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TUDO SE TRANSFORMA

ESPECIAIS/VE CORPOS ALTERADOS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data22/03/2021
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As transformações, forçadas ou não, não se limitam aos seres humanos: nas histórias, animais e plantas também podem sofrer mutações.

Ilustração de Tim White.

Apesar de a radiação ter sido a grande impulsionadora de histórias sobre mutações, ela não foi o único argumento utilizado pelos escritores do gênero para apresentar seres mutantes, fossem eles humanos, animais ou vegetais.

Capa de Eddie Jones (Sphere Books, 1971).

Até mesmo o passar do tempo pode ser utilizado como argumento, como é o caso do sensacional A Longa Tarde da Terra (Hothouse, 1962. Também publicado como The Long Afternoon of the Earth), de Brian Aldiss, livro que também pode ser incluído no subgênero “dying Earth”, com história situada em um futuro tão distante que a Terra está próxima de seu fim.
Nesse mundo, os humanos já nem podem mais ser considerados como tais, tamanhas as transformações pelas quais passaram, e o mesmo pode ser dito a todo tipo de vida no planeta; os humanos tornaram-se minúsculos e esverdeados, arriscando-se em uma Terra que não tem mais o movimento de rotação.

                                                                                                            Capa de Susan Collins (Baen, 1984).

David Brin considerou o livro “Uma história de aventura exuberante e linguisticamente inventiva, construída para chegar a um clímax de delírio requintado”. John Clute considerou o livro um dos melhores trabalhos de Brian Aldiss, o que não é pouco a se dizer de um dos melhores escritores do gênero. Clute lembra que o livro foi criticado pelo escritor James Blish e outros devido a sua implausibilidade científica, mas que “(...) demonstra a inutilidade fundamental de tais críticas a um trabalho como esse, que exibe todo o talento linguístico, cômico e inventivo de Aldiss, e dramatiza efetivamente uma grande variedade de interesses”, entre ele o conflito entre fecundidade e entropia, entre a rica variedade da vida e o silêncio da morte.

Capa de Tony Fiyalko (Nelson Doubleday/ SFBC, 1985).

David Pringle – que apresentou o livro entre os 100 melhores do gênero, em seu livro Science Fiction: The 100 Best Novels, cobrindo o período até 1984 – entende que toda a ficção de Brian Aldiss fala sobre fecundidade, com histórias repletas de imagens de vida explosiva, de variedade e crescimento idiossincráticos, multiplicidade e plenitude. “Mas em nenhum lugar essa celebração da fecundidade é percebida mais fortemente do que em Hothouse, sua história de um futuro inconcebivelmente remoto, quando a Terra parou de girar e uma figueira gigantesca cobre grande parte do lado ensolarado. (...) Esse é um livro de criatividade extraordinária e perícia linguística, prejudicado por caprichos ocasionais e por uma estrutura um tanto imprecisamente episódica demais que revela a origem do livro – foi originalmente uma série de contos separados publicados em The Magazine of Fantasy and Science Fiction. Não é o trabalho mais sério de Aldiss, mas certamente é o mais feliz”.
 

                                                                                                                  Capa de Richard Powers (Berkley Medallion, 1962).

J.G. Ballard também apresentou mutações ocorrendo devido a fatores naturais em Cataclismo Solar (The Drowned World, 1962. Ver mais na matéria Destruições Cósmicas e Terrestres). A Terra perde suas defesas contra a radiação solar que, por sua vez, faz com que as mutações sejam aceleradas, começando pelas espécies botânicas e, depois, nos animais, diminuindo a fertilidade dos mamíferos e aumentando a dos répteis. Uma das transformações com os humanos é interna; um cientista percebe que os humanos começam a ter uma intensa sensação de déjà vu, de já conhecerem os pântanos e lagoas que começam a se formar em todo o planeta, sensação que é apresentada como sendo uma memória racial que vem à tona, juntamente com um medo guardado nas memórias dos tempos em que os seres humanos tinham de lutar por sua sobrevivência, enfrentando os répteis mais adaptados ao ambiente.
Segundo John Clute e David Pringle, esse livro inverte um modelo de texto desenvolvido por John Wyndham na linha dos “romances de desastres”, e faz isso “(...) criando um herói que, mais do que lutar contra o desastre da mudança climática que está tomando conta do mundo, conspira com ele”. Em poucas palavras, Pringle definiu o livro como “Poderosamente descrito, surrealista, inesquecível”. Assim como o livro de Aldiss, esse também é comentado em Science Fiction: The 100 Best Novels, no qual Pringle diz que “É uma história assustadora, ricamente descrita na prosa parentética de Ballard”. Ele lembra que a história termina com um “registro estranho” que desconcertou alguns leitores na época, com o personagem central decidindo viajar mais para o interior do mundo alagado, o que certamente irá causar sua morte, “(...) mesmo que inicialmente lhe traga uma satisfação psicológica. O que Ballard fez foi inverter as prioridades do romance de desastre ‘clássico’ inglês, como O Dia das Trífides, de John Wyndham, ou Chung Li – A Agonia do Verde (The Death of Grass; também com o título A Última Fome), de John Christopher”.

