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ESPECIAIS/SEXO E SEXUALIDADE NA FC

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data17/09/2019
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As transformações surgidas nas décadas anteriores mudaram definitivamente a abordagem das questões envolvendo sexo na ficção científica.

A partir do final dos anos 1970 e início dos 1980, as coisas mudaram ainda mais na ficção científica, e também na fantasia, com as abordagens de gênero e sexo expandindo-se e tornando-se mais comuns nas histórias.
John Varley foi um dos principais autores a surgir no final da década de 1970. Como disse John Clute, “Ele era revigorante, ele era complexo, ele entendeu as implicações imaginativas dos desenvolvimentos transformadores como a clonagem e muitos de seus protagonistas são mulheres”.
Essas transformações já são percebidas em seu primeiro romance, Ofiúco, O Aviso (The Ophiuchi Hotline, 1977), que inicia uma série nomeada Eight Worlds (Oito Mundos), da qual ainda fazem parte os livros Steel Beach (1992), The Golden Globe (1998) e Irontown Blues (2018). O primeiro livro apresenta a humanidade expulsa da Terra por alienígenas e vivendo em alguns locais do sistema solar, ao mesmo tempo em que começou a receber informações científicas e tecnológicas importantes de outra raça alienígena. As novas tecnologias, entre elas a clonagem e possibilidades de transformações no DNA, permitem às pessoas trocarem de sexo com imensa facilidade, tornando irrelevantes questões como a homofobia.

(Capa: Paul Lehr).

Seu segundo romance, Titã (Titan, 1979), iniciou a trilogia de Gaia, que teve sequência com Feiticeira (Wizard, 1980) e Demônio (Demon, 1984), com a personagem central Sirocco Jones, que lidera uma expedição da NASA a Saturno, quando descobrem a existência de um mundo artificial. Titan foi publicado originalmente na revista Analog Science Fiction, de janeiro a abril de 1979.

                                                                                (Capa: Ron Walotsky/ Berkley-Putnam-SFBC).

Segundo John Clute, na trilogia, Varley examina o “erotismo polimórfico”, ainda que o aspecto sexual seja mais evidente nos dois últimos livros, nos quais Varley dá mais atenção aos relacionamentos, tanto entre humanos como entre os titânides, as criaturas semelhantes a centauros, e entre os demais seres que habitam o mundo artificial inteligente, que chama a si mesmo de Gaia. Trata-se de um habitat gigantesco em forma de roda, semelhante à proposta terrestre para construção de uma colônia espacial, conhecida como Toroide de Stanford.
Adam Roberts diz: “O interior, eles descobrem, é uma série variada e colorida de ecologias entrelaçadas, todas geradas pela própria Gaia e muitas delas adaptadas da cultura popular da Terra (que Gaia vem monitorando). Algumas funcionam melhor que outras; os centauros inteligentes, com seus complexos protocolos sexuais (possuem genitais tanto humanos quanto equinos, e Varley não nos poupa nada dos detalhes), recebem talvez demasiado espaço na história. Mas o ponto em Demon onde a própria Gaia, agora enlouquecida, toma a forma de uma Marilyn Monroe de proporções brobdingnaguianas alcança uma vigorosa estranheza que quase substitui a força satírica”.

(Capa: Bryn Barnard/ Arbor House - William Morrow).

John Clute ressalta que algumas histórias dos anos 1980 lidaram com a questão da AIDS, direta ou metaforicamente, como foi o caso de Unicorn Mountain (1988), de Michael Bishop, em livro muito bem recebido pela crítica, com um enredo que mistura a morte de unicórnios de outra dimensão com a questão da AIDS. No mesmo ano, Ian Watson publicou The Fire Worm, uma expansão de sua história Jingling Geordie’s Hole (1986), publicada na revista Interzone. John Clute disse que a história traz pesadelos surreais e sodomitas. Um homem submetido a hipnose lembra de encontros que teve com um alienígena devorador que, de alguma forma, foi libertado no mundo por meio de alquimia, na Idade Média. O escritor Paul McAuley, comentando a história em Interzone, disse que se trata de um romance complexo que mistura o aspecto visceral do terror com psicologia sexual e a racionalização da ficção científica.

                                                                                                                        (Capa: Don Maitz/ Warner Books).

Segundo Joseph Marchesani, as representações de sexualidade e gênero alternativos também aumentaram entre os autores cujo trabalho não é tão identificado com essas preocupações, e esses escritores ajudaram a reformatar as características mais tradicionais dos gêneros – seja a ficção científica, seja a fantasia – iluminando problemas essenciais experimentados pelas mulheres e minorias sexuais. Marchesani também cita o livro Cyteen (1988), de C. J. Cherryh (Caroline Janice Cherry), que coloca no centro das complicações do enredo a discriminação pela qual passam um cientista e seu amante androide. O livro ganhou o Prêmio Hugo de melhor romance, em 1989.

