Artigos

AS DROGAS NA FICÇÃO CIENTÍFICA

ESPECIAIS/VE ESTADOS ALTERADOS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data28/03/2020
fonte
Vários estudiosos do gênero entendem que a ficção científica é, provavelmente, o veículo mais apropriado para lidar com o tema das drogas, reais ou imaginárias.

Gene Szafran.
Capa de Vivaldo Graça (Livros Unibolso, 1973).

No campo da ficção científica, qualquer um que tenha lido o clássico Admirável Mundo Novo (Brave New World, 1932), de Aldous Huxley, ou que conheça as histórias de Philip K. Dick, sabe que as drogas são comuns no gênero, e não é de hoje. David Langford e Peter Nicholls, escrevendo em The Science Fiction Encyclopedia, dizem que a utilização de drogas, reais ou imaginárias, é um tema comum na ficção científica, particularmente nas histórias da linha conhecida como cyberpunk.
Em seu estudo Drug Themes in Science Fiction (1974), o escritor Robert Silverberg disse que por ser uma forma de fantasia, a ficção científica é apropriada para a exploração do fenômeno relacionado às drogas. “Uma droga é uma espécie de varinha mágica, mas é uma varinha mágica de um químico”, disse Silverberg, “um produto de laboratório, carregando consigo a marca da ciência. Oferecendo aos seus personagens um frasco de pílulas verdes ou de um misterioso fluido azul, o autor é capaz de desenvolver maravilhas tão facilmente quanto um feiticeiro, e examinando rigorosamente as consequências de seu ato de magia, ele realiza a exploração de ideias especulativas, que é a essência da ficção científica”.
Silverberg lembra algumas histórias clássicas como O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1886), de Robert Louis Stevenson (Ver as matérias Criei um Monstro e Alguns Filmes com Cientistas Loucos). Mary Wollstonecraft inventou um elixir de imortalidade em O Mortal Imortal (The Mortal Immortal, 1833). E H.G. Wells criou uma série de histórias relacionadas a drogas; acelerando o movimento humano em O Novo Acelerador (The New Accelerator, 1901. Publicado no Brasil em O País dos Cegos e Outras Histórias); em A Ilha do Dr. Moreau (The Island of Dr. Moreau, 1896) (Ver mais nas matérias Primeiras AventurasAlguns Filmes com Cientistas Loucos; Criei um Monstro) a droga transforma animais em humanos, ou quase isso; em O Homem Invisível (The Invisible Man, 1897), a droga torna o personagem invisível, com um efeito colateral de igualmente torná-lo um tanto quanto alucinado. “E no século presente”, diz Robert Silverberg (referindo-se ao século 20), “o uso de drogas capazes de alterar ou controlar a mente tornou-se um dos principais veículos de especulação dos ficcionistas da ciência”.

Ilustração original de John Tenniel, com Alice segurando a garrafa de "Beba-me" (1865).

Podemos citar também o clássico de Lewis Carroll, Aventuras de Alice no País das Maravilhas (Alice’s Adventures in Wonderland, 1865). O crítico Jeff Noon, escrevendo para The Guardian, disse que “Esta é, provavelmente, a primeira introdução de muitos leitores ao conceito de substâncias que podem mudar o seu modo de pensar, de agir e até mesmo a forma de seu corpo. Sem a minuciosa utilização tanto de ‘Beba-me’ quanto de ‘Coma-me’, nossa heroína jamais teria obtido a entrada no jardim mágico através da pequena porta. Está tudo lá, esperando para ser solucionado. E ainda tem o efeito ‘flashback de ácido’: poucos anos depois, Alice está vislumbrando formas no espelho”.
Ao falar sobre a obra, John Clute, em The Science Fiction Encyclopedia, diz que “Tem sido argumentado mais seriamente, por Brian W. Aldiss, entre outros, que a lógica subjacente dessas aventuras ‘nonsense’ forneceu um modelo significante para muitas das típicas reordenações de realidade da ficção científica”. Assim, apesar de não ser considerado FC, mas fantasia, as obras de Lewis Carroll tiveram sua influência no gênero.
 