 

Capa de Jeff Adams (Delacorte Press/ Seymour Lawrence, 1985).

Outra transformação natural é apresentada em Galápagos (Galápagos, 1985), de Kurt Vonnegut Jr. E, como praticamente tudo o que Vonnegut escreveu, tende para o cômico, a sátira e a crítica social. O livro surgiu na fase final da carreira de Vonnegut, que parou de escrever em 1997. Segundo Brian Stableford e John Clute, é o melhor trabalho do autor nesse período. Apresenta um grupo de humanos que ficam isolados na ilha fictícia de Santa Rosalia, nas Galápagos, em um momento em que uma crise mundial arrasa o planeta e, posteriormente, uma doença torna as pessoas incapazes de se reproduzir. Com exceção, é claro, dos ilhados. Assim, ao longo de um milhão de anos, eles passam por mutações e acabam transformando-se em outra espécie.
O ponto apresentado por Vonnegut – por meio do personagem Leon Trotsky Trout, um espírito, filho de Kilgore Trout, um personagem recorrente dos livros do escritor – é de que o grande vilão da humanidade é o tamanho do seu cérebro, de modo que a seleção natural acaba criando seres com cérebros menores.

Transformações radicais de humanos também são um tanto comuns na ficção científica, como é o caso de Esse Mundo Superpovoado (This Crowded Earth, 1958), de Robert Bloch, mais conhecido por seu Psicose (Psycho, 1959), que originou o filme clássico de Alfred Hitchcock.

                                                                                                                                         Capa de Virgil Finlay (Armchair Fiction, 2012).

O livro não é muito bom e, na verdade, Bloch sempre pareceu estar mais à vontade com os contos de terror e suspense, às vezes completando a mitologia de deuses alienígenas inventada por H.P. Lovecraft. O tema básico aqui é bem comum na FC, apresentando uma Terra superpovoada, como diz o título, enfrentando problemas de espaço. Para solucionar, alguém, ou um grupo de pessoas, tem a brilhante ideia de fazer com que os humanos passem a nascer e desenvolver-se até atingirem o tamanho máximo de 90 centímetros.
Um dos problemas da história é a datação, que é uma armadilha para escritores do gênero. Bloch imaginou um futuro muito próximo, elaborando a cidade de Chicago com 38 milhões de habitantes, o que seria, talvez, insuportável para os padrões de 1958, mas nem tanto segundo o que se vê neste século 21, com áreas metropolitanas gigantescas; Tóquio já tem uma área metropolitana com essa população; São Paulo já tem mais de 20 milhões. Além disso, Bloch imagina que o maior problema seria de espaço, uma vez que todos têm empregos e lugar para morar, ainda que apertados. E imaginou um governo que tem reticências em aplicar leis severas de controle de natalidade.
Seja como for, nada do que ocorre é muito bem explicado e a solução encontrada, povoar o planeta com pessoas de 90 centímetros de altura, acaba criando mais problemas.

Udo Kier, Christoph Waltz e Matt Damon, segurando uma rosa de tamanho normal, em Pequena Grande Vida (Paramount Pictures/ Gran Via Productions).

Essa também é a ideia do estranho filme Pequena Grande Vida (Downsizing, 2017), dirigido por Alexander Payne, com Matt Damon no papel central. A vantagem do filme é que o tema é tratado com humor. Aqui, as pessoas ficam ainda menores, com cerca de 13 centímetros, e alguns selecionados para passar pelo processo – jamais explicado, é claro – vão viver em comunidades experimentais. O problema global é não apenas de superpopulação, mas também ecológico, e o final da história indica momentos ainda mais terríveis para o planeta.

 

Robert A. Heinlein desenvolveu algumas histórias envolvendo um programa especial de procriação que possibilitasse o desenvolvimento de pessoas capazes de viver muito tempo. Algumas dessas histórias fazem parte do que ele chamou de “história do futuro” e envolvem a “família Howard”, um grupo social financiado pela fortuna de um bilionário.

