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O ROCK E A FICÇÃO CIENTÍFICA

ESPECIAIS/VE O ROCK E A FC

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data10/07/2020
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Duas das mais populares manifestações culturais do planeta encontraram-se nos anos 1950 e construíram uma longa história de sucesso.

FreeImages.com/ Roy P. Sunset.
(Foto: FreeImages.com/ Chris Chidsey).

Até onde me lembro, nunca tinha pensado mais profundamente sobre a relação entre o rock e a ficção científica, a não ser, talvez, como uma relação que, às vezes, era de proximidade, e outras, apenas esporádica. Uma música aqui, uma banda ali. No entanto, eram como duas coisas juntas, porém separadas. Explico: passei minha infância e juventude ouvindo Beatles, Rolling Stones, The Hollies, The Mamas & The Papas, Jimi Hendrix, e muito mais. E assistindo às séries Além da Imaginação, Quinta Dimensão, Perdidos no Espaço, além dos filmes de ficção científica dos anos 1950 que não vi no cinema, mas na TV. Eventualmente, lendo algumas histórias do gênero.
A relação com o rock e com a FC jamais acabou; pelo contrário, expandiu-se. E, nos anos 1970, quando ouvia muito rock progressivo, imaginava essa relação como fato consumado, provavelmente mais pelas imagens das capas dos discos do que pelo conteúdo.

Um exemplo das capas de Roger Dean para o Yes, indicando uma relação com a ficção científica que, na verdade, foi apenas esporádica.

Ao fazer a pesquisa para esse especial confirmei essa situação: muitas vezes, as capas davam a ideia de uma relação com o gênero que, na verdade, não existia. Um exemplo disso é a banda inglesa Yes, com as famosas ilustrações de capas de Roger Dean, que insinuavam mundos de ficção científica, mas cujas músicas passeavam mais pela espiritualidade do que pela fc.
Em The Science Fiction Encyclopedia, o crítico e escritor Maxim Jakubowski faz referência a esse relacionamento: “A popularidade da FC com os músicos modernos de rock nos anos 1970 rapidamente tornou-se moda, tornada pior pela esperta embalagem das gravadoras, por meio da qual trabalhos de arte atraentes são usados como engodo para qualquer tipo de material musical, embora o público que compra discos, em geral, frequentemente pode achar a conexão entre a música e a FC tênue ou mesmo não existente”.
Por outro lado, a pesquisa também mostrou que a relação entre o rock e a fc é mais profunda do que imaginava, no mínimo devido ao fato de serem duas manifestações culturais das mais populares no planeta. E, muitas vezes, com resultados excelentes. O próprio Jakubowski finaliza seu comentário tocando nesse ponto: “Mas quando os gêneros genuinamente combinam-se, os resultados podem ser muito vigorosos, e o cruzamento entre essas duas áreas de arte, satisfatoriamente fértil”.
E, apesar de a ficção científica ser mais velha do que o rock, as duas formas de cultura tornaram-se populares, de fato, nos anos 1950. As histórias de FC mais populares já vinham sendo publicadas desde os anos 1920 – com antecedentes clássicos como Júlio Verne e H.G. Wells, no final do século anterior e início do século 20 – e o rock and roll, segundo muitos historiadores da música, já vinha tomando forma pelo menos desde os anos 1930. Mas os anos 1950 viram uma explosão da popularidade de ambos. O rock, com Chuck Berry, Bill Haley, Elvis Presley, Fats Domino, Little Richard, Gene Vincent e tantos outros; a FC, com a enormidade de filmes do gênero produzidos, especialmente nos EUA, mas também na Europa, e os milhões de espectadores que tiveram contato com o gênero pelas séries de televisão, que, por sua vez, parece ser o elo comum entre rock e FC, difundindo ambos de forma massiva para um público jovem que estava pronto para novas experiências, para o mundo profundamente modificado do pós-Segunda Guerra Mundial.