 

 

No estudo já citado, Robert Silverberg dividiu as histórias que lidam com drogas em diferentes categorias:
Drogas como eufóricos: aquelas que fornecem prazer de forma desorganizada, eliminando a depressão e tensão, semelhante ao que o álcool faz em nossa sociedade;
Drogas como expansores da mente: aquelas que propiciam visões “psicodélicas” de outros tempos ou locais, ou que oferecem a sensação de unidade com o cosmo, semelhante ao LSD em nossa sociedade;
Drogas como panaceias: aquelas que, por meio de efeitos tranquilizantes ou neutralizantes, acalmam a mente sem necessariamente induzir a euforia;
Drogas como controladoras da mente: aquelas que possibilitam uma entidade a limitar ou direcionar as atividades ou desejos de outros; semelhante à lavagem cerebral e geralmente associada a atividades totalitárias;
Drogas que aumentam a inteligência: aquelas que têm a propriedade específica de expandir ou amplificar os processos racionais da mente;
Drogas como amplificadoras de sensações; aquelas cujos efeitos são obtidos pela amplificação ou extensão da sensação corpórea, talvez semelhante à maconha em nossa sociedade;
Drogas como testes da realidade: aquelas que permitem ao usuário penetrar as realidades “reais” que se encontram além das manifestações de superfície da vida diária;
Drogas que provocam lesões mentais: aquelas utilizadas como armas em guerras bioquímicas, dirigidas especificamente ao cérebro;
Drogas como meio de comunicação: aquelas que têm a característica específica de abrir canais de comunicação entre mentes até então desconhecidos.
Talvez outros autores propusessem classificações diferentes, mas essa parece tão boa quanto qualquer outra.
No mesmo estudo, Robert Silverberg diz que duas atitudes distintas manifestam-se na ficção científica no que diz respeito ao uso de drogas relacionadas à mente. Uma atitude é de advertência, entendendo que qualquer indulgência fora do comum com relação a drogas extraordinárias tende a apodrecer a fibra moral do usuário, levando à indiferença e à decadência geral do indivíduo ou da sociedade e, em última análise, talvez ajudando no estabelecimento de um regime totalitário. A outra atitude é visionária e utópica, entendendo que, por meio da utilização de drogas, a humanidade pode alcançar poderes espirituais ou psicológicos que normalmente não estão disponíveis e, dessa forma, pode entrar em uma nova e mais elevada fase de existência.
“Essa última atitude”, diz Silverberg, “tornou-se mais comum desde 1965, quando o uso de drogas alucinógenas e eufóricas pela classe média, na civilização ocidental industrializada, começou a assumir o aspecto de um grande movimento cultural”. Ele diz que, no passado, os escritores escolhiam, quase automaticamente, uma postura de advertência nas histórias envolvendo o tema das drogas, que eram vistas como símbolos de decadência mais do que de crescimento. Assim, foi apenas ao final dos anos 1960 e início dos 1970 que alguns escritores sentiram-se livres para utilizar em suas histórias algumas drogas “mentais” de uma forma positiva, às vezes quase evangélica.

