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A NOITE DO DEMÔNIO

FILMES/Matérias

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data08/03/2016
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Um clássico do terror que estabeleceu novas bases para o cinema do gênero.

Além de ser um clássico do cinema de terror, A Noite do Demônio também ficou marcado por uma discussão entre o que deve e o que não deve ser mostrado num filme do gênero. Essa discussão fica mais clara conhecendo o ponto de vista dos envolvidos: uns entendem que uma história de terror pode manter o espectador sem saber se o que está acontecendo é real ou apenas imaginação dos personagens; outros acham que, de vez em quando, é preciso “abrir a porta”, como Stephen King costuma falar, para deixar os espectadores terem uma interação maior com a história.

O dr. Holden (Dana Andrews) tem um encontro que não consegue explicar (Sabre Film/ Columbia).

 

É uma discussão que tem adeptos de peso para ambas as opções – inclusive o próprio Stephen King –, e o que fica bem claro pelos filmes e livros do gênero é que qualquer opção pode funcionar muito bem, desde que seja trabalhada corretamente.

No caso de A Noite do Demônio (Night of the Demon, 1957), produção inglesa dirigida por Jacques Tourneur, a discussão foi acirrada por um desentendimento envolvendo, de um lado, Tourneur e o roteirista Charles Bennett, e do outro o produtor Hal E. Chester.

A versão apresentada em DVD da Versátil, no box “Obras-Primas do Terror”, é a original, com 96 minutos. Nos Estados Unidos, a Columbia distribuiu o filme e cortou para 81 minutos, alterando o título para Curse of the Demon; segundo informações, a alteração foi para não confundir com a história The Night of the Iguana, o que é realmente espantoso, uma vez que o segundo é uma peça de Tennessee Williams, baseada em um conto de sua autoria. Seja como for, todas as cenas estão aqui.

 

Dana Andrews interpreta o psicólogo norte-americano dr. John Holden, que vai à Inglaterra para uma convenção, convidado pelo professor Harrington (Maurice Denham), que realiza uma investigação sobre as atividades do dr. Julian Karswell (Niall McGinnis), acusado de satanismo. O problema é que, ao chegar, fica sabendo que o professor Harrington morreu num estranho acidente.

Holden, em Stonehenge, conferindo as runas no pergaminho que "ganhou".

 

Holden, totalmente cético quanto às questões envolvendo o sobrenatural, envolve-se na investigação e conhece o dr. Karswell, que lhe diz que ele irá morrer num dia específico, caso não suspenda as investigações sobre seu grupo. A morte do professor e a futura e possível morte de Holden envolvem um pergaminho com sinais rúnicos, que deve ser entregue à vítima sem que ela saiba que está recebendo. A partir daí, seus dias estão contados, e o contato com o demônio é inevitável, e apenas Karswell pode evitar o evento.

O choque programado pelo roteirista e pelo diretor é entre a crença no sobrenatural e a crença do psicólogo, para quem os demônios estão nas profundezas de nossas mentes. E, ao mesmo tempo em que a história coloca o espectador no centro dos acontecimentos, criando um elo entre o personagem principal e a audiência, ela aos poucos desestrutura o pensamento e o modo de agir do dr. Holden; assim, leva os espectadores junto com ele, em direção ao que se julgava ser impossível.

O dr. Karswell (Niall McGinnis), em sua versão "animador de festas infantis".

 

Tanto Jacques Tourneur quanto Charles Bennett pretendiam manter a “porta fechada”, ou seja, jamais mostrando de fato o demônio. Mas o produtor Hal E. Chester resolveu que seria importante que o público soubesse que o demônio era real, e então adicionou cenas com o malvadão no início e no final do filme. Tourneur disse que as cenas com o demônio não foram rodadas por ele, que queria manter os espectadores sempre na dúvida a respeito da presença do demônio.