Capa de Hubert Rogers ilustrando a história de Heinlein (1941); Capa de Jan Parker (New English Library, 1971).

Essa família surge inicialmente no livro Os Filhos de Matusalém (Methuselah’s Children, 1958), publicado originalmente em três partes na revista Astounding Science Fiction, em 1941. Provavelmente, é o melhor livro da série de histórias envolvendo o personagem Lazarus Long, o que não quer dizer grande coisa. David Pringle disse que é o melhor livro de Heinlein nos anos 1940 (considerando a primeira edição na revista), “(...) ainda que um tanto irregular quanto ao ritmo”, com o personagem Lazarus Long apresentando uma filosofia barata que segue o pensamento do próprio escritor.

Capa de Vincent Di Fate para Time Enough for Love (Putnam, 1973); capa de Boris Vallejo para To Sail Beyond the Sunset (Ace/Putnam, 1987).

Ainda contando a história da família Howard, Lazarus Long volta a surgir em Amor Sem Limites (Time Enough for Love: The Lives of Lazarus Long, 1973), já com mais de 2 mil anos de idade, em uma história marcada por muitas discussões sobre incesto e viagens no tempo, além de uma série de melhorias que Lazarus faz em seu corpo por meio de procedimentos específicos. David Pringle escreveu: “Nesse livro longo demais e narcisista, o autor tenta amarrar muito de sua ficção anterior, com tristes resultados”. E Heinlein ainda escreveu To Sail Beyond the Sunset (1987), que traz as memórias de Maureen Johnson Smith Long, mãe e amante de Lazarus Long. David Pringle foi sucinto: “Esse é o último trabalho de Heinlein, e talvez seja melhor não dizer mais nada”.
 

Mais planejado e longo é o processo de procriação dirigida em Duna (Dune, 1965), o clássico de Frank Herbert, um dos inúmeros temas abordados no livro. O grupo religioso e político feminino das Bene Gesserit é o responsável por um programa de procriação destinado a criar um ser especial. Elas têm a capacidade de acessar a memória genética por meio da utilização da “especiaria”, a melange, produzida apenas em Arrakis. Só que elas só conseguem acessar memórias do lado materno. Assim, seu programa de procriação tem como objetivo final a criação de um homem que preencha esse vazio, podendo acessar todas as memórias, além de ter visões que transcendem o tempo e o espaço, de modo que possa prever o futuro.
Esse ser, o Kwisatz Haderach, surge na figura de Paul Atreides, antes mesmo do que elas previam, e eventualmente ele irá se tornar a figura mais importante do universo e totalmente fora do controle da Bene Gesserit.

Capa de Chris Achilleos (Arrow Books, 1978); capa de Roxanna Bikadoroff (Virago, 2008).

Uma transformação radical também ocorre no livro A Paixão da Nova Eva (The Passion of the New Eve, 1977), da sensacional escritora Angela Carter. O livro foi comentado por David Pringle em Modern Fantasy: The 100 Best Novels, no qual ele ressalta: “Que mente tem Angela Carter! E que talento! Essa fantasia intensa sobre as possibilidades da liberação feminina é um romance perverso – ‘perverso’ em sua honestidade sobre impulsos eróticos e sádicos, e as formas pelas quais esses impulsos subvertem todos nossos sonhos utópicos. Situado diante de um assustador pano de fundo dos Estados Unidos desmoronando, é um trabalho de puro extremismo gótico”.
A transformação em questão ocorre com o personagem Evelyn, um inglês nos EUA, que é totalmente transformado em mulher, com a história sendo narrada na primeira pessoa e, como diz Pringle, pode ser lido como um “sonho febril”. E, apesar de frequentemente o livro ser apresentado como uma distopia, Pringle entende que “Não há sugestão de que o romance seja situado no futuro; mais exatamente, lida como uma fantasia europeia sombria sobre a América. Porque é a quintessência da Nova York dos anos 1970: uma cidade de ratos e assaltantes, viciados em drogas e loucos falando sozinhos. Tem mais a ver com Taxi Driver (1976) do que com Um Dia em Nova York (On the Town, 1949)”.