Silverberg diz que a extensão dessa mudança de perspectiva pode ser muito bem ilustrada por dois livros de Aldous Huxley, ainda que ele não seja um escritor de ficção científica profissional. Os livros são o clássico Admirável Mundo Novo (Brave New World, 1932) e A Ilha (Island, 1962).
No primeiro, a droga é o “soma”, construída pela classe dominante para “curar” qualquer tipo de inquietação ou rebeldia das classes inferiores. Aqueles que se recusavam a aceitar esse tipo de paraíso mental construído e forçado eram excluídos e exilados. Assim, nesse livro, o soma é condenado claramente como um instrumento de repressão. No entanto, Silverberg abre uma exceção, afirmando que a visão negativa de Huxley com relação às drogas não era uma expressão de um trabalho orientado por um moralismo puritano; o Huxley de 1932, segundo Silverberg, acreditava francamente que, ao utilizar drogas, a humanidade era menos do que poderia ser.
Essa visão mudou em A Ilha, e o que aconteceu nesse hiato de 30 anos foi a experiência do autor, em 1953, com a mescalina e com o LSD, que resultou nos livros As Portas da Percepção (The Doors of Perception, 1954) e O Céu e o Inferno (Heaven and Hell, 1956). A sociedade utópica descrita em A Ilha apresenta a droga moksha, com efeitos praticamente opostos aos do soma, sendo um alucinógeno com capacidade de expandir a mente e criar estados de êxtase. Segundo Silverberg, na verdade Huxley estava referindo-se ao LSD, e com o tom de um defensor do ácido.

Capa de William George (Bantam Books, 1963).

Peter Nicholls e David Langford (em The Science Fiction Encyclopedia) também comentaram sobre o interesse geral na cultura das drogas na segunda metade dos anos 1960. “Estava no ar”, eles dizem, “uma crença romântica de que as drogas poderiam abrir as portas da percepção e oferecer versões mais elevadas da realidade. Bem poucos escritores de ficção científica comprometeram-se com esse mito”. Eles entendem que as drogas frequentemente eram apresentadas nas histórias de forma negativa, mais do que como ampliadoras dos poderes de percepção. Eles citam como um exemplo oposto o livro de Margaret St. Clair, Sign of the Labrys (1963), história situada no subterrâneo de um mundo após um holocausto, e que apresenta alguns fungos que têm a capacidade de aumentar a consciência. Segundo a autora, a história foi inspirada pela leitura dos livros de Gerald Gardner, um dos principais divulgadores da Wicca no período após a Segunda Guerra Mundial.
Outros livros citados por Nicholls e Langford são Downward to the Earth (1970), de Robert Silverberg, e The Butterfly Kid (1967), de Chester Anderson. O próprio Silverberg classificou os dois livros na categoria de obras que apresentam as drogas como ampliadoras ou expansoras da mente.

Galaxy Magazine, novembro de 1969, com a história Downward to the Earth, com capa de Jack Gaughan.

A história de Silverberg foi publicada originalmente em quatro partes em Galaxy Magazine, de novembro de 1969 a março de 1970, e foi chamada por David Pringle de “Uma parábola efetiva sobre colonialismo”, com história situada no planeta Belzagor, colonizado pelos terráqueos, e que tem duas raças inteligentes: os nildoror e os sulidoror. Lá, descobrem que o veneno de uma serpente mostra ter propriedades medicinais, atuando como um catalisador para a regeneração de membros. No entanto, também pode ser utilizado em dosagens diferentes, provocando efeitos psicológicos; faz com os terrestres tenham a ilusão de que se transformaram na forma de vida nativa dominante no planeta, uma espécie inteligente semelhante a elefantes. Para os terrestres que se encontram no planeta o uso da droga com esse propósito, apesar de ser declarado ilegal, passou a ser comum. Um antigo administrador terrestre retorna ao planeta, sentindo-se culpado pela forma como tratou os seres nativos, e entra em comunhão com eles ao utilizar a droga.
David Pringle relacionou o livro em seu Science Fiction: The 100 Best Novels, que cobre o período de 1949 a 1984. Em seu comentário, ele explica que os terrestres têm dificuldades para entender como seres inteligentes como os Nildoror do planeta em questão podem ser tão plácidos e indiferentes quanto ao progresso material. “Os nativos de Belzagor”, diz Pringle, “parecem estar interessados em apenas uma coisa – a religião que ambas as espécies compartilham, com seus rituais secretos de purificação e renascimento”.
Pringle é um dos críticos que vê no livro uma referência ao clássico de Joseph Conrad, Coração das Trevas (Heart of Darkness, 1899), por sua vez uma obra que também toca nos temas do colonialismo, imperialismo e racismo. Pringle ainda comenta que Silverberg declarou ter escrito o livro logo após uma visita à África e que tinha em mente o “poderoso romance de horror psicológico de Conrad”. O resultado é um livro repleto de cenas climáticas, em particular o momento em que é concedida ao personagem terrestre, Gundersen, a visão do significado da vida.