As transformações pelas quais o gênero passou no final do século 20 e início do 21 incluem o surgimento de publicações específicas do que foi chamado de “ficção científica erótica”. Em particular, com o surgimento das editoras Circlet Press, fundada por Cecilia Tan, em 1992, e Ellora’s Cave Publishing, fundada por Tina Marie Engler, funcionando de 2000 a 2016; Engler também publicou romances com o pseudônimo Jaid Black. A editora de Cecilia Tan especializou-se no gênero, enquanto a de Engler também publicou outros gêneros, mas não se pode dizer que os livros tiveram uma recepção muito calorosa da crítica.

(Capa: Edward Miller/ Macmillan UK).

Obras mais significativas surgiram, como Estação Perdido (Perdido Street Station, 2000), de China Miéville, livro que, apesar de não ter nas relações sexuais o seu tema central, não deixa de discuti-las, em particular ao colocar inúmeras raças alienígenas convivendo e relacionando-se (de várias formas) no mesmo ambiente terrestre, a cidade de Nova Crobuzon, a maior do mundo chamado Bas-Lag, no qual situam-se várias das histórias do autor. Estação Perdido é uma mistura infernal e sensacional de fantasia com ficção científica, um mundo alternativo que combina magia e tecnologia.
Segundo o escritor Michael Moorcock, que comentou o livro para a revista The Spectator, China Miéville tem um olho extraordinariamente observador para os detalhes físicos, para a sensualidade e a beleza dos humanos comuns assim como para o que é profundamente alienígena. “No Capítulo Um”, escreveu Moorcock, “Miéville nos convence graficamente da paixão sexual mútua de um gorducho químico humano e seu amante besouro escultor”, que, é claro, pertence a uma das raças alienígenas de Nova Crobuzon. Além de ter sido indicado para os prêmios Nebula, Hugo e James Tiptree Jr., ganhou os prêmios British Fantasy (2000) e Arthur C. Clarke (2001).

(Capa: Joe Williamsen/ Ace Books).

Outro autor consagrado que abordou tema sexual foi Charles Stross. Segundo Graham Sleight e David Langford, “não há dúvida de que ele é um dos principais escritores de ficção científica da atualidade”, e seu livro Saturn’s Children (2008) é até aqui seu “(...) mais direto engajamento com questões de gênero, e ainda explora a sociedade robô e algumas implicações filosóficas das Leis da Robótica”. A história segue a trajetória de Freya Nakamichi-17, uma gynoid, uma robô humanoide feminina, e foi escrita como uma espécie de homenagem a Isaac Asimov e a Robert A. Heinlein, em particular ao seu livro Friday (1982).
Stross já havia lidado com a questão de gênero em seu livro Glasshouse (2006), com história situada no século 27. O personagem central, Robin, teve sua memória apagada e participa de uma experiência na qual ele é inserido em uma sociedade semelhante às dos séculos 20 e 21 da Terra. Ele recebe um novo corpo e identidade, de uma mulher chamada Reeve, de modo que o livro lida com a questão de gênero e identidade. Como disseram John Clute, David Langford e Cheryl Morgan (em The Encyclopedia of Science Fiction), esse livro, assim como ocorre com os livros de John Varley citados anteriormente, pode ser mais bem descrito como “experiências de imaginação”, “(...) uma caracterização que intensifica a percepção de que as transformações descritas são, no final, opcionais. Talvez seja uma sinalização das evasivas de muito da ficção científica do século 20, quando lida com as redefinições de gênero, elas frequentemente são tratadas como opções facilmente reversíveis”.
Os três críticos dizem que “Nas histórias transgênero de ficção científica de hoje, a escolha de gênero é combinada de maneira complexa com investigações das interações humanas em um mundo complexo. Em outras palavras, os personagens trans agora são incluídos nos romances como parte da estrutura normal da sociedade, não especificamente para examinar questões que surjam de sua natureza trans”.
Essa situação certamente é bem mais comum agora, o que não quer dizer que as questões relativas a sexo e gênero não sejam mais apresentadas nas histórias. É possível ter uma boa ideia da situação atual observando as obras indicadas ao James Tiptree Jr. Award, premiação anual para os trabalhos de ficção científica e fantasia que expandem ou exploram nossa compreensão de gênero. Entre seu início, em 1991, e 2018, foram mais de 300 obras indicadas, lembrando que essas são apenas aquelas consideradas as melhores ou mais significativas.