As transformações nas histórias de ficção científica também afetam os animais, uma ideia que H.G. Wells já havia desenvolvido no já citado A Ilha das Almas Selvagens. Um exemplo na FC moderna é o conto Proteus Island (1936), de Stanley G. Weinbaum, publicada na revista Astounding Stories, na qual um zoólogo encontra uma ilha repleta de mutações animais e vegetais. Em The Encyclopedia of Science Fiction, Brian Stableford e David Langford apresentam o conto como uma das primeiras histórias envolvendo uma versão mais exata de engenharia genética, refletindo seu modelo, A Ilha das Almas Selvagens, de Wells, presumindo que a “natureza da besta” não pode ser mudada tão facilmente quanto sua forma física.
E no conto The Faithful (1938), de Lester del Rey, publicado em Astounding Science Fiction – seu conto de estreia – o autor apresenta um futuro no qual os seres humanos foram destruídos por bombas e por uma praga, com a exceção de um homem que estava fazendo experiências com um soro da longevidade que o protegeu. Mas alguns cães e macacos que faziam parte de um programa de pesquisa biológica para desenvolver sua inteligência não apenas sobrevivem como evoluem, com a tendência de os macacos dominarem o planeta em breve.

                                                                                                                                              Capa de Richard Powers (Ballantine Books, 1954).

Poul Anderson também apresentou evolução dos animais em seu A Hora da Inteligência (Brain Wave, 1953), em um momento em que a inteligência de todos os seres da Terra é repentinamente ampliada. Após os superdotados deixarem o planeta, os menos dotados permanecem em comunidades rurais, com os animais mais espertos, como os macacos e os cães, ajudando os seres humanos a iniciar uma nova fase da vida no planeta.

Capa da primeira edição (Secker & Warburg, 1944).

Mas a maioria dos críticos ressalta mesmo a história de Olaf Stapledon, Sirius: A Fantasy of Love and Discord (1944). Sirius é o nome de um cão que faz parte de um projeto do cientista Thomas Trelone, que utiliza esteroides e produtos químicos para ampliar sua inteligência, com sucesso, de modo que Sirius desenvolve uma Inteligência comparável à de um humano. Ele é criado junto com a filha do cientista e crescem como irmãos. Posteriormente, a vida separa os dois.

                                                                                                                    Capa de Cliff Nielsen (Gollancz, 2011).

John Clute e Mike Ashley disseram que o livro é ainda mais focado na natureza da vida contemporânea do que Odd John, já comentado. “O cão, com suas limitações naturais, é um paradigma de nossa própria capacidade limitada, mas ao mesmo tempo seus dons naturais – por exemplo, sua capacidade de olfato – é outra lembrança da insuficiência humana. Como em Odd John, o ser mutante, quando defrontado com a violência dos normais e sua incompreensão, morre – dessa vez diretamente nas mãos de humanos”.
George Mann diz que “(...) para muitos, Sirius é estimado como a mais magnífica história de FC a retratar um protagonista não humano. (...) o romance explora a confusão interna do animal, assim como examina, por meio de alegoria, o papel que a inteligência representa no desenvolvimento da consciência e da conscientização moral”.
David Pringle diz que a história, “Mais filosófica do que sentimental, no entanto é extremamente comovente. O melhor romance de Stapledon, em termos ficcionais convencionais, não tem a abrangência de Star Maker e outros, mas aborda alguns dos mesmos temas: em particular, qual é a posição da inteligência nesse universo frio?”
 

Capa de William Timmins, ilustrando o conto Giant Killer, de A. Bertram Chandler (1945).

O conto Giant Killer (1945), de A. Bertram Chandler, publicado na revista Astounding Science Fiction, tem sua história inteiramente situada a bordo de uma espaçonave, no que John Clute chamou de “pocket universe”, um mundo fechado em si mesmo. A nave tem os “gigantes”, que na verdade são humanos de tamanho normal, e o Povo, ratos que sofreram mutações a ponto de desenvolverem inteligência e formarem uma sociedade organizada, e que tentam entender o que são os gigantes e sua sociedade.

                                                                                Capa de Nicolas Mordvinoff (Harcourt, Brace & Company, 1952).

Em Star Man’s Son, 2250 A.D. (1952), de Andre Norton – pseudônimo de Alice Mary Norton –, o mutante é um gato. O mundo foi destruído por uma guerra nuclear e o que restou da civilização regrediu a um estado de selvageria. O protagonista da história realiza uma jornada em companhia de seu gato mutante em busca da cidade dos Antigos. Nesse mundo, as pessoas reúnem-se em tribos e alguns tentam manter a linhagem humana sem mutações, mas novas tribos mutantes surgem, assim como vários animais que se transformaram e ganharam inteligência.
John Clute diz que as obras de Andre Norton nesse período geralmente apresentavam personagens centrais, homens ou mulheres, que precisavam passar por algum tipo de “ritual de passagem” para atingir uma maturidade sã e, “(...) fazendo isso, de modo típico eles descobrem que a verdadeira natureza do universo está não nas transformações radicais que possam testemunhar, mas em sua história, e nos ícones e talismãs associados a essa história”.