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A Outra História de Lúcifer

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data01/01/2005
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O escritor John A. De Vito fala sobre seu livro, O Apócrifo do Diabo, que conta, em forma de ficção, a história da atuação das forças do Bem e do Mal em nosso planeta sob o ponto de vista de Lúcifer
A Outra História de Lúcifer

O escritor John A. De Vito fala sobre seu livro, O Apócrifo do Diabo, que conta, em forma de ficção, a história da atuação das forças do Bem e do Mal em nosso planeta sob o ponto de vista de Lúcifer.

Gilberto Schoereder

Como seriam as histórias bíblicas sobre a criação do mundo e dos seres que nele habitam se fosse contada pelo "lado de lá"? Se Satanás, ou Lúcifer, como preferem alguns, narrasse essa mesma história do seu ponto de vista? Certamente, seria muito diferente. Afinal, diz-se que ocorreu uma batalha entre Deus e Lúcifer; e também se diz que a história sempre é contada pelos vencedores.
Uma amostra dessa possível narrativa alternativa se encontra no livro O Apócrifo do Diabo, de John A. De Vito, publicado no Brasil pela Madras Editora. É claro que se trata de uma história de ficção, mas embasada em muitas pesquisas de textos religiosos de várias culturas do planeta.
Não que se trate exatamente de um conceito novo, como o próprio De Vito deixou claro. O gnosticismo, que se desenvolveu nos primórdios do cristianismo, já imaginava que o nosso planeta não teria sido criado por Deus, mas pelo Demiurgo, o Iadalbaoth. Os hindus também haviam desenvolvido a ideia de que nosso mundo não seria exatamente o que nós vemos e somos levados a acreditar, mas que a realidade final estaria escondida de nós, acessível apenas para aqueles que conseguissem ultrapassar o véu de Maia, o véu da ilusão.
Mais recentemente, esse conceito foi desenvolvido por alguns escritores de ficção científica, especialmente por Philip K. Dick, que imaginou o Mal como estando aprisionado na Terra, banido em nosso planeta, de modo que nós não estaríamos salvos.
Mas, até onde se sabe, ninguém chegou a colocar o próprio Lúcifer no centro das ações, narrando a sua história com um estilo parecido com o da Bíblia, e acusando o Deus bíblico, que no livro ele ironicamente chama de "Senhor Deus", de ser o responsável pelas mazelas do mundo e dos seres humanos, que são tratados pelo Senhor Deus e seus companheiros como uma reserva de energia, como gado mesmo, do qual se nutrem.
Certamente, não é um livro que pode ser lido de alma leve pelos católicos, mas que vale a pena ser conhecido por todos os que estejam abertos a interpretações diferentes de histórias já conhecidas. Para os não católicos, o texto oferece opções de interpretação interessantes para algumas das passagens mais nebulosas da Bíblia.


O que o inspirou a escrever O Apócrifo do Diabo?

Eu estava morando numa casa com 300 anos de idade, na Alemanha. O sótão era construído de madeira pesada e escura e tinha uma janela. Os proprietários tinham guardado seus enfeites de Natal lá – estátuas de Maria, José e um crucifixo com quase dois metros.
Eu estava lá em cima uma noite, durante uma tempestade, e os relâmpagos iluminavam a cruz e as estátuas; era arrepiante. Eu peguei uma caneta e comecei a escrever algo que pudesse captar a atmosfera. Eu não tinha ideia sobre o que estava escrevendo; apenas queria criar algo que pudesse causar uns arrepios na minha espinha.
Depois, eu fiquei mais interessado na evolução do pensamento religioso e filosófico e, enquanto lia vários textos, muitas inconsistências se tornaram aparentes, especialmente no judaísmo e cristianismo. Deus, a personificação do Bem, tinha muitas atitudes que poderiam ser consideradas imorais. Não apenas pelos meus padrões, mas também pelos padrões da Bíblia. Eu pensei se não seria interessante se o Deus bíblico fosse, na verdade, a causa dos males da humanidade. E se Satanás fosse o bode expiatório? Afinal de contas, muitas vezes Satanás é chamada de malévolo, mas em termos bíblicos ele nunca pratica atos de maldade. Deus pratica, mas o diabo nunca faz isso. E se Satanás fosse moralmente superior? E se Deus fosse o Mal, porém mais forte, ganhasse a guerra e tivesse a Bíblia escrita como propaganda para fazer com que ele parecesse ser o cara legal?
Na época em que pensava essas coisas, eu encontrei aquelas poucas páginas que tinha escrito no sótão na Alemanha. Elas se tornaram as primeiras páginas de O Apócrifo do Diabo. O resto veio fácil. O livro representa muitas de minhas crenças, contadas na forma de uma alegoria pseudocristã.

Qual foi a reação da crítica ao seu livro? E dos cristãos? Você recebeu muitas reclamações? Aliás, qual é sua formação religiosa, se é que você tem alguma opção nesse sentido?