Abaixo: primeira edição de Downward to the Earth (Nelson Doubleday/SFBC, 1970), com capa de Frank Frazetta; com capa de Gene Szafran (Signet/ New American Library of Canada, 1971); com capa de Jim Burns (Bantam Books, 1984).

                                                                                                                                   Capa de Gray Morrow (Pyramid Books, 1967).

O livro de Chester Anderson, The Butterfly Kid, foi o primeiro da série conhecida como Greenwich Village Trilogy, com o segundo livro sendo A Teia do Tempo (The Unicorn Girl, 1969), de Michael Kurland, e o terceiro The Probability Pad (1970), de T.A. Waters.
Os três livros foram escritos em tom humorístico, com os próprios autores sendo também personagens, tendo como ambiente a contracultura do Greenwich Village, em Nova York. Na época em que se passa a história, as “pílulas da realidade” tornam-se disponíveis; elas são um “alucinógeno projetivo” que cria alucinações visíveis não apenas para os usuários, mas para os que estão à sua volta. Com o tempo, descobre-se que a droga em questão foi desenvolvida e distribuída por seres de outro planeta semelhantes a lagostas azuis, com o objetivo de facilitar sua conquista da Terra. A tentativa dos aliens é frustrada devido à ação de um bando de hippies destemidos.
Peter Nicholls entendeu que o livro é relevante nesse cenário de obras abordando o uso de drogas, ainda que o resultado seja mais divertido do que transcendente.

Apesar dessas obras, para Nicholls e Langford, “Mais comuns, mesmo nos anos 1960, no auge dos anos de euforia com a cultura das drogas, eram as histórias de ficção científica sobre as distorções de percepção provocadas pelas drogas, especialmente as histórias dos escritores da New Wave, que geralmente não podem ser descritos como conservadores e que, de fato, viviam mais próximos da cultura das drogas do que os escritores de fc um pouco mais velhos”.
Silverberg diz que as histórias de ficção científica lidando com drogas ficam entre os polos opostos: drogas como um insignificante paliativo para a dor, ou como um portão de entrada para uma realidade mais elevada. “A ficção científica mais antiga”, ele diz, “era preponderantemente negativa como, por exemplo, Os Vendedores de Felicidade (The Joy Makers, 1961. Francisco Alves Editora), de James Gunn, publicado em 1961, mas escrito meia década antes, no qual um governo repressivo sustenta-se por meio do uso obrigatório de eufóricos”. E tudo começa com o produto lançado pela Hedonics Inc., que promete uma vida de intensa e constante felicidade para toda a humanidade. Com o tempo, ocorre a Declaração do Hedonismo, praticamente substituindo a Declaração Universal dos Direitos do Homem; forma-se um Conselho Hedônico, mas os problemas também ocorrem em um mundo em que todos vivem em estado de graça, uma vez que se trata de sonhos e fantasias criados artificialmente. Como explica Silverberg, o hedonismo se torna a lei e a função do governo é a preservação de promoção da felicidade temporária de seus cidadãos. A melancolia e a tristeza tornam-se fora da lei e a felicidade é obrigatória; além da nova droga, também surge a “nova heroína”, a já conhecida mescalina e vários alcaloides.

Abaixo: capa da edição brasileira; capa de William Hofmann (Bantam Books, 1961); capa de Jim Burns (Panther, 1976).


