formato escolhido teve muita influência em diversos filmes de terror, especialmente dos anos 1960.
Michael Weldon, em seu livro The Psychotronic Encyclopedia of Film (1983), escreveu que nenhum outro filme no formato de antologia de histórias de terror sequer chegou perto do poder que tem esse clássico. Weldon também entendeu que o final do filme “obviamente influenciou Psicose”, mas, para ser sincero, não consigo ver a relação entre os dois.

Sally Ann Howes, em um encontro com um fantasma.

Já Phil Hardy, em The Aurum Film Encyclopedia: Horror (1985), entende que o filme é superestimado. O motivo, segundo ele, é exatamente o fato de ter sido recebido com grande entusiasmo por ser um dos primeiros do gênero após o período de proibição. Ainda assim, Hardy diz quer a narrativa principal é excelente, mas que a sensação de um círculo vicioso de terror poderia ter sido mantida de maneira mais eficiente se o clima tivesse sido mantido ao longo do filme.
Hardy não deixa de ter razão nesse ponto. O ritmo e o terror inspirados pelas histórias vinha crescendo, começando com a sequência do motorista do carro funerário, ainda com tons amenos, passando pelo episódio da festa infantil, envolvendo o surgimento de um fantasma, chegando ao episódio do espelho assombrado, já com tons mais pesados. E o episódio humorístico quebra totalmente o ritmo. No entanto, quando começa a história do ventríloquo e, em seguida, as cenas finais, é um clima de pesadelo poucas vezes visto no cinema do gênero até então, ou mesmo depois disso.

 
 
Na sequência do carro fúnebre, o personagem recebe uma mensagem que não consegue explicar.


É uma beleza, e é difícil falar sobre o filme – e outros filmes de terror dos anos 1940/50/60 – sem falar na utilização dos efeitos especiais que dominou o cinema de terror nas décadas seguintes. Na Solidão da Noite é um daqueles clássicos que, além de ter sido filmado em preto e branco, não se preocupa absolutamente com os efeitos visuais, e sim com a história, com a direção e interpretações, com a iluminação, obtendo resultados muito mais impressionantes do que muitas porcarias atuais, que reduzem a sensação de horror e suspense em nome da tecnologia. Para quem duvida disso, procurem assistir à versão original de Desafio ao Além (The Haunting, 1963) e à miserável refilmagem de 1999, A Casa Amaldiçoada.
Na Solidão da Noite é maravilhoso, e vale a pena procurar para assistir, ainda mais que vem em uma caixa recheado de filmes sensacionais.

Cena da aterrorizante parte final de Na Solidão da Noite.