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MUTAÇÕES

ESPECIAIS/VE CORPOS ALTERADOS

autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data22/03/2021
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O início da ficção científica nas revistas pulp foi marcado pelo surgimento de uma multidão de mutantes, nem sempre em histórias bem elaboradas.

Detalhe da capa de Odd John, de Olaf Stapledon (Eamon O'Donoghue

Como seria de se esperar, existem algumas diferenças básicas entre as noções de mutação ou transformação corporal desenvolvidas pela ficção científica, pelo terror e pela fantasia.
Nas histórias de fantasia, geralmente, essas transformações são chamadas de metamorfoses, ainda que exista uma diferença entre uma metamorfose definitiva e aquela dos transmorfos, os seres capazes de mudar e reverter sua forma (em inglês, chamados “shapeshifters”).
As transformações nas histórias de terror podem ocorrer por vários motivos, mas geralmente são atribuídas a forças do mal, como ocorre com os lobisomens ou mesmo os vampiros, e ambos, no fim das contas, também atuam como agentes transformadores de corpos humanos.
Na ficção científica, como dissemos inicialmente, os meios pelos quais as mutações surgem variam bastante de acordo com a época em que as histórias são elaboradas. É assim que, após a explosão da primeira bomba atômica, a radiação passou a ser a vilã número um, enquanto nos dias atuais o principal agente transformador provavelmente seja a engenharia genética.

Capa de Frank R. Paul, ilustrando a história The Metal Man, de Jack Williamson (1928).

Mas ainda antes da explosão de filmes com monstros atômicos dos anos 1950 (e antes da explosão atômica em si), a radiação já ocupava seu espaço na área das mutações. Os críticos Brian Stableford e David Langford disseram que em algumas histórias os autores atribuíam “qualidades metamórficas mágicas” à radiação, um conceito distante das teorias ortodoxas a respeito da mutação. “O romance mutacional tem sido um elemento central nas revistas pulp, quadrinhos e cinema de ficção científica”, eles disseram, “com a radiação de várias criaturas frequentemente produzindo monstros gigantes e a radiação de pessoas ocasionando metamorfoses em super-homens (muitos, provavelmente a maioria, dos super-heróis têm esse tipo de gênese) ou sub-humanos”.

Capa de Frank R. Paul, ilustrando a história The Man Who Evolved, de Edmond Hamilton (1931).

Entre os exemplos de histórias do gênero publicadas nas primeiras revistas pulp cita-se The Metal Man, de Jack Williamson, seu primeiro conto, publicado na revista Amazing Stories em 1928. Edmond Hamilton também publicou histórias com mutações, como em The Man Who Evolved (1931), na revista Wonder Stories. A história apresenta o cientista John Pollard realizando experiências para determinar o que causa as mutações que levam à evolução, determinando que os raios cósmicos são os responsáveis. Assim, ele resolve receber uma dose concentrada de raios cósmicos e evoluir, tornando-se o que ele acredita que deve ser o futuro da humanidade. Como bom cientista louco, ele constrói sua máquina de concentrar raios cósmicos, que lhe permitirá evoluir 50 milhões de anos a cada 15 minutos de exposição. Ele tem êxito, atingindo imensa inteligência, mas, mais uma vez, como bom cientista louco, quer ver além, recebendo nova dose que o deixa com uma cabeça gigantesca e um corpo frágil. A cada novo estágio – sim, ele não desiste – sua cabeça aumenta de tamanho e seu cérebro torna-se mais e mais poderoso, até chegar ao ponto de tornar-se apenas um cérebro e, no último estágio, uma massa irregular de protoplasma.
A ilustração de capa da revista é um bom exemplo de como essa visão de uma mutação criando cérebros gigantescos tornou-se comum na ficção científica, estendendo-se pelos anos seguintes e, em menor incidência, até hoje.
Em The Visual Encyclopedia of Science Fiction, diz-se que a história de Hamilton não apenas foi tida como a história “definitiva” nesse tipo de fc, mas foi muito imitada. “A história de Hamilton seguiu os principais passos do desenvolvimento evolucionário. A vida começou na Terra como um simples protoplasma, uma massa gelatinosa da qual desenvolveram-se pequenos organismos protoplásmicos: desses, em sucessivas mutações, desenvolveram-se as criaturas marinhas, os lagartos terrestres e mamíferos. Mas foi dessa história que se desenvolveu uma deturpação popular na ficção científica. É sabido que o fluxo normal de radiação cósmica atingindo a Terra é suavizado pela atmosfera – e, portanto, a evolução segue adiante lentamente. Mas se raios cósmicos pudessem ser aprisionados e armazenados como uma força potencial, e, então, libertados em quantidade, presumia-se que eles pudessem forçar a evolução além de sua velocidade normal”.