O mesmo tema, segundo Silverberg, é encontrado em outras obras, como em Justiça Facial (Facial Justice, 1960), de L.P. Hartley, que apresenta uma sociedade distópica na qual, entre outras coisas, para manter o controle dos cidadãos, o governo fornece às pessoas uma dose diária de uma droga que provoca um estado semelhante à sedação, na qual todos ficam viciados, reduzindo a vitalidade e o inconformismo. “Mesmo quando não são usadas como um instrumento do totalitarismo”, diz Silverberg, “as drogas frequentemente são vistas como uma perigosa satisfação dos desejos”.


Capa de Howard V. Brown, ilustrando o conto Life Eternal, de Eando Binder (1938).

É o caso de Dream-Dust From Mars, de Manly Wade Wellman, conto publicado em Thrilling Wonder Stories, em fevereiro de 1938, no qual os esporos de um líquen marciano funcionam como estimulante para os marcianos do século 28, mas têm um efeito diferente nos terráqueos, colocando-os em transes profundos nos quais experimentam sonhos de êxtase, de modo que é declarado ilegal.

                                                                                                                               Capa de Alex Schomburg.

Também no livro Hellflower (1953), de George O. Smith, publicado originalmente na revista Startling Stories, em 1952, a visão das drogas é semelhante, apresentando uma planta semelhante à gardênia que cresce em Ganimede, a lua de Júpiter, e da qual é extraída a hellflower do título (flor do inferno), ou lótus do amor, um narcótico que amplia as sensações e cria uma dependência psicológica, uma vez que aumenta o prazer, principalmente com as mulheres, as principais vítimas. O governo tenta impedir o tráfico e o uso da droga.

Capa de Edward Pagram (The Bodley Head, 1955).
                                                              Capa de Richard Powers (Ballantine Books, 1956).

No conto What to Do Until the Analyst Comes (1956), de Frederik Pohl, os protótipos para as drogas imaginárias descritas são, conforme explica Silverberg, o álcool e a heroína, que confundem a mente e diminuem a consciência. O conto foi publicado no livro Alternating Currents e diz respeito a uma droga descoberta por pesquisadores e que supostamente é inofensiva e não viciante; ela passa a ser vendida na forma de chiclete, como um substituto para o cigarro, e logo toda a população está usando a novidade. Só que, apesar de ser teoricamente não viciante, ela deixa as pessoas tão chapadas que ninguém quer parar de usar. O resultado é uma sociedade formada por pessoas confusas, acalmadas e indolentes.

Ao comentar sobre as mudanças na abordagem do tema em obras dos anos 1970, Robert Silverberg cita dois livros dele: Tempo de Mudança (A Time of Changes, 1971) e o já citado Downward to the Earth. O primeiro venceu o Prêmio Nebula de 1971 e enquadra-se no que o autor disse a respeito da fc produzida na época, que reconheceu as “novas” drogas como o LSD, a maconha e a mescalina, passando a mostrar uma sociedade transformada e melhorada. Silverberg diz que a utilização da droga, que permite uma relação telepática entre as pessoas, cria uma grande convulsão na sociedade, mas o significado final é que a mudança trazida pelas drogas é benéfica.

Capa de M. C. Escher (Hawthorn Books, 1971).

De forma semelhante, no conto de Alexei Panshin, How Can We Sink When We Can Fly? (1971), é desenvolvida uma droga, chamada “tempus”, que permite a realização de viagens no tempo, para o passado, o que, segundo Silverberg, “faz parte do processo educacional de uma sociedade futura”, com os jovens sendo solicitados a usarem a droga e realizarem as viagens no tempo – que podem ser literais ou apenas mentais. A história situa-se nos Estados Unidos dos anos 1970 e analisa problemas da época ao apresentar um visitante do futuro que também usou a droga. O conto foi publicado inicialmente na antologia Four Futures (1971), editada pelo próprio Silverberg.