As reações ao livro foram muito variadas. A maioria das pessoas amou ou odiou totalmente; poucas delas não ficaram polarizadas nessas duas opiniões. Existem pessoas que queimaram o livro, e outras que criaram uma religião em torno dele. Os cristãos, na maior parte, desprezaram o livro mesmo que não o tenham lido. Outros leram e tiveram coisas muito boas para dizer a respeito – e isso foi a maioria.
Quando o livro foi publicado eu recebi alguns e-mails sugerindo que o mundo ficaria melhor sem a minha presença. Eu os desconsiderei, já que havia a mesma quantidade de e-mails de pessoas declarando o quanto tinham amado o livro.
Quanto à minha crença pessoal, essa não é uma pergunta fácil de responder. Eu cresci como católico apostólico romano. Li a Bíblia extensivamente, mas também o Corão, o Bhagavad Gita, o Dhammapada, o Tao, os Analetos de Confúcio, os trabalhos de Platão, Aristóteles e Plotino, assim como os Pergaminhos do Mar Morto e os de Nag Hammadi. Esses são apenas alguns de muitos. Devido a isso, minhas crenças são incomuns. Eu sou espiritualizado, mas não tenho religião. Eu acredito que a alma continua após a morte, mas eu não acredito em seres supremos governando essas almas.
Será que existe algo como um ateu espiritualista?


No tema que você trata em O Apócrifo do Diabo percebe-se uma certa semelhança com ideias apresentadas pelo gnosticismo a respeito da Terra ter sido obra não de Deus, mas de Iadalbaoth (o Demiurgo). Também se nota certa semelhança com o conceito hindu de maya, de que o mundo não é exatamente o que nós percebemos dele. Isso é proposital? Você já tinha contato com esses conceitos?

O gnosticismo tem um papel importante em O Apócrifo do Diabo, especialmente a crença de que a Terra foi criada por um demiurgo imperfeito. Eu penso que a imperfeição do Deus bíblico é evidente em quase todas as passagens em que Ele aparece. Ele demonstra raiva, ciúme – muito parecido com as deidades antropomórficas dos gregos.
De uma perspectiva espiritual, eu também incorporei muitos ensinamentos gnósticos. Os gnósticos acreditavam que nós temos as sementes da iluminação dentro de nós; o despertar espiritual nasce do interior, e não de fora. Eu acredito que a história da Bíblia é uma metáfora do despertar espiritual, e não uma história literal.
Nos primórdios do Cristianismo, existiam muitos tipos de cristãos, muitos dos quais acreditavam que Jesus era mais um ser simbólico do que literal. Se você ler o Códice Sinaítico (a primeira versão completa a ser encontrada, datando do ano 150), você vai encontrar que Jesus é o filho de José, não o filho de Deus. Isso foi visto pela primeira vez no Códice Curetonianus, escrito mais de 100 anos mais tarde, quando a ortodoxia dominava.
O conceito hindu de Maya, de que a dualidade é uma ilusão e que só existe a Unidade, também teve um papel importante no livro. Os problemas do mundo são a ilusão e a ignorância, e a melhor maneira de lidar com isso é olhar para dentro de nós mesmos e nos esforçar por obter a salvação; em outras palavras, realizar nosso próprio despertar espiritual.
O outro grande conceito subjacente no livro é o que eu chamo de "Ciclo do Tempo". Observando alguns elementos básicos da teoria quântica, eu construí uma criação universal com a qual eu estou muito feliz. Verdadeira ou não, ela faz sentido para mim, então é uma coisa a menos na qual pensar.


Seu interesse é mais para a literatura de horror e ficção ou para o ocultismo? Você classificaria seu livro como literatura de horror, ou teria outra denominação? Parece que na classificação da Amazon ele chegou a ficar entre os mais vendidos tanto na categoria “oculto” quanto na de “horror”.

Meus principais interesses no momento estão na não-ficção histórica: os textos que sobreviveram da Babilônia e Assíria, da Grécia (Platão, Aristóteles, Heródoto, Demóstenes), e dos romanos (César, Tácito, Cícero, Sêneca). Estou tentando ler o maior número de trabalhos possível das antigas civilizações, para tentar encontrar as raízes evolucionárias da religião e filosofia.
Quanto a O Apócrifo do Diabo, eu sempre o considerei um trabalho filosófico, usando alegoria e metáfora, semelhante aos gnósticos. Ele chegou a ser o mais vendido na categoria terror, na Amazon, mas eu não o considero um livro de terror. Nunca considerei. Eu o vi listado entre as obras de religião e espiritualidade, assim como em ficção científica. No começo, o livro teve alguns problemas porque ninguém sabia em que categoria inseri-lo. Eu posso entender isso, já que não existe nada semelhante por aí, talvez com a exceção do Corão e do Livro de Mórmon.


Para recontar a história da criação da forma como apresentada no livro, você deve ter feito uma pesquisa intensiva na Bíblia. Como você escolheu as passagens que deveria considerar para contar o outro lado da história? Que critérios você utilizou?

