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Luz Cor-de-Rosa na Cabeça

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autorGilberto Schoereder
publicado porGilberto Schoereder
data01/01/2007
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Valis, um dos marcos da literatura de ficção científica, traz uma das mais interessantes abordagens sobre nossa vida na Terra e nossa suposta relação com Deus.
Luz Cor-de-Rosa na Cabeça

Valis, um dos marcos da literatura de ficção científica, traz uma das mais interessantes abordagens sobre nossa vida na Terra e nossa suposta relação com Deus.

Gilberto Schoereder

O título da matéria poderia muito bem ser "uma experiência mística transformada em ficção científica", pois é exatamente disso que trata o livro Valis (Aleph Ed.), do escritor norte-americano Philip K. Dick (1928-1982), publicado originalmente em 1981.
Philip K. Dick, mais conhecido do público como o autor de Blade Runner, utilizou suas experiências e estudos místico-religiosos em vários livros, como A Invasão Divina, O Deus da Fúria, A Transmigração de Timothy Archer, Ubik ou O Homem do Castelo Alto. Mas talvez essa tendência tenha atingido seu apogeu em Valis, provavelmente sua obra mais complexa, com tantas referências a textos filosóficos e religiosos – cristãos, gnósticos ou de outras origens –, que obriga o leitor a um verdadeiro cursinho para melhor acompanhar os eventos na vida do personagem central, Horselover Fat, que na verdade é o próprio autor.
O ponto central da chamada "experiência mística" do autor ocorreu em fevereiro e março de 1974, na forma de uma série de visões e audições, incluindo uma luz cor-de-rosa carregada de informação, disparada diretamente em sua consciência. As visões iniciais foram descritas por ele como sendo formadas por algo como raios laser e padrões geométricos; ocasionalmente, retratos de Jesus e da antiga Roma. Quando as visões começaram a ocorrer com maior frequência, Dick disse que começou a viver uma vida dupla, sendo ao mesmo tempo ele, Philip K. Dick, e um homem chamado Tomás, um cristão perseguido pelos romanos no século 1.
Alguns estudiosos da vida e obra de Philip K. Dick disseram que ele aceitou as visões como reais, acreditando ter sido contatado por uma entidade, Deus ou algo semelhante, que no livro é chamado de Zebra, ou Valis. Outros biógrafos afirmam que ele sempre lidou com a questão com o maior bom humor – o que se pode ver pela forma como ele trata o personagem Horselover, ele mesmo, no livro –, e considerava como mais provável que tudo não passasse de autoilusão.

Muitos se referiram ao fato de que Dick já tinha um histórico de uso de drogas, o que explicaria suas "visões", mas não parece ser o caso. É verdade que as visões começaram no dia em que ele estava se recuperando dos efeitos do uso de sódio pentotal, administrado para a extração de um dente do siso. Ele fez um pedido de analgésico à farmácia e, ao abrir a porta para recebê-lo, percebeu que a mulher da entrega estava usando um pingente que lembrava o símbolo secreto dos peixes utilizado pelos primeiros cristãos.
As visões começaram depois que a mulher foi embora e, no início, até poderiam ser atribuídas ao efeito do anestésico. Só que elas continuaram a ocorrer nas semanas seguintes. Segundo disse numa entrevista, ele experimentou como que "uma invasão" de sua mente por uma mente racional transcendental, "como se eu tivesse sido insano toda a minha vida e, de repente, tivesse me tornado são".
No livro Valis, a situação é levada ao extremo, é claro. Valis são as iniciais de Vast Active Living Intelligence System (Vasto Sistema Ativo de Inteligência Viva), e basicamente é um satélite que dispara informações na Terra, mas não em todas as pessoas. A epifania de Horselover Fat – e, consequentemente, a de PKD –, poderia ser explicada dessa forma.
O conceito básico apresentado pelo escritor está ligado a algumas noções do gnosticismo e a inúmeras outras informações fornecidas por um grande número de textos religiosos e místicos que Dick devorou ao longo de sua vida. A ideia é que nós não vivemos exatamente no mundo que imaginamos, uma vez que nossa compreensão é toldada, impedida. Dick desenvolveu esse conceito em outros livros, especialmente em A Invasão Divina, entendendo que o mundo não foi criado por Deus, que está tentando penetrar em nosso mundo e em nossa consciência para que possamos perceber a verdade. É como a noção do véu de Maia, dos hindus. O mundo real está por trás do mundo aparente.
Valis pode nos salvar dessa situação, mas ao mesmo tempo a exposição excessiva a ele pode causar doenças e até a morte. A salvação e a destruição andando juntas. Valis reabre o terceiro olho, o que nos permite sair do labirinto em que vivemos; não um mundo, propriamente dito, mas um labirinto vivo, em que tudo é irreal. Não é à toa que se disse que o filme Matrix deve muito a PKD.
Habitantes de outro sistema estelar, sabendo da situação dos habitantes da Terra, construíram Valis para nos socorrer, para nos ajudar a sair do labirinto e ver a realidade por trás das aparências. Salvação, então, significa ser conduzido para fora do labirinto do espaço-tempo, onde o servo se tornou senhor.
O livro ainda tem muito mais do que isso, numa das tramas mais alucinadas do gênero. Quem se interessa por ficção científica ou por assuntos religiosos e místicos levados ao extremo de suas possibilidades, não deve deixar de ler Valis.

Outras Visões
Diz-se que, quando criança, PKD teve um sonho recorrente ao longo de várias semanas no qual ia a uma livraria e tentava achar um exemplar específico de Astounding Magazine, revista de contos fantásticos. Esse exemplar teria uma história chamada The Empire Never Ended (O Império Nunca Acabou), que lhe revelaria os segredos do universo. A cada novo sonho, a pilha de revistas diminuía, mas ele nunca chegava ao fim. No final, ele começou a achar que, se encontrasse a revista, ficaria louco, e logo os sonhos pararam.
A frase "o Império nunca acabou" ressurge em Valis como parte da visão do personagem, que entendia que o Império Romano continuava existindo ao mesmo tempo em nosso mundo atual.
Também em 1974, o mesmo ano em que teve sua "experiência cor-de-rosa", foi publicado seu livro Vazio Infinito (Flow My Tears, The Policeman Said). PKD disse que estava conversando com um sacerdote da igreja episcopal e falou sobre uma cena importante do livro na qual dois homens se encontram e, enquanto a descrevia, o padre foi ficando cada vez mais agitado. Descobriu que a cena era exatamente igual a uma cena da Bíblia, de Atos, e que um dos homens era chamado Philip. E PKD jamais havia lido Atos dos Apóstolos.