                      Capa de Gray Morrow, ilustrando o conto " . . . And Call Me Conrad", de Roger Zelazny (1965).

Outro conto que apresenta as drogas como expansoras da mente é The Peacock King, de Larry McCombs e Ted White, publicado em The Magazine of Fantasy and Science Fiction, em novembro de 1965. Ali, o LSD é utilizado como auxiliar para preparar astronautas para as dificuldades da viagem interestelar. A nave utilizada irá utilizar uma forma de viagem mais rápida do que a luz, e as experiências iniciais mostraram que esse tipo de deslocamento irá causar impactos psicológicos graves na tripulação, e as experiências com o ácido é o que os capacita a lidar com o salto no hiperespaço.

Capa de Ed Emshwiller (Signet / New American Library, 1973).

E uma das abordagens mais estranhas sobre o tema talvez seja o conto Stoned Counsel (1972), de H.H. Hollis, publicado na coletânea Again, Dangerous Vision, editada por Harlan Ellison. A história apresenta um futuro próximo no qual as drogas alucinógenas tornaram-se parte rotineira dos processos legais. “Os advogados”, diz Silverberg, “examinam evidências que lhes são dadas em direta associação com o LSD e outras drogas, e os julgamentos são conduzidos com promotores e advogados de defesa em estado mental aumentado pelas drogas. A abordagem da história é favorável e objetiva: o aprimoramento pelo uso de drogas é descrito como uma nova fase, não necessariamente com implicações negativas, nos procedimentos nos tribunais”.
Em seu estudo Silverberg fala de outra visão de uma sociedade transformada, mas não necessariamente prejudicada, pelo uso massivo de drogas. Trata-se do conto Beyond Bedlam (1951), de Wyman Guin, publicado originalmente na Galaxy Science Fiction. Curiosamente, Wyman Guin pode ser considerado um dos autores “um pouco mais velhos” aos quais se referiram anteriormente Peter Nicholls e David Langford.
 

Capa de Ed Emshwiller, ilustrando o conto Beyond Bedlam (1951); capa de Jim Burns para a edição em livro (Sphere Books, 1973).

Na história, algumas drogas são desenvolvidas no final do século 20 com o objetivo de ajudar os esquizofrênicos, permitindo que suas personalidades interiores possam viver lado a lado, controlando o corpo alternadamente. No século seguinte, traços de esquizofrenia são reconhecidos como existindo em todas as pessoas e torna-se obrigatório o uso das drogas, de forma que todos passam a ter um ego principal e um alternativo, funcionando como pessoas diferentes e separadas que passam por mudanças induzidas por drogas a cada cinco dias. “O autor”, explica Silverberg, “explora o conceito da mudança de ego seguindo os destinos de uma série de protagonistas cujas personalidades duplas envolvem-se em interações complexas”.
Em The Science Fiction Encyclopedia, John Clute diz que a história se passa mil anos no futuro, e que é brilhante. Segundo ele, o equilíbrio entre as personalidades “(...) neutraliza as agressões subconscientes do ser humano e, assim, elimina as ‘guerras paranoicas’ dos ‘antigos Modernos’. A paixão e a arte também desaparecem. O bem e o mal desse sistema são explorados com uma capacidade de escrita e verossimilhança que o faz inteiramente merecedor de ser classificado como uma intensificação legítima da versão apresentada por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo, para uma estabilidade imposta pelas drogas”. E, convenhamos, não é uma comparação qualquer.
 

(Manor Books, 1976).

