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CRIEI UM MONSTRO

ESPECIAIS/VE ALGUNS MONSTROS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data12/07/2019
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Frankenstein, o clássico de Mary Shelley, é visto como o primeiro livro moderno de ficção científica e iniciador de uma tradição no gênero, posteriormente marcada pelos chamados “cientistas loucos”.

Não há dúvida de que o monstro de Frankenstein é o mais popular de todos os tempos, a ponto de o nome do cientista e criador passar a denominar a criação. É possível até mesmo identificar o dr. Victor Frankenstein como sendo o monstro da história, com sua tentativa de criar vida e assumir a função de Deus sendo vista como uma atitude contrária à moral da época. E, mesmo hoje em dia, existe um tabu com relação ao tema. Estamos vivendo uma época em que a engenharia genética substituiu a “eletricidade”, que fez tanto sucesso nas histórias da época de Mary Shelley, como a tecnologia capaz de criar ou modificar radicalmente a vida. E as possibilidades abertas pelos avanços da genética são combatidos por alguns grupos religiosos e políticos.
Escrito por Mary Shelley e publicado em 1818, Frankenstein é muitas vezes apontado como o primeiro livro genuinamente de ficção científica, apesar de utilizar uma estrutura narrativa distante do que a ficção científica iria desenvolver. Tem em comum com produções posteriores do gênero, no século 20, a abordagem da relação entre os seres humanos e o desenvolvimento científico, suas aplicações e a forma como a ciência pode modificar a sociedade.
Como disse Brian Stableford (em The Science Fiction Encyclopedia), o monstro de Frankenstein se tornou o monstro arquetípico da ciência, representando todos os seres monstruosos que surgiram devido à ação direta da ciência humana. O tema do cientista, o criador e inovador, perseguido pela culpa devido aos problemas que possa ter causado, no caso, o “monstro” que soltou no mundo, seria um assunto básico do gênero durante muitos anos e, ainda hoje, aparece em grande número de livros e filmes. O questionamento das ações da ciência e dos cientistas – e, em alguns casos, a condenação dessas ações – tornou-se parte significativa da literatura e do cinema de ficção científica.
O crítico e escritor John Clute disse que o monstro – que lê Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe – é, de certa forma, uma tábula rasa (como o próprio monstro se descreve), e ele é levado a fazer o mal pela repulsa e perseguição das pessoas. De certa forma, “ele tem de aprender a ser um monstro”; e ele também pode ser visto como a personificação do mal latente no ser humano. Já Frankenstein é normalmente equiparado a Prometeu e ao Doutor Fausto, dois personagens que buscaram o conhecimento, sem limites para suas ações, e que acabaram sendo vítimas de sua própria busca. O crítico Peter Nicholls cita as histórias de Isaac Asimov, que frequentemente utilizam o termo “complexo de Frankenstein”, generalizando a paranoia gerada pelo medo da retaliação devido a criações ímpias, seja de seres biológicos ou mecânicos. A ficção científica está repleta de exemplos desse tipo, em particular as que se referem ao desenvolvimento da Inteligência Artificial e a forma como ela poderia suplantar a humanidade, e não para nosso benefício.

