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EM BUSCA DE OUTROS MUNDOS

ESPECIAIS/VE AS ESPAÇONAVES DA FC

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data17/12/2019
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As chamadas “viagens extraordinárias” em busca de outros mundos existem desde os primórdios da literatura, mas foi no século 19 que começaram a ser esboçados os primeiros mecanismos voadores que iriam resultar nas espaçonaves da ficção científica moderna.

Segundo Brian Stableford (em The Science Fiction Encyclopedia), a sugestão de que as pessoas um dia poderiam viajar à Lua dentro de uma máquina voadora foi proposta seriamente pela primeira vez por John Wilkins, em 1638, em sua obra The Discovery of a World in the Moone (A Descoberta de um Mundo na Lua). “Existiram viagens cósmicas anteriores a essa data”, diz Stableford, “e iriam existir muitas posteriormente, mas poucas levaram a mecânica da jornada a sério o suficiente para investir muito esforço imaginativo na idealização de veículos verossímeis”.

(Capa: Carleton University Graphics/ Dovehouse Editions).

Stableford diz que a obra de Wilkins, de 1638 – que tem como título completo The Discovery of a New World, or a Discourse Tending to Prove That ‘tis Probable There May be Another Habitable World in the Moone – que o livro parece repercutir uma leitura do Somnium, de Kepler. No entanto, o título revisto da terceira edição do livro, The Discovery of a New World, or a Discourse Tending to Prove That ‘tis Probable There May be Another Habitable World in the Moone: With a Discourse Concerning the Possibility of a Passage Thiter (1640), reflete o encontro com o livro de Francis Godwin, The Man in the Moone (1638), no sentido que a leitura do livro de Godwin inspirou Wilkins a especular de forma interessante a respeito da natureza do voo interplanetário, com “(...) sua sugestão mais visionária sendo uma espécie de carruagem voadora, cujos passageiros poderiam sobreviver à viagem por meio de algo semelhante a uma proto-animação suspensa”.
As “viagens cósmicas” anteriores às quais Stableford se referiu incluem Somnium (1634), de Johanner Kepler. E ainda, como disse Adam Roberts (em A Verdadeira História da Ficção Científica), encontra antecedentes nas “voyages extraordinaires interplanetárias da novela grega antiga”.
No citado The Man in the Moone, or a Discourse of a Voyage Thither by Domingo Gonsalez, the Speedy Messenger (O Homem na Lua, ou um Discurso de uma Expedição Para Lá por Domingo Gonsales, o Mensageiro Veloz, 1638), de Francis Godwin, o voo no espaço é realizado com a ajuda de aves (para saber mais sobre as obras de Godwin e Wilkins ver a matéria FC e Religião); no entanto, o livro foi publicado postumamente, e é provável que tenha sido escrito nos anos 1620.

                                                                                     Cyrano usa "garrafas de orvalho" para subir em direção à Lua (Ilustração de 1708).

E um exemplo posterior é O Outro Mundo ou os Estados e Impérios da Lua (L’autre monde ou les états et empires de la lune, 1657), de Cyrano de Bergerac; ou, com o título completo de Histoire Comique par Monsieur Cyrano de Bergerac, contenant les États et Empires de la Lune (História Cômica do senhor Cyrano de Bergerac, incluindo os Estados e Impérios da Lua), publicado postumemente (Bergerac morreu em 1655). No livro, o viajante, o próprio Cyrano, tenta ir à Lua, primeiramente, amarrando várias “garrafas de orvalho” ao corpo, que são puxadas para cima pela ação do Sol; mas ele não chega à Lua, e sim ao Canadá, onde tenta novamente com a ajuda de foguetes, e consegue chegar à Lua.

O personagem lendário Wan Hu, em sua cadeira provida de foguetes, com a qual teria viajado à Lua (Imagem: NASA/ United States Civil Air Patrol).

Brian Stableford disse que os foguetes utilizados como forma de viajar já surgiram em uma lenda chinesa do século 16, segundo a qual o personagem Wan Hu – que teria vivido, segundo algumas versões, cerca de 2000 a.C., e segundo outras, no século 16 – adaptou 47 foguetes a uma cadeira para tentar elevar-se aos céus. O que Cyrano apresentou em seu livro foi o personagem amarrando três foguetes às suas costas de tal maneira que, quando o primeiro foguete acabasse de queimar, acenderia o segundo e assim por diante, mantendo sua elevação constante.
Em outra obra de Cyrano de Bergerac, Les Nouvelles Oeuvres de Monsieur Cyrano de Bergerac, contenant l’Histoire Comique de États et Empires du Soleil (Novas Obras do Senhor Cyrano de Bergerac, incluindo a História Cômica dos Estados e Impérios do Sol, 1662), ele retorna ao espaço usando uma espécie de nave movida por espelhos que refletem os raios do Sol.

Ilustração de Yan Dargent para "A Aventura Sem Paralelo de um tal Hans Pfaal", para o ensaio de Julio Verne "Edgar Poe et ses œuvres" (1864).