Eu li e reli a Bíblia inúmeras vezes, assim como outros textos religiosos, filosóficos e científicos. No meu livro, eu utilizei as histórias mais populares da Bíblia, de modo que a maioria das pessoas estivesse familiarizada com o contexto. É claro que eu também adicionei muita coisa minha. A maior questão tem sido porque eu deixei de fora histórias como a de Jó e Noé. Bem... eu realmente tenho sequências planejadas, e os paralelos entre as histórias de Noé e Gilgamés são surpreendentes. Meu objetivo é escrever um épico religioso que amarre todos as maiores religiões e filosofias históricas numa única narrativa coerente.


Cada vez mais pessoas estão falando a respeito da "batalha final" entre o Bem e o Mal, tanto nos meios religiosos e ocultistas quanto no cinema, televisão e literatura. O que você pensa a esse respeito? Você acha que o conceito de um apocalipse, num futuro indeterminado, faz sentido, pode realmente ter algum fundamento?

O conceito de uma "batalha final" já existe desde o início da civilização, e pode-se compreender porque. Os primeiros humanos viram o nascimento e a queda dos impérios da Babilônia, Egito, Grécia e Roma. Não importava o quão grande era a sociedade, sempre vinha alguém e a destruía. Simplesmente, não havia a sensação de segurança.
Aquela sensação de inquietude sempre existiu e é sentida por todos nós ainda hoje. Um grupo terrorista pode pôr as mãos num poderoso agente biológico, ou numa daquelas armas nucleares perdidas dos russos – ninguém está a salvo. No livro O Apócrifo do Diabo, escrito bem antes do 9/11 (11 de setembro, o dia do atentado terrorista em Nova York), eu apresento a guerra final iniciada por um príncipe islâmico – talvez Bin Laden?
Por enquanto, foi a Pax Romana do Império Romano que conseguiu sobreviver por mais tempos; apenas 500 anos. A União Soviética, poderosa como era, caiu no período de uma vida. A cada ano, a humanidade tem enfrentado ameaças cada vez maiores: primeiro, era a pedra; depois, o bronze e o ferro. Mais recentemente, armamentos nucleares e biológicos.
Não é muito difícil para a humanidade, seja nas civilizações primitivas, seja no mundo moderno, prever um cataclismo final. Ele é possível? Certamente. É provável? Infelizmente, sim, é. Mas se você é espiritualmente seguro, então o que isso importa?


No seu livro, Deus, o Diabo e os anjos vieram de um outro universo, outra dimensão, de modo que a história pode ser vista inclusive como ficção científica, o que liga o tema àquelas pesquisas que entendem que o passado do planeta foi marcado pela existência de grandes civilizações, que já desapareceram. Na Índia, existem os relatos de batalhas terríveis entre essas civilizações, representantes do Bem e do Mal. O que você pensa a esse respeito. Sua história poderia ter algo a ver com esses conceitos? De alguma forma você se inspirou nessas antigas histórias?

O Bhagavad Gita, da Índia, teve uma importância na elaboração do livro, porém não mais do que os textos de crenças de outras culturas. Para mim, o Bem e o Mal sempre estiveram em guerra no nosso planeta. Quero dizer; os romanos mataram os cristãos; os cristãos ajustaram as contas por meio da Inquisição e as Cruzadas; o Império Otomano espalhou a fé por meio da espada; e Hitler tentou exterminar os judeus. Eventualmente, o bem vence. Ao menos por enquanto.
O conceito de que a vida na Terra começou em outro lugar já é conhecido há algum tempo, pelos textos de Erich Von Däniken e Zecharia Sitchin. Essa ideia está em meu texto. No entanto, eu tomei uma direção diferente: eu imaginei a vida começando na Terra, mas com seres de outro mundo guiando sua evolução. Eu penso que já é bastante difícil usar a ciência para explicar a criação de vida, sem ter de trazer alienígenas para essa equação. Além disso, mesmo que a vida na Terra tenha sido semeada por alienígenas, isso ainda deixaria em aberto a questão de como os alienígenas foram criados. Apenas adia a questão.
Para mim, não há evidência de que a vida na Terra tenha sido criada seja pela mão divina, seja por uma raça alienígena. Ambas são lendas interessantes, mas são baseadas em nada mais do que a fé – não há evidência para sustentar qualquer delas.
Como foi dito, se os alienígenas começaram a vida na Terra, ainda permanece a questão de como a vida começou no mundo alienígena. Se foi pela criação divina, onde está a evidência? A resposta básica é que o universo é tão complexo que a mão do Criador é evidente em todo lugar. Mas assim, se o universo tão complexo precisou ser criado, o Criador não teria de ser ainda mais complexo? E assim, alguém então deveria ter criado o criador, e assim por diante. Onde termina? Com a evolução pelo menos existe evidência: fósseis, análises comparativas de DNA, etc. É fato que essas evidências podem ser debatidas, mas pelo menos existem fatos para debater.