Capa de Earle Bergey, ilustrando o conto The Star of Life, de Edmond Hamilton (1947).

Stableford diz que Hamilton ainda escreveria muitos “romances mutacionais”, em especial The Star of Life, publicado originalmente como um conto, em 1947, na revista Startling Stories, e em 1959 como um romance. “Habitualmente”, diz Stableford, “ele utilizava a versão errônea da metamorfose evolucionária, apesar de que parecia que ele estava ciente da distorção – ele também escreveu uma história na qual uma criança mutante nasce de pais que sofreram radiação, He That Hath Wings (1938)”, conto publicado na revista Weird Tales.

                                                          Capa de Richard Powers (Crest, 1959).

Hamilton também foi um dos muitos escritores da época a aplicarem conceitos de mutação a seres alienígenas, em particular em seu conto Devolution (1936), publicado na revista Amazing Stories, no qual colonos alienígenas chegam à Terra em um passado remoto e têm seus genes alterados pela intensa radiação terrestre. Eles passam então pelo processo de involução, transformando-se em formas de vida cada vez mais inferiores e brutais, até chegar aos humanos de hoje, seus últimos descendentes.
É uma situação parecida com a apresentada no conto Worlds Within (1937), de John Russell Fearn, publicado em Astounding Stories. Aqui, no entanto, o que favorece a mutação de alienígenas que chegam à Terra é a própria gravidade do planeta, prejudicando a circulação do sangue; o resultado final são crianças com cérebros menores que, eventualmente, tornam-se os ancestrais da atual humanidade.

Capa de Earle Bergey ilustrando a história Atomic!, de Henry Kuttner (1947).

Henry Kuttner foi outro autor que, segundo Stableford, “fez uso prolífico do romance mutacional durante os anos 1940”, em histórias como I Am Eden (1946), publicada na revista Thrilling Wonder, e Atomic! (1947), na mesma revista. No último conto “(...) as transformações radicais mágicas estendem-se ao longo de várias gerações”. Kuttner e C.L. Moore também escreveram histórias sobre mutações em colaboração, usando o pseudônimo Lewis Padgett.

Capa de Hubert Rogers para a história New Foundations, de Wilmar H. Shiras (1950).

A escritora Wilmar H. Shiras também estreou no gênero com histórias lidando com mutações, a começar com o conto In Hiding (1948), publicado na revista Astounding Science Fiction. Seguiu com Opening Doors (1949) e New Foundations (1950), na mesma revista, e juntamente com as histórias Problems e Children of the Atom, foram publicadas em formato de livro com o título Children of the Atom, em 1953. Segundo Stableford, o conto inicial “(...) trata seu protagonista mutante, também nascido de pais que sofreram a radiação de um acidente nuclear, como o precursor benevolente de uma nova raça”.

Capa de Frank Kelly Freas (Gnome Press, 1953).