 

Com ou sem demônio, o filme é uma maravilha, com um trabalho de fotografia de Ted Scaife quase perfeito e, posteriormente, muitas vezes utilizado como modelo para filmes de terror. Também tornou-se uma referência a forma como Tourneur construiu o clima aterrorizante. Para Phil Hardy, em The Aurum Film Encyclopedia: Horror, o filme apresenta um trabalho excepcional de posicionamento e movimentação de câmera, de tal forma que ambientes aparentemente comuns se transformam em locais ameaçadores, com áreas escuras e claras alternando-se.

Holden, verificando os mistérios da mansão de Karswell, mas também sendo observado.

 

Foi assim que ele transformou uma caminhada do dr. Holden pelo bosque próximo à casa do dr. Karswell num dos momentos de terror mais comentados do gênero. Os ângulos e movimentações de câmera, os sons estranhos, os movimentos das árvores do bosque e o pânico que vemos lentamente crescendo no personagem é um dos momentos mágicos do cinema de terror. Como um homem de ciência e racional que é, e como grande parte dos seres humanos, Holden imagina que tudo o que está sentindo é besteira, fruto da imaginação, mas, por via das dúvidas, vamos dar no pé.

Mais um momento climático criado por Tourneur, com Holden tentando entrar na mansão do satanista.

 

O mesmo ocorre em outra sequência clássica, quando uma tempestade de vento interrompe uma festa de crianças na qual o professor satânico é a atração principal, vestido de palhaço; tudo poderia ser absolutamente normal, mas nós “sabemos” que não é, porque um clima como o que foi criado naquele momento não existe numa tempestade comum, numa racional festinha para crianças.

Holden, analisando as observações do falecido professor Harrington em companhia da sobrinha do mesmo, Joanna (Peggy Cummins).

 

Phil Hardy lembra ainda uma das cenas iniciais, com um carro percorrendo uma estradinha à noite, sendo filmado por trás das árvores. Esta é a cena inicial na versão reduzida; na versão integral, existe uma cena em Stonehenge antecedendo a chegada do carro à mansão de Karswell. Phil Hardy também diz que enquanto o trabalho do diretor britânico Terence Fisher teve impacto direto nos filmes de terror britânicos e dos EUA, o de Tourneur influenciou o cinema de terror em preto e branco da Itália, com os diretores Riccardo Freda, Mario Bava e Antonio Margheriti, ainda que o trabalho dos italianos seja mais “gritante”, ou talvez mais explícito.

 

É claro que o demônio apresentado no filme é patético quando comparado ao que se faz hoje em dia com os efeitos visuais, o que torna ainda mais consistente a crítica de que o filme não deveria conter essas cenas. Na época, funcionou muito bem; hoje, seria melhor sem elas.

Ainda assim, tudo que acontece entre uma e outra aparição do monstrengo satânico é uma maravilha, uma aula de cinema e de como aterrorizar o espectador.

 

 

A Noite do Demônio (Night of the Demon, 1957)

Inglaterra

Direção de Jacques Tourneur

Produção de Frank Beviss e Hal E. Chester

Roteiro de Charles Bennett e Hal E. Chester

Fotografia de Ted Scaife

Com Dana Andrews, Peggy Cummings, Niall McGinnis, Mayrice Denham, Liam Redmond.

Versátil Home Video

 

 

A história original

O filme foi baseado no conto Casting the Runes, do escritor inglês M.R. James (1862-1936), publicado em 1911, no livro More Ghost Stories.

Em português, encontrei apenas dois livros do autor. Um da famosa coleção Pêndulo, da Europa-América, de Portugal, com o título Novas Histórias de Fantasmas, apresentado como sendo The Collected Ghost Stories of M.R. James, que deveria conter todos os contos de terror de M.R. James. E digo deveria porque o original em inglês tem mais de 500 páginas, contra as 180 da versão portuguesa. Não consegui encontrar informações sobre os contos do livro, de modo que não sei se tem ou não Casting the Runes.

Também é possível encontrar a versão eBook Kindle de A Casa de Whitminster: O Fantasma Minguado e Outros Espectros (A Thin Ghost and Others, 1919), com os contos: O Fantasma Minguado; O Diário do Sr. Poynter; O Episódio da Catedral Histórica; A História de Um Aparecimento e Dois Desaparecimentos; Dois Médicos.