A escritora Jane Yolen, comentando sobre o livro em Horror: 100 Best Books, diz que o livro combina elementos de alegoria com góticos, narrativa com filosofia, mas que é mais notável por ter sido escrito por Mary Shelley antes dos 20 anos. E, ela acrescenta, escrito como uma nota ou uma réplica ao Paraíso Perdido, de Milton, o livro e repleto de imagens grotescas e semelhantes a um sonho, “(...) e a feroz perseguição através do Ártico, que finaliza o romance, é uma jornada fantasmagórica da alma perdida”.
“Enquanto que o sentido do texto é o de que o herói (ou anti-herói) é o jovem doutor Frankenstein, o leitor moderno naturalmente se volta mais para o monstro. Ele tem as falas mais cativantes, é o personagem mais sábio e, ao seu modo estranho, é o mais nobre”.
Uma das mais famosas imagens associadas ao livro, o momento em que a criatura ganha vida devido ao uso da energia canalizada de uma tempestade elétrica, não fazia parte da história originalmente, mas foi difundida especialmente pelo filme de 1931. No livro, Frankenstein não esclarece como deu vida à sua criação, e apenas no prefácio da edição de 1831 Shelley apresenta algumas sugestões de como isso poderia ter sido feito, citando o galvanismo, bastante popular na época.
A questão de Mary Shelley ter escrito a obra antes de completar 20 anos é algo que chamou a atenção não apenas de Jane Yolen, como relatado, mas de outros críticos e escritores. Brian Aldiss, um dos mais conhecidos autores contemporâneos de ficção científica, considerou notável que, em sua juventude, Shelley tenha conseguido criar “uma nova figura arquetípica”.
Adam Roberts considera que o arquétipo acabou sobrepujando o romance em si, em particular as versões posteriores para o cinema, que “desbancaram de fato o texto original. Uma vítima dessa disseminação cultural (...) é a verborragia do monstro; o eloquente narrador da fundamental terça parte do livro é reduzido a grunhidos e fala incoerente nas versões cinematográficas mais tardias. Em sentido crucial, o objetivo desse texto é precisamente dar voz ao monstruoso outsider; e adaptações posteriores, ao remover essa voz, têm subvertido um modelo cultural mais antigo”.
As interpretações para o livro de Mary Shelley são inúmeras, e vários críticos já apresentaram seus pontos de vista, que vão do aspecto psicológico ao social. Adam Roberts disse que Frankenstein é, em suma, uma descida ao Inferno. “Penso”, ele escreveu, “nas muitas narrativas da cultura ocidental sobre descida aos infernos; penso, em particular, na grande A Divina Comédia, de Dante. O Inferno de Dante é uma caverna em forma de funil localizada dentro da Terra – algo que a própria estrutura narrativa em forma de funil de Shelley imita, com a narrativa de referência de Walton contendo o relato menor, porém mais profundo do próprio Frankenstein e essa esfera da história contendo de novo a menor, porém mais profunda narrativa do monstro”.
O escritor Brian Aldiss apresentou uma versão da história de Mary Shelley em Frankenstein Libertado (Frankenstein Unbound, 1973). Roberts diz que vários dos melhores livros de Aldiss “(...) reelaboram clássicos do gênero de um modo que, mais tarde, se tornaria característico do pós modernismo”. No caso, Frankenstein Libertado “(...) mistura com descontração norte-americanos viajando no tempo com Mary Shelley e seu monstro. A história fragmenta e oferece nuances ao Frankenstein original de modo bastante criativo, quando o próprio mundo está fragmentado por tremores de tempo (resíduo de uma guerra futura). No final, o monstro de Frankenstein se torna quase um tipo de Cristo (‘Minha morte’, diz ele a seu matador, ‘pesará mais sobre você que minha vida... Embora procure me enterrar, você me ressuscitará para sempre’; ao morrer, ele anuncia que está livre para enfrentar o inferno)”.
A história foi levada ao cinema em 1990, em Frankenstein, O Monstro das Trevas (Frankenstein Unbound), o primeiro filme dirigido por Roger Corman em 19 anos. A produção de mais de 11 milhões de dólares não é típica dos trabalhos do diretor e produtor, mais conhecido por pequenas produções. Ainda teve um elenco muito bom que incluiu John Hurt, Raul Julia e Bridget Fonda. Apesar de ter sido um fracasso de bilheteria, teve uma acolhida razoável da crítica, e o roteiro aproveitou bem os melhores momentos do livro, inclusive com a frase final do Monstro, citada acima por Adam Roberts, ainda que um pouco modificada (“Você pensa que me matou, mas eu estarei com você para sempre. Eu estou libertado”).

Antes que o cinema começasse a adaptar a obra de Mary Shelley várias versões foram desenvolvidas para o teatro, a começar com Presumption: or the Fate of Frankenstein, em 1823, de Richard Brinsley Peake. A peça foi um sucesso e introduziu o personagem do ajudante do dr. Frankenstein, que não existe no livro; na peça, ele é chamado Fritz, mas adaptações posteriores consagraram o nome Igor. Na verdade, Igor passou a ser ajudante de muitos cientistas loucos nos anos posteriores, em particular no cinema.
E foi o cinema que bateu recordes de adaptações de Frankenstein, quase sempre transformando a criatura em um monstro incapaz de falar ou raciocinar. Alguns pesquisadores chegam a afirmar que Frankenstein foi o livro que teve o maior número de adaptações para o cinema.
A versão de 1931, dirigida por James Whale, com Boris Karloff interpretando a criatura, geralmente ainda é considerada a melhor de todas, apesar de que as adaptações livres de Terence Fisher para a famosa produtora inglesa, Hammer, também sejam consideradas excelentes.
O sucesso do filme de 1931 rendeu uma sequência – que, como vemos, não é algo novo no cinema – A Noiva de Frankenstein (The Bride of Frankenstein, 1935), produção novamente dirigida por James Whale e, novamente, com Karloff como a criatura, dessa vez apresentada de forma mais simpática e com o propósito de ter uma companheira, que o doutor concorda em remendar. Há também mais um filme, O Filho de Frankenstein (Son of Frankenstein, 1939), muito inferior aos anteriores. E uma quarta produção da Universal, O Fantasma de Frankenstein (The Ghost of Frankenstein, 1942), porém com uma história cada vez mais distante da original.

 

CIENTISTAS LOUCOS
 

 

A tradição iniciada pelo personagem Victor Frankenstein originou o surgimento de outros cientistas na literatura e no cinema de ficção científica e terror. E eles se multiplicaram a tal ponto que a expressão “cientista louco” tornou-se comum.
O escritor e crítico David Langford disse (em The Science Fiction Encyclopedia) que apesar de o clichê do cientista louco apresentado como o vilão da história ter se desenvolvido muito nas revistas pulp e nos quadrinhos – e, por extensão, no cinema – a noção é bem mais antiga do que a ficção científica, já tendo sido desenvolvida pelo filósofo romano Sêneca, o Jovem (4 a.C. – 65), quando afirmou que nunca tinha existido um grande gênio sem um toque de loucura.
Depois de Frankenstein, o doutor Jekyll surgiu como um dos maiores cientistas loucos de todos os tempos. Criação do escritor escocês Robert Louis Stevenson, O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1886) foi um sucesso imediato, tanto de vendas do livro quanto de adaptações, primeiro para o teatro, depois para o cinema.
No Brasil, a obra também é conhecida simplesmente como O Médico e o Monstro. Seu tema central, muitas vezes, já foi associado ao fenômeno psicológico conhecido como personalidade múltipla.
A qualidade da obra de Stevenson talvez possa ser avaliada, entre outras coisas, pela imensa variedade de interpretações que recebeu ao longo dos anos e pelo número de análises realizadas a respeito de seu enredo. E, ainda que, nitidamente, tenha a ver com as questões de racionalidade versus animalidade, do bem contra o mal, os quais existem no interior de todo ser humano, da contenção do lado animal do ser humano por meio das restrições morais impostas pela sociedade, o livro também pode ser interpretado pelo aspecto dos males que podem ser causados pelo desenvolvimento científico sem quaisquer restrições e sua aplicação ao ser humano.
No caso, o doutor Jekyll não cria exatamente um monstro, mas se transforma em um. Ao fazer as experiências em si mesmo, com a melhor das intenções, ele desperta o lado do “mal” que, supostamente, convive com o lado do “bem” em todo ser humano.
Os críticos John Clute e David I. Masson disseram que o enredo tem a forma de uma espiral que se move cuidadosamente em direção ao “coração das trevas” que compõe o clímax da história, ou seja, o último capítulo do livro, quando a confissão da terrível queda escrita pelo então falecido Jekyll é descoberta e apresentada aos leitores. Eles também entendem que a história teve imensa influência do tema da psicologia na ficção científica.
O escritor Jack Williamson, comentando sobre o livro em Horror: 100 Best Books, disse que as personalidades do bom doutor Jekyll e do sinistro Mr. Hyde eram simplesmente recursos utilizados para o que Stevenson realmente queria dizer. “Seu tema”, escreveu Williamson, “como Poe em William Wilson e Conrad em O Cúmplice Secreto, é o do duplo, um símbolo, como eu vejo, para o conflito universal entre o individual e a sociedade”.
“Todos nós nascemos nus, individualistas egoístas. No entanto, no momento do nascimento nós somos jogados na guerra com todas as instituições que tentam nos socializar: família, escola, religião, lei. Mas enquanto vivemos, que nos rebelemos ou nos submetamos, cedamos ou conquistemos, essa tensão nunca acaba. O Dr. Jekyll, como eu o vejo, é o homem social, e o senhor Hyde a alma rebelde. Eu penso que eles refletem a divisão no próprio Stevenson”.
Williamson ainda escreveu que “Quando nós trememos diante do choque e o horror da história, penso que seja porque nós todos, pelo menos em certo grau, fomos despedaçados pelo mesmo conflito interno. Quando recuamos aterrorizados diante da selvageria egoísta de Mr. Hyde, penso que seja porque tememos nossos próprios egos secretos”.

Dez anos depois da publicação do livro de Stevenson, outro cientista bem perturbado surgiu em A Ilha do Doutor Moreau (The Island of Doctor Moreau, 1896), de H.G. Wells. Como Frankenstein e O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, o livro de Stevenson teve imensa influência na produção de ficção científica e terror que iria se desenvolver no século 20, tanto na literatura quanto no cinema.
O escritor Gene Wolfe (em Horror: 100 Best Books) disse que o livro é o “(...) romance de ficção científica definitivo, e é o romance de terror definitivo. Ele nos mostra para onde estamos indo, e nos mostra que já estamos lá; que nós somos piores do que bestas e que, quando nós criarmos nosso monstro final, nós iremos achá-lo um inimigo quase tão diabólico quanto nós mesmos. Vocês são religiosos? Aqui está o que aconteceu no Éden depois que Adão e Eva foram embora. Você é científico? Dê uma olhada nesse telescópio, nesse microscópio, e contemple o vazio e o horror do universo em sua própria face refletida”.
Adam Roberts (em A Verdadeira História da Ficção Científica) disse que “Sob certos aspectos, A Ilha do Dr. Moreau (1896) é uma reelaboração pós-darwinista do Frankenstein de Shelley. [...] Ao escrever uma novela sobre a proximidade da humanidade e da animalidade, Wells tinha alguma coisa em mente, alguma coisa darwinista. Antes de Darwin, os humanos consideravam-se únicos, criados por Deus, diferentes em essência dos animais. Darwin afirmou que não era bem assim. Os humanos são meramente animais submetidos, pela evolução, a uma mutação. A Ilha do Dr. Moreau é a primeira grande novela sobre essa revolução de pensamento, escrita três décadas após o aparecimento de A Origem das Espécies (Origin of Species), pois foi esse o tempo que a chocante ideia de Darwin levou para se imiscuir do modo devido na cultura popular”.
Roberts lembra que o livro é tão rico em significados simbólicos que inúmeras interpretações já foram sugeridas. A escritora Margaret Atwood, em uma introdução a uma edição do livro, chegou a sugerir dez leituras diferentes para a obra.
Assim como havia feito com Frankenstein, o escritor Brian Aldiss criou a sua própria versão da história de H.G. Wells em A Outra Ilha do Dr. Moreau (Moreau’s Other Island, 1980).

Os cientistas alucinados foram personagens constantemente utilizados desde as primeiras produções do cinema, às vezes criando monstros, outras vezes construindo máquinas estranhas ou diabólicas, tentando dominar o planeta ou simplesmente sendo vilões terríveis com planos malévolos a serem derrotados pelos heróis de plantão. E eles continuam a ser apresentados ainda hoje, ainda que nada que se compare com sua presença nos filmes das décadas de 1940 e 1950, muitos deles inspirados em O Médico e o Monstro, em Frankenstein e em A Ilha do Dr. Moreau, ou como uma mistura mais ou menos competente de todas as obras.
As histórias envolvendo esses cientistas que, segundo as palavras de Stephen King, estão na “linha direta de descendência do proprietário original do Laboratório de Loucos, Victor Frankenstein”, passaram a compor uma espécie de subclassificação para os filmes de ficção científica e de terror, seja criando monstros, sendo eles mesmos os monstros, testando sua humanidade e a recepção da sociedade a ideias que, apesar de novas e, às vezes, revolucionárias, vão de encontro a determinadas posturas morais e religiosas da época em que se passa a história.

Veja aqui alguns filmes com os cientistas loucos e seus monstros.