Segundo Stableford, todas essas histórias mais antigas de voos à Lua ou outros mundos eram histórias de “voos” mais do que de “voos espaciais”, uma vez que os autores admitiam como um fato consumado que a atmosfera terrestre tinha continuidade fora da Terra. E um dos que imaginaram a continuidade da atmosfera terrestre foi Edgar Allan Poe, no conto A Aventura Sem Paralelo de um tal Hans Pfaal (The Unparalleled Adventure of One Hans Pfaal, 1835), publicado em Histórias Extraordinárias. Ainda assim, como explica Stableford, “(...) foi a primeira das histórias de viajantes na qual o protagonista tomou precauções aprimoradas para abastecer-se de ar, reconhecendo que a atmosfera sublunar seria muito tênue”. Stableford disse que o conto normalmente aparecia com um epílogo no qual o autor reclamava do fracasso de outros escritores em obter verossimilhança. “De qualquer forma”, disse Stableford, “Pfaal fez sua viagem com um balão, e a suposição de Poe da continuidade da atmosfera é difícil de engolir (especialmente quando o conto foi escrito 200 anos após Torricelli estimar que a atmosfera estendia-se apenas alguns quilômetros de altitude)”.
Edgar Allan Poe já chegou a ser considerado o pai da ficção científica, inclusive por escritores do gênero como Thomas Disch, ainda que seus contos geralmente estejam mais associados à literatura de terror. Adam Roberts entende que Hans Pfaal é o “ápice da ficção científica de Poe, (...) uma narrativa quase científica que relata uma viagem de balão à Lua (...) mantendo, do início ao fim, uma íntima relação entre ciência e ficção”. É claro que a história é apresentada como uma sátira e uma farsa, como se revela ao final. Segundo Roberts, “O verdadeiro golpe de gênio de Poe foi registrar a jornada do balão em si com uma escrupulosa exatidão estilística, que tira o conjunto do atoleiro historicamente específico da sátira dos anos 1830 e o leva a um domínio de expansão da mente da FC”.

O projétil de Da Terra à Lua, em ilustração da edição de 1868 (Desenho de Henri de Montaut).

Júlio Verne saiu-se melhor do que Poe em sua abordagem do meio pelo qual uma viagem à Lua poderia ser realizada, com seu clássico Da Terra à Lua (De la Terre à la Lune, 1865) e a sequência Viagem ao Redor da Lua (Autour de la Lune, 1870). Brian Stableford disse que o livro de Verne foi a tentativa seguinte de imaginar os meios pelos quais o voo espacial poderia realmente ser realizado. Ainda assim, posteriormente surgiram críticas à forma pela qual Verne imaginou sua viagem. Em The Visual Encyclopedia of Science Fiction, o texto explica que a trajetória da nave de Verne era tal que os tripulantes não poderiam realizar uma alunissagem exploratória. “Sua cápsula espacial foi a primeira a ser cientificamente concebida, embora as paredes acolchoadas e os amortecedores de choque hidráulicos dificilmente teriam salvado sua tripulação de uma morte violenta na decolagem pela explosão de 400 mil toneladas de explosivo. O fato de que o projétil fosse equipado com foguetes apenas para navegação indica certa falta de imaginação (...)”.
Adam Roberts critica os que procuram pontos negativos nas duas obras de Verne; ou, mais exatamente, a forma pela qual esses aspectos negativos são apresentados. Segundo Roberts, é preciso considerar que as viagens reais à Lua ocorreram nas décadas e 1960 e 1970. Assim, “(...) É raro quem comenta o trabalho de Verne resistir à tentação de ler seu relato ficcional com a lente dessas missões, o que com frequência provoca um enfadonho itinerário de pontos em que Verne estava ‘certo’ ou ‘errado’. (...) Embora Verne aproprie-se de muitas das linguagens preocupadas com o ‘fato científico’, seus livros não são factuais e com certeza tampouco proféticos”.

                                                                                               O disparo da nave em Da Terra a Lua (Ilustração sem crédito, 1872).

Roberts também diz que existe uma tendência entre os críticos de tratar os dois livros como se fossem um só, o que não são. Analisando as diferenças entre eles, Roberts diz que o primeiro livro não diz respeito, de modo algum, a assuntos extraterrestres. “Ao contrário, a ênfase está na obstinada confiança dos protagonistas norte-americanos e em suas ambições francamente beligerantes e imperialistas”. A ideia é conquistar a Lua e unir seu nome ao dos demais estados norte-americanos. Já o segundo livro diz respeito a um voo espacial.
Ao final de Da Terra à Lua, a impressão que fica é de que os astronautas foram de fato mortos pela explosão espetacular que chega a destruir uma grande extensão da Flórida, de onde a nave partiria. “Ler o livro sob essa vertente”, diz Roberts, “é sugerir, sem dúvida, que ele opera como uma sátira do amor da América por armas, uma beligerância nacional que Verne via inabalada por anos de sangrenta guerra civil e que, nesse livro, embora supostamente canalizada para uma simples expedição, leva de fato a uma destruição de explosão catastrófica”.
No entanto, em Viagem ao Redor da Lua, os astronautas estão vivos. É nesse livro que Verne menciona a existência de um sistema de amortecedores que iria proteger os viajantes, o que leva a crer que o autor repensou as questões envolvendo uma viagem espacial.

Brian Stableford diz que “A maioria dos romancistas científicos da época, no entanto, estavam satisfeitos em inventar não mais do que um jargão para indicar alguma força misteriosa de propulsão”.
Foi assim, por exemplo, no livro Across the Zodiac (1880), de Percy Greg, no qual o autor inventa a energia denominada “apergy” para impulsionar sua nave espacial, a Astronaut, em direção a Marte. A energia apergy tem um efeito semelhante à antigravidade. O viajante encontra um planeta habitado por seres de pequena estatura que não acreditam que o viajante tenha vindo da Terra.

Edição de 2013 de A Journey in Other Worlds, com capa Ron Miller (Baen).

A energia apergy surgiu novamente em A Journey in Other Worlds: A Romance of the Future (1894), de John Jacob Astor IV, mais conhecido como um homem de negócios, na verdade, uma das pessoas mais ricas do mundo em sua época, falecido no naufrágio do Titanic, em 1912. Na história, a fonte de energia move uma espaçonave no ano 2.000, em uma viagem pelo sistema solar na qual os viajantes encontram seres alienígenas em Júpiter e Saturno, de morcegos vampiros e lagartos voadores, em Júpiter, a espíritos que fornecem visões do futuro. Segundo John Clute, a jornada tem muito de especulação mística, podendo ser vista tanto como uma alegoria teológica como uma profecia científica.

                                                                                                              (Capa: Richards. Edição da Corgi, 1957)

O britânico George Griffith – tido como um dos mais influentes e respeitáveis escritores de FC de sua época – imaginou a misteriosa “força R” para impulsionar uma nave espacial em A Honeymoon in Space (1901), que mostra, como o título diz, um casal em lua de mel fazendo turismo pelo sistema solar, completando a viagem em quatro meses. A “força R” é um “fluido” que desafia a gravidade.
H.G. Wells também inventou o Cavorite, material antigravidade, que permite a viagem espacial em Os Primeiros Homens na Lua (The First Men in the Moon, 1901). O nome do material vem de seu inventor, Mr. Cavor, que, com o narrador da história, Bedford, um homem de negócios de Londres, constrói a nave que os leva à Lua, onde descobrem que ela é habitada por uma raça semelhante a insetos que teve um desenvolvimento do cérebro, organizada em uma sociedade distópica.
John Mastin, também britânico, escreveu The Stolen Planet (1905), no qual uma “aeronave” usa um novo gás para seguir pelo espaço.

(Capa: Ray Wardell/ Roy Glashan's Library).

E o astrônomo e escritor norte-americano Garrett P. Serviss escreveu A Columbus in Space (1909), publicado inicialmente em All-Story Magazine. A história apresenta uma viagem a Vênus com um “carro espacial” movido por energia atômica. Serviss já havia apresentado outra viagem espacial em Edison’s Conquest of Mars (1898), escrito como uma sequência a Fighters From Mars (1897/1898. Publicado em New Evening Journal e em Boston Post), por sua vez uma sequência, sem autoria definida, ao clássico A Guerra dos Mundos (The War of the Worlds, 1897), de H.G. Wells, que tinha sido publicado na revista The Cosmopolitan. Como aconteceu em várias histórias do período, Thomas A. Edison é apresentado como um personagem, seguindo os eventos do clássico de Wells. Edison e outros cientistas desenvolvem uma série de inventos, incluindo uma nave espacial movida a antigravidade e raios desintegradores, para enfrentar mais uma vez os marcianos, no espaço e em Marte, uma vez que eles se preparam para invadir a Terra novamente.

                                                                                                                                                   (Capa: G. Y. Kauffman, 1898).
(Capa: Tom Miller/ Apogee Books).

Segundo John Clute e Malcolm Edwards (em The Science Fiction Encyclopedia), Edison’s Conquest of Mars foi composta de forma grosseira, com velocidade telegráfica, e poderia ter sido um modelo influente no desenvolvimento da space opera e do romance interplanetário se não tivesse efetivamente desaparecido após sua publicação em um jornal obscuro, permanecendo essencialmente desconhecido até sua redescoberta e publicação em forma de livro, em 1947. Os terrestres constroem uma armada com 100 espaçonaves, os astronautas utilizam roupas espaciais, e existem descrições de batalhas no espaço e em Marte. Além disso, aparentemente a história apresenta o primeiro caso de abdução alienígena e ainda lida com a presença dos extraterrestres marcianos no passado longínquo da Terra, sendo os responsáveis pela construção das pirâmides.

Com o tempo, as naves espaciais do século 19 foram superadas por versões mais trabalhadas ou, em alguns casos, apenas visualmente mais atrativas, o que veremos na matéria seguinte.