Um dos autores que mais utilizou as drogas em suas histórias foi Philip K. Dick. O próprio Silverberg cita várias de suas histórias, a começar por Lembramos Para Você a Preço de Atacado (We Can Remember it for You Wholesale, 1966), conto enquadrado na categoria de drogas utilizadas como controladoras da mente. As falsas memórias que são o centro da história são implantadas com a ajuda de uma droga chamada “narkidrine”. Antes mesmo desse conto, Philip K. Dick havia escrito Espere Agora Pelo Ano Passado (Now Wait for Last Year, 1963), romance que só foi publicado em 1966, e que apresenta a droga JJ-180. E, em 1967, ele publicaria outro romance apresentando as drogas como expansoras da mente, The Ganymede Takeover, escrito em parceria com Ray Faraday Nelson, “(...) um romance satírico inteligente”, como diz Silverberg, no qual “criaturas semelhantes a vermes de Ganímedes, lua de Júpiter, conquistam a Terra, apesar dos esforços de indivíduos como Rudolph Balkani, Chefe da Agência de Pesquisa Psicodélica, que esteve trabalhando em uma arma capaz de bloquear a mente. O mundo que Ganímedes conquista está, de fato, devotado ao uso de psicodélicos em todos os níveis, e o romance levanta questões acerca da natureza da ‘realidade’, conforme a ação se desenvolve”.
Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (The 3 Stigmata of Palmer Eldritch, 1964) está entre seus melhores trabalhos, e apresenta duas drogas capazes de transportar as pessoas a outras realidades: Can-D e Chew-Z (ver mais sobre o livro também na matéria Universos e Mundos Construídos).
No conto Faith of Our Fathers (1967), publicado na coletânea Dangerous Visions, editada por Harlan Ellison, a droga chama-se “stelazine”, e ela é uma contrapartida à droga fornecida pelo governo à população como forma de manter as pessoas dóceis. A ação centra-se no Vietnã, com o partido comunista colocando a droga no suprimento de água, enquanto a stelazine é um antialucinógeno desenvolvido por um movimento de resistência.

Capa de Bob Pepper (DAW Books, 1984).

O livro mais comentado de Philip K. Dick, no que diz respeito às drogas, certamente é O Homem Duplo (A Scanner Darkly, 1977), com a famosa “substância D”. Jeff Noon, escrevendo para The Guardian, disse que Philip K. Dick é, talvez, o mais prolífico “inventor” de drogas, utilizando-as como geradoras de enredos, como uma fonte de energia transformativa, e tanto como uma forma de fugir da realidade quanto uma forma de experimentar a realidade de forma mais intensa. No caso de O Homem Duplo, a substância D é apresentada como uma droga psicoativa, inicialmente produzindo euforia, “(...) o que é ótimo”, diz Noon, “até que o usuário percebe que o D significa Desespero, Deserção, Estupidez (Dumbness), e sua encarnação final, Morte (Death)”.
Callie Barrons, em High Times, lembra que a droga também é conhecida como “Morte Lenta”, e faz com que os dois hemisférios do cérebro ajam de forma independente e, frequentemente, até mesmo ajam em competição um com o outro.
A história foi adaptada para o cinema como O Homem Duplo (A Scanner Darkly, 2006), com direção de Richard Linklater, e Keanu Reeves e Robert Downey Jr., utilizando a técnica de animação em cima das imagens dos atores.

Robert Silverberg disse que as histórias que escolheu para compor seu trabalho sobre as drogas no gênero ilustram a extensão do tema, indo do plausível ao fantástico, do horripilante à indução de êxtase. “Em um mundo”, ele disse, “em que o homem e suas maravilhas tecnológicas têm de coexistir com uma interface desconfortável, a ficção científica indica algumas das possíveis áreas de impacto nas décadas e séculos à frente”.
E sempre lembrando, como disseram David Langford e Peter Nicholls, que ainda existem muito mais drogas na ficção científica. “Como as tradicionais poções e preparos das bruxas na fantasia”, eles disseram, as drogas “têm toda a versatilidade múltipla dos raios”, utilizados profusamente no gênero.

Nas matérias a seguir, apresentamos várias histórias de FC que lidam com o tema das drogas, em suas várias modalidades e formas de abordagem, na literatura, no cinema e na televisão.