Maxim Jakubowski disse que, assim como a influência da música permeia o trabalho de muitos escritores de ficção científica – e ele cita como exemplos Philip K. Dick, James Blish, Brian Aldiss, John Brunner, Samuel R. Delany e Michael Moorcock – a ficção científica também teve uma importante influência nos músicos modernos, particularmente no rock. “Não é coincidência”, ele diz, “que o rock e a ficção científica sejam formas similares de expressão popular entre os jovens do Ocidente”.
Existem exemplos de conexão entre a música e a ficção científica, ou a temas do gênero, anteriores ao rock, tanto na música erudita clássica quanto no jazz e na música conhecida como “música das esferas” (ou musica universalis), um termo que retrocede aos antigos gregos. Mas no que diz respeito ao rock, Jakubowski diz que “No entanto, foi em meados dos anos 1960, com a ampla assimilação da ficção científica na cultura pop em geral e a influência considerável das drogas leves e a psicodelia no jazz e no rock’n’roll, que a ficção científica atingiu seu potencial como um fator na música popular”.
No entanto, antes da fase citada por Jakubowski, um exemplo pode ser encontrado em Bill Haley and His Comets, grupo fundamental nos primórdios do rock como fenômeno popular, em particular pela gravação da música Rock Around the Clock, em 1954. Vários historiadores do rock concordam que não foi o primeiro rock’n’roll a ser gravado em disco – o próprio Bill Haley, entre outros músicos, já tinha gravações de sucesso anteriores – mas que foi a música que fez o rock explodir. Curiosamente, Rock Around the Clock era o Lado B de um compacto simples que tinha como Lado A a música Thirteen Women (and Only One Man in Town)[Treze Mulheres, e Apenas Um Homem na Cidade], de autoria do guitarrista e cantor de jazz e rhythm and blues, Dickie Thompson, originalmente com o título Thirteen Women and One Man. Thompson gravou a música no início de 1954, mas não obteve sucesso. O produtor Milt Gabler fez uma nova produção da música, alterando algumas palavras referentes à bomba-H, e essa versão foi gravada por Bill Haley and His Comets.
Segundo Adam Roberts, é uma canção elegante sobre o holocausto pós-nuclear e sobre as aventuras eróticas do único homem que sobreviveu a um ataque nuclear. Ainda assim, foi a música do Lado B que entrou para a história do rock. Thirteen Women faz parte de um subgênero musical que ficou conhecido como Atomic Platters e que teve algum sucesso nos anos 1940 e 1950, com músicas de gêneros variados que falavam de uma possível guerra mundial atômica e suas consequências.
O editor e pesquisador Lee Weinstein também cita o cantor de rockabilly Jesse Lee Turner, com a música The Little Space Girl, que surgiu em dezembro de 1959, e que foi o único sucesso do cantor, composta por Floyd Robinson. Segundo informa Weinstein, conta a história de um homem que encontra uma garota alienígena durante um passeio no parque. “Ela lhe diz que quer casar com ele. Inicialmente, ele se afasta devido aos seus quatro braços, três olhos e três bocas, mas quando ela finalmente o convence a beijá-la, o beijo bruscamente muda seu modo de pensar”. Jesse Lee Turner ainda tentaria repetir o sucesso com a sequência, I’m the Little Space Girl’s Father (1960); não conseguiu. Na verdade, as duas músicas são bem fraquinhas.

Em seu livro Science Fiction in Classic Rock, o músico e crítico Robert McParland disse que “Algumas das mais profundas questões científicas a respeito da natureza do universo surgem nas histórias de ficção científica. Os músicos de rock e seus fãs estão entre as milhares de pessoas que são fascinadas por essas histórias e que fazem essas perguntas. A ficção científica e a especulação mitológica surgem no trabalho de Rush, Pink Floyd, The Electric Light Orchestra, Yes, David Bowie, The Moody Blues, Blue Öyster Cult, T. Rex, Hawkwind, Iron Maiden, Emerson, Lake & Palmer, The Alan Parsons Project, Genesis, Muse, Motörhead, Brian Eno, Jefferson Starship, e muitas outras bandas. O rock é parte da voz de nosso tempo e o trabalho dessas bandas reconhece que nosso destino como espécie está associado à ciência e à imaginação. A ficção científica no rock é um subgênero fértil e criativo que nos lembra que os espantosos avanços da ciência e da tecnologia estão agora profundamente conectados com o esforço humano. Essas cenas de rock absorveram a ficção científica, impressa ou em filme, e levaram a imagem da ficção científica para suas canções, apresentações e imagens dos álbuns”.
Segundo McParland, os músicos de rock foram atraídos pela ficção científica porque ela representa um dos gêneros de ficção mais progressivos. “Histórias de ficção científica promovem reflexão e crítica social. Nesse sentido, a ficção científica é uma voz da contracultura que deseja romper as convenções e explorar a singularidade, a inovação e o alcance da consciência humana. A esse respeito, compara-se à busca de alguns dos mais criativos visionários do rock de nosso mundo. Esses músicos estão explorando os limites do som, da imagem, da tecnologia de gravação e da história humana”.
Além disso, diz o crítico, os músicos de rock trabalham com os mitos, que são a mais antiga forma de imaginação humana. A ficção científica também está envolvida com os mitos e com padrões míticos, ao mesmo tempo respondendo à modernidade ou a visões imaginativas do futuro, e procura realidades alternativas e possibilidades sociais. Da mesma forma, existem músicos de rock que percebem como o mito é usado para construir modelos futuros da realidade e, assim, utilizam o mito. “Em alguns casos”, continua McParland, “isso vem de suas leituras, ou de filmes e programas de televisão de ficção científica a que assistiram. No entanto, é errado dizer que essas canções são apenas derivativas dessas fontes. De preferência, esses trabalhos de imaginação criativa resultam dos talentos inigualáveis desses artistas, de vez em quando de um nível de consciência arquetípico e mitológico. Eles surgem de sua música, seus sentimentos e emoções, suas experiências pessoais e, talvez, em alguns casos, do uso de drogas alucinógenas”.