John Clute diz que Children of the Atom refere-se a uma quantidade de crianças-gênios produzidas por efeito da radiação. Inicialmente, elas escondem suas habilidades do mundo, depois revelam-se. “(...) assumindo o risco de que, ao tentarem ajudar humanos normais, possam acabar como uma elite pária martirizada. A história é contada com sensibilidade, evitando a maioria dos clichês das histórias de fc pulp a respeito de crianças perseguidas que estão destinadas a governar o mundo”.
Como explica a The Visual Encyclopedia of Science Fiction, a maior parte da ficção científica pulp ainda seguia o “beco sem saída que Hamilton inadvertidamente tinha criado. Em histórias banais, atavismo e metamorfose ainda eram apresentadas como mutações. Os protagonistas nessas antigas histórias, ainda que definitivamente fossem o que hoje seria rotulado como mutantes, eram apenas pseudocriações. A confusão surgiu porque poucos autores tinham realmente entendido como criar mutantes genuínos. Eles continuavam a utilizar raios cósmicos e estranhas poções de cientistas loucos para obter seus ‘mutantes instantâneos’.”
 

Brian Stableford e David Langford disseram que a ideia de que a mutação é parte necessária do processo de evolução levou muitos escritores sérios de ficção científica a tratar humanos mutantes extravagantes de modo simpático, e um dos melhores exemplos dessa situação encontra-se na obra de A.E. Van Vogt, em particular em seu livro Slan (1946), publicado inicialmente em 1940, na revista Astounding Science Fiction.

                                                                                                                            Capa de Richard Powers (Ballantine Books, 1961).

Em sua The Mammoth Encyclopedia of Science Fiction, George Mann ressalta que, além de ser seu primeiro romance, é provavelmente o livro mais famoso de Van Vogt, ideia que é compartilhada com vários críticos. “Conta a história de um homem nascido em uma raça de mutantes cujos membros têm estranhos poderes paranormais. Ele e seus companheiros mutantes são oprimidos pela sociedade ‘normal’, até que um dia os super-homens emergentes livram-se de suas correntes e é revelado que o ditador do império planetário é, na verdade, um mutante slan.”

Capa de Paul Lehr (Berkley Medallion, 1975).

Os escritores e críticos Alexei e Cory Panshin tiveram ainda mais a falar sobre o livro, em sua obra The World Beyond the Hill: Science Fiction and the Quest for Transcendence (1989). Segundo eles, van Vogt sugeriu a John W. Campbell, famoso editor da revista Astounding Science Fiction, a possibilidade de uma história sobre um “Homo superior” desenvolvendo-se a partir do homem atual. A história, é claro, é Slan, que seria contada do ponto de vista desse ser de uma nova ordem superior. “A reação imediata de Campbell a essa proposta”, dizem os Panshin, “foi de que o que van Vogt queria fazer simplesmente não podia ser feito. Não era possível”. Vinte e cinco anos depois, em uma carta a Doc Smith, Campbell contava que havia dito a van Vogt que uma história sobre um super-homem contada do ponto de vista desse super-homem só poderia ser escrita se o escritor fosse um super-homem.

                                                                      Capa de Gary Viskupic (Nelson Doubleday / SFBC, 1978).

“Durante a Era da Tecnologia, presumiu-se que superior significava superior – claramente melhor em qualquer aspecto significante. Se um ser fosse reconhecido como um super-homem, por definição isso devia significar que seus pensamentos, motivos e valores eram completamente além da capacidade de compreensão de homens inferiores. O próprio fato de o super-homem ser incompreensível seria uma evidência central de sua superioridade. Consequentemente, uma história de um super-homem na Era Tecnológica, como Odd John, de Olaf Stapledon, invariavelmente seria contada por algum humano incompreensível, mas tolerado, ao qual é permitido ficar perto o suficiente do Novo Homem para observar seu esplendor radiante, mais ou menos da mesma forma que um tolo, mas adorável, cocker spaniel poderia contemplar seu senhor e mestre. O ‘lindo truque’ que van Vogt realizou em Slan foi contar sua história do ponto de vista de um super-homem isolado, ignorante e imaturo – um jovem vulnerável em fuga, procurando aprender mais a seu respeito e sua espécie”.