Concerto do Rush em Milão, em 2004 (Foto: Enrico Frangi/ Wikimedia).

McParland utiliza os conceitos de mitologia e de arquétipos da forma como eles foram desenvolvidos por Sir James George Frazer no livro clássico O Ramo de Ouro (The Golden Bough, 1890. Editora Zahar) e por Carl Gustav Jung, respectivamente; além de considerar a questão do “herói” levantada por Joseph Campbell em O Herói de Mil Faces (The Hero With a Thousand Faces, 1949. Editora Cultrix/ Pensamento).
No caso da mitologia, Frazer “(...) nos mostrou que as histórias e imagens que surgem nesses antigos mitos têm similaridades em várias culturas. Os mitos e seus heróis são algo mais do que modos de dramatizar fenômenos naturais que de outra forma não poderiam explicar. Eles são expressões de entendimento cultural, aspirações e padrões de vida fundamentais”. Já os arquétipos de Carl Jung seriam imagens existentes no inconsciente coletivo da humanidade. E Joseph Campbell identificou um padrão universal na história do herói, na qual, basicamente, uma personagem participa de uma aventura em que passa por uma iniciação e, em seguida, passa por um período em que as coisas não dão certo, enfrentando monstros e outras adversidades. E, quando parece que sua situação está impossível de ser sustentada, essa personagem transforma-se no herói ao vencer seus obstáculos, retornando à sociedade com um presente ou com algum conhecimento importante.

É baseado nesses conceitos que McParland diz que a jornada do herói, seja envolvendo terras exóticas, seres alienígenas, ou locais e personagens estranhos, constituem temas que surgem nos conceitos de álbuns e músicas de rock. “Quando um músico de rock”, diz ele, “desenvolve uma ‘persona’, ele está lidando com arquétipos e recorrendo a esse tipo de consciência. Ao escrever canções que habitam na fantasia, o compositor de rock está explorando essas profundidades arquetípicas. A figura heroica, assim como o artista criativo, é uma aventureira, exploradora. Às vezes, ele ou ela está sozinha, possivelmente à parte da sociedade ou socialmente alienada. No entanto, essa personagem tem excepcionais forças de emoção, astúcia ou imaginação. Nesse sentido, o músico de rock pode projetar-se em uma personagem heroica de fantasia, como fez Bruce Dickinson, do Iron Maiden, ao cantar sobre grandes duelos cósmicos, ou como fez David Bowie com seu hermafrodita Ziggy Stardust. O artista de rock cria mundos alternativos e encena um mundo de ficção em música e atuação. O mundo que é criado pode parecer perfeitamente tangível e real. Nesse sentido, o músico de rock criador é muito parecido com o escritor de ficção científica imaginativo”.
As duas formas de criação são muito parecidas, segundo McParland, de modo que “A narrativa de ficção científica do rock, como a da ficção científica, é sobre o assombro, a curiosidade e a investigação imaginativa. É uma forma de arte que toca de leve nos recursos mais profundos da mitologia, música, teatro e arte visual. Quando o rock encontra com a mitologia ou com a ficção científica, ele oferece uma expressão musical que nos lembra que a humanidade é fundamentalmente curiosa acerca das origens, mistérios e maravilhas do universo”.

Essa relação entre o rock e a ficção científica iria aprofundar-se muito mais nos anos 1960, estabelecendo um convívio que se tornaria mais nítido e que chega até nossos dias. Veremos mais sobre isso nas próximas matérias.