Capa de Vincent Di Fate (Berkley Books, 1982).

Segundo Panshin, a história não segue simplesmente diferentes períodos da vida desse super-homem, o personagem Jommy Cross, desde sua infância, passando pela adolescência e como um jovem adulto. “(...) para van Vogt, esses pontos diferentes não representam um série de estágios distintos, culminando em um salto para um único estágio final de super-humanidade no qual Jommy vai além de nossa capacidade de entendimento. Mais exatamente, eles retratam uma acentuada curva crescente de crescimento que pode muito bem continuar para níveis superiores. Para van Vogt, ser um super-homem era uma condição relativa e não absoluta. Por ser mais capaz e unificado do que um ser humano comum, Jommy Cross pode ser um super-homem. Mas ele não será o super-homem – o único tipo de super-homem que pode existir – no sentido da antiga Era Tecnológica”.
A ideia da época era a de que um super-homem agiria segundo alguns estereótipos que insistiam que ele deveria ser distante, insensível, hiperintelectual. No entanto, como explicam os Panshin, ao longo de seu processo de amadurecimento, Jommy demonstra o que realmente significa ser um ser humano superior, sem necessidade de ser amoral ou sem coração, mas sendo bom, nobre e altruísta. “Foi a percepção de van Vogt de um universo orgânico, em desenvolvimento e interconectado que lhe permitiu refazer a ideia do super-homem nesses termos. Mais do que lhe permitiu – o compeliu. Se o universo fosse de fato um todo e não apenas uma mistura de partes sem relação, então era óbvio para van Vogt que a verdadeira superioridade deveria consistir em ser relativamente mais em sintonia com os propósitos do todo. Ser superior era estar mais integrado e menos parcial”.

                                                                                                                                                        Capa de Eric Fraser (Methuen, 1935).

Ainda que A.E. van Vogt geralmente não seja considerado um grande escritor, Slan passou para a história da ficção científica como um divisor de águas na elaboração de seres mutantes. Antes dele, o livro mais comentado era Odd John: A Story Between Jest and Earnest (1935), de Olaf Stapledon, citado anteriormente por Panshin. Em The Science Fiction Encyclopedia, Mark Adlard diz que, no livro, “(...) o super-homem individual aparece, ainda que seus atributos são espirituais e intelectuais, totalmente separados dos super-homens dos quadrinhos e revistas pulp”.

Capa de Ed Emshwiller (Galaxy Publishing Corp., 1951).

Adlard e John Clute lembram que a evolução do personagem central, John Wainwright, lembra conceitos que Stapledon apresentou em seu livro Last and First Men (1930), tido por muitos críticos como um clássico do gênero, imaginando a evolução da humanidade ao longo de 2 milhões de anos, com 18 raças humanas sucedendo-se. Em Odd John surgem características de algumas dessas raças mais evoluídas. “Após fundar uma comunidade isolada”, dizem os críticos, “limpa de humanos normais, e criando ali uma utopia, ele e seus companheiros ‘supernormais’ (...) finalmente alcançam algo parecido com a inteligência da décima oitava raça; uma conquista espiritual que custa suas vidas: quando humanos normais ameaçam destruir sua ilha (...) eles destroem a si mesmos em preferência a defender-se”.

                                                                                                                                         Capa de Richard Powers (Berkley Medallion, 1965).

Em The Visual Encyclopedia of Science Fiction, o texto diz que Odd John ficou conhecido como uma obra-prima do tema, de forma que as histórias que foram escritas posteriormente, pelo menos até Slan, sofreram com a comparação, em particular as histórias conhecidas como pulp, que apresentavam os “mutantes instantâneos”, com modificações radicais ocorrendo em pequeno período de tempo. “Os antigos mutantes eram não apenas anacronismos do futuro distante; eles não tinham lugar em qualquer tempo. Eles seriam condenados a morrer porque eram ênfases desequilibradas e não naturais, porque eram monstruosidades ambientais”, diz o texto